No levante iniciado quinta-feira 28, mais de uma dezena de escolas técnicas do estado estão ocupadas, em um movimento que evidencia a tensão entre o governo Alckmin e os estudantes. O alvo da resistência, desta vez, diz respeito a um problema não exatamente novo: a falta de almoço para alunos do ensino público, que, segundo lei federal de 2009, devem receber alimentação “saudável e adequada”. Atualmente, 24% dos 213 mil alunos das Etecs estudam em período integral, em geral em uma jornada que começa às cinco e meia da manhã, quando saem de casa, para chegar às sete à escola, e termina por volta das sete e meia da noite, após uma hora e meia no caminho de volta depois do fim da aula. Muitos não têm como pagar por almoços em restaurantes e engrossam o movimento a reivindicar refeitórios nas escolas.
Os gêneros alimentícios distribuídos nas Etecs são enviados pela Secretaria da Educação ao Centro Paula Souza, autarquia do governo estadual vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação. Além da falta de planejamento pelo governo, estima-se que apenas no ano passado 25 milhões de reais destinados à merenda na rede estadual tenham sido desviados. Segundo investigação, o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado tucano Fernando Capez, integra o esquema. E é contra esse descaso que teve início o último levante da “Primavera Estudantil”.
Ao protesto contra a suspeita de fraude na compra de merendas, os estudantes unem cortes de verba na educação, a diminuição de salas na rede estadual, temporariamente adiadas por conta das manifestações do ano passado. O governo paulista é acusado de empreender uma “reorganização gradual e disfarçada” e de não investir em laboratórios e pias nos banheiros da Etecs. A direção do Centro Paula Souza defende-se: o governo é vítima do esquema de desvio da merenda, desde segunda-feira 2 todas as escolas passaram a ter alimentação, das 219 Etecs, 75 fornecem merenda seca, neste ano dez escolas migrarão da merenda seca para a refeição, e até 2018 todas as unidades terão refeições para alunos.
“Queremos almoço de qualidade em todas as escolas, é disso que dependem muitos alunos que passam o dia todo estudando”, afirmou Douglas Oliveira, 18 anos. “Não sairemos daqui enquanto não ficar claro que teremos comida. Não queremos apenas palavras do governador.” Morador do Jaraguá, na zona norte da capital paulista, e estudante da Etec Guaracy Silveira, na zona oeste, onde fica das 7 às 17 horas, Douglas ocupa desde a quinta-feira 28 o Paula Souza. Epicentro do levante estudantil atual, o prédio foi escolhido pelo simbolismo de centralizar a administração das instituições de ensino técnico. A capacidade de mobilização foi aprendida pelos próprios estudantes com as ocupações no ano passado, cujos ecos se fazem sentir ainda hoje em estados como Goiás e Rio de Janeiro. “Muitos ficaram surpresos com o nosso poder. Antes era clara a força dos universitários, mas os secundaristas não percebiam o poder que tinham”, afirma Nicole Hernandez. “Não adianta o governo disfarçar como está fazendo com a reorganização. A gente só sai daqui quando tiver merenda com alto valor nutricional.”
Na tentativa de intimidar os 250 alunos acampados no Paula Souza, na segunda-feira 2 a Polícia Militar entrou no local com a desculpa de “garantir que os funcionários voltassem a trabalhar”. Na quinta-feira 5, os estudantes preparavam um cordão humano para resistir à entrada da PM, desta vez munida de um novo mandado, desde que desprovida de armas letais e não letais, mediante a presença do secretário de Segurança. Preparados com gritos de guerra como “Acabou a paz! Mexer com estudante é mexer com Satanás!”, os secundaristas esperaram a polícia, que não apareceu.
Na manhã da sexta-feira 6, a Polícia Militar conseguiu derrubar a proibição de armas letais e não letais e desocupou o edifício. “Parece tratar-se de uma questão de honra do estado, como se fosse preciso espetacularizar o corretivo violento para espalhar a ideia de que é perigoso protestar ou ocupar”, observou Daniela Skromov, coordenadora de núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública. Segundo Skromov, que esteve no Paula Souza na quinta-feira 5 para acompanhar a ação da PM, o termo “reintegração de posse” é questionável nesse caso. “Juridicamente, não é uma questão de posse, eles não querem virar posseiros ou proprietários.”
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública havia informado que “a análise sobre a necessidade ou não de porte de armas, inclusive não letais, deve ser feita pela Polícia Militar, para garantir a integridade dos próprios manifestantes, como forma de mitigar atos mais enérgicos ou que possam ocasionar maior dano às pessoas”.
Após a ação, marcada por truculência com os estudantes, muitos dos secundaristas ali acampados migraram para outras Etecs paralisadas. Desde a quinta-feira 28, ao menos 12 outras Etecs foram ocupadas, além de escolas estaduais e a diretoria de ensino na região Centro-Oeste, no bairro da Vila Madalena.
A pressão dos secundaristas surtiu efeito. Depois de um grupo de alunos organizados pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas terem ocupado a Assembleia Legislativa exigindo a abertura de uma CPI da Merenda, o Ministério Público anunciou a abertura de duas investigações sobre o suposto esquema de desvio de verba destinada à merenda. O Centro Paula Souza, por sua vez, anunciou que disponibilizará almoço para todos os alunos de Etecs que estudam em período integral e não recebem alimentação escolar tipo marmitex. A previsão é que as refeições comecem a ser distribuídas a partir de agosto para cerca de 20 mil alunos.
Receosos em crer na promessa do governo, os secundaristas mantêm as ocupações. Eles querem garantias de que receberão alimentação de verdade – e não a merenda seca. Até não obterem garantias de que almoços e jantares serão, de fato, realidade, eles se utilizam aquilo que têm de mais valioso: o poder que perceberam ter em 2015. As ocupações do ano passado trouxeram como elemento novo a maneira como os alunos passaram a se ver. “Com as ocupações, ganhamos voz. Conseguimos ocupar ruas, escolas e ganhar espaço na mídia, algo que ninguém fazia desde as Diretas Já”, avalia a Indira Silva, 17 anos, entusiasmada com a causa e pouco preocupada com o fato de sua mãe tê-la expulsado de casa.
Situação semelhante viveu Beatriz Rodriguez, 16 anos, conhecida por Che por conta da asma. “No ano passado, minha mãe achou que se me pressionasse eu iria tomar um jeito, mas usou a mesma tática do governo: pressionar para ver se eu parava”, lembra. “Ela me expulsou de casa para eu passar necessidade, mas não adiantou. Mesmo morrendo um pouco todo dia, faço isso feliz.”
O maior ganho nesse processo, observa Douglas, foi o fato de os estudantes se darem conta da força que têm perante a estrutura hierárquica que compõem escola e Estado, onde antes pareciam ter pouca voz. “Temos consciência da grandeza desta luta e sabemos que ela só tende a crescer”, afirma Douglas. “A gente é forte, estudante secundarista organizado é um perigo. E com estudante não se brinca.”