Vivemos um momento em que o povo negro, vítima histórica e secular de massacres, preconceitos e discriminação, busca assegurar os direitos conquistados na Constituição de 1998. Com muita dificuldade, pequenos passos são dados para que tais direitos não fiquem no papel.
Na contramão, as elites se esforçam para deslegitimar nossas lutas e rasgar artigo por artigo das conquistas da chamada Constituição Cidadã.
O que a Bíblia nos diz a respeito do povo negro?
Os evangelhos sinóticos são unânimes em afirmar que certo Simão de Cirene ajudou Jesus a carregar a cruz, a caminho do Calvário (Mt 27,32; Mc 15,21; Lc 23,26). Ora, Cirene fica no norte da África. Mas alguma vez você ouviu em prédica ou sermão, na catequese, na escola dominical ou no ensino confirmatório, que um africano ajudou Jesus a carregar a cruz? Estudiosos dirão que se trata de um judeu da diáspora, visto que no norte da África havia várias colônias judaicas. Mas com que argumentos ou intenções fazem esta escolha na interpretação?
Por contrariar os interesses da corte de Jerusalém, pouco antes da destruição da cidade pelas tropas babilônicas, o profeta Jeremias foi preso e lançado numa cisterna. Um africano, funcionário do rei (seu nome, Ebed-Melec, significa "ministro do rei"), liderou um movimento para libertