A primeira vitória foi a anulação de uma sentença de primeira instância contra os indígenas, pelo Tribunal Regional Federal (TRF1); e, concomitantemente, uma outra sentença de primeira instância pôs fim à prática do Estado de se recusar a prestar atendimento de saúde aos indígenas. Duas vitórias jurídicas contra racismos praticados tanto pelo governo, no atendimento à saúde, quanto pelo Judiciário, no que toca a regularização fundiária.
Primeira vitória: a sentença racista
No final de 2014, o juiz federal Airton Portella lavrou sentença na qual declarava inexistente a Terra Indígena (TI) Maró e, consequentemente, as comunidades indígenas que ali vivem, no rio Arapiuns. Como diria Frantz Fanon, a sentença era um ato racista perfeito numa sociedade racista, com a perfeita harmonia entre as relações econômicas (os interesses dos madeireiros) e a ideologia (a supremacia branca e do progresso).
O processo de onde saiu essa sentença era uma ação civil pública (ACP) do Ministério Público Federal (MPF) contra a morosidade da Funai na demarcação da TI Maró, na qual foi dada uma liminar favorável ao MPF.
O caso ganhou ares muito mais amplos com a inversão do objeto a partir da entrada na lide de associações contrárias aos indígenas. Com os mesmos advogados das madeireiras, essa outra ação pedia para extinguir o processo administrativo em trâmite na Funai para a demarcação da TI Maró, e que o juiz declarasse os indígenas como “eminentemente caboclos da região”. Portella julgou as duas ações na mesma sentença.
O TRF1 extinguiu o processo das associações/madeireiros contra os indígenas (ou seja, não há mais discussão sobre esse tema) e mandou voltar à primeira instância a ACP que determina que a Funai demarque a terra. Portanto, foi dado provimento ao recurso do MPF e agora a Funai deve, sob pena de multa, demarcar a TI Maró dentro do prazo do decreto 1775/96.
A sentença de Portella foi publicada menos de duas semanas depois de uma grande operação de fiscalização que embargou a exploração madeireira na área da TI Maró, uma pressa que levantou suspeitas.
Além disso, os argumentos contra os direitos dos indígenas saíram de um “antropólogo” desfiliado da Associação Brasileira de Antropologia, Edward Mantonelli Luz. Tendo Luz como “eminência parda”, sem citá-lo nominalmente, Portella inverteu o sentido de ideias para favorecer madeireiros. Até deturpou uma reportagem que publiquei em 2010, na RollingStone, na qual denunciava ameaças dos madeireiros a Odair Borari.
Luz vangloriou-se nas redes sociais de que seus argumentos foram utilizados pelo juiz. Imaginava que teria alcançado os objetivos de sua “missão”: atacar o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
Viveiros de Castro foi alçado a “inimigo” dos anti-indígenas desde que falsas declarações suas foram inventadas pela revista Veja no famigerado texto “A farra da antropologia oportunista”. Uma das estratégias, tanto de Luz quanto do juiz Portella, era contorcer a ideia de Viveiros de Castro segundo a qual “no Brasil todo mundo é índio; exceto quem não é”, para algo como “não existe índio”, ou “aqui todo mundo é caboclo”.
Além de ganhar audiência ao atacar o reconhecido professor do Museu Nacional com resmungos racistas, a falácia serviu, por um breve momento, para os madeireiros.
Se tudo parecia perdido, com o céu encoberto esmagando a cabeça, os indígenas iniciaram a reação. Ocuparam o edifício da Justiça Federal em um amplo protesto, dançaram, cantaram e fizeram um poderoso ritual para trazer luz ao fim do túnel da justiça.
Por meio do procurador Luis de Camões Lima Boaventura, o MPF recorreu e, liminarmente foram suspensos os efeitos jurídicos da sentença — decisão tomada por um juiz que logo substituiu Portella (Portella era então juiz substituto).
Terra Indígena Maró
A apelação assinada por Camões mostra os limites jurídicos da antropologia em dizer quem é ou não é o que quer que seja — como pleiteava Edward Luz. E a argumentação central é desenvolvida a partir da auto-declaração e do autorreconhecimento como princípio basilar o direito internacional no reconhecimento étnico.
Camões convidou Viveiros de Castro para fazer um parecer sobre o caso e acompanhar o recurso. No documento, Viveiros de Castro desenvolve um brilhante pensamento sobre a luta política dos povos indígenas no Brasil, atuando como um intelectual da “retaguarda”, isto é, pensando a partir das mobilizações e das lutas, e fortalecendo a legitimidade das suas demandas.
E, de maneira sucinta, explica a dimensão deste embate específico no atual contexto da Amazônia, conforme abaixo:
Enfim, o real conflito, o geral conflito, o drama histórico maior que lateja no fundo (que digo? na superfície) desta causa “menor” em torno da TI Maró é aquele que assola a Amazônia hoje, e que confronta os povos e gentes da terra, a gente do rio e da floresta, do peixe e da mandioca, que luta para manter seu modo de vida tradicional, – sem prejuízo de serem atendidos pelos serviços públicos a que têm direito como cidadãos brasileiros, os quais sempre lhes foram, não obstante, negados –, a uma legião de sereias políticas, empresariais e midiáticas que lhes acenam com a miragem da “possibilidade do desenvolvimento socioeconômico” (tomamos o eufemismo usado na sentença [p.25]) como constituindo a única forma pela qual estas comunidades ribeirinhas-caboclas-indígenas poderão se libertar do que as ditas sereias lhes apontam como sendo a miséria, ignorância, pobreza e sordidez em que estariam mergulhadas.
O que a história recente nos ensina, muito pelo contrário, é que a “possibilidade do desenvolvimento econômico” produz, quando ela passa ao ato – aceitando-se, por antífrase, que tudo o que enumeramos no parágrafo anterior possa ser chamado de “desenvolvimento econômico” –, a dissolução progressiva dessas comunidades tradicionais, sua extinção, o acaparamento de seus territórios por grandes empresas agroexportadoras e por grileiros e especuladores profissionais, com o consequente engrossamento da população pobre das periferias das cada vez maiores, mais caóticas e mais inviáveis cidades da Amazônia.
Segunda vitória: o racismo do governo
Outra vitória significativa na comarca de Santarém foi tornar obrigatório o atendimento de saúde das comunidades indígenas de 13 etnias da região. Desde 2001, quase seis mil indígenas reivindicavam o atendimento. O governo federal negava com base em fundamentos preconceituosos, que colocavam em xeque a identidade dos indígenas, e no fato de a terra não ter sido ainda homologada.
Dessa vez, a Justiça Federal deu um grande passo na interpretação justa da Constituição Federal. Ao contrário de Portella, Victor de Carvalho Saboya Albuquerque diz que a CF de 1988 colocou fim à postura que visava "aculturar" os indígenas, e escreve que “pelo critério do autorreconhecimento, indígena é aquele que se afirma como tal”.
Para Albuquerque, a conduta do poder publico configura “omissão na prestação de serviço”, sendo ilegal a recusa no atendimento à saúde indígena. A liminar estabeleceu o prazo de 48 horas para o início do atendimento.
Para Camões, do MPF, o interesse econômico dos madeireiros compromete o direito e a identidade de uma coletividade. Esse é sem dúvida um ponto crucial no aumento dos conflitos no País: “a mensagem daquela sentença era de que o interesse econômico teria que prevalecer sobre os direitos”, disse.
São grandes vitórias, precedentes de resistências, e não casos isolados. Surgem em um momento onde os três poderes parecem estar unidos contra os povos indígenas.
Como me disse uma vez Ailton Krenak ao interpretar o mito da “queda do céu” dos Yanomami: “Eu não aceito o xeque-mate, fim do mundo ou fim da historia. Esse momento difícil para mim é quando eu mais evoco esse pensamento: cantar, dançar e suspender o céu.”
Ao anular a sentença racista e obrigar o governo federal a atender sem preconceito, os indígenas do baixo Tapajós e do rio Arapiuns, junto do Ministério Público Federal, dançaram, cantaram e conseguiram suspender o céu!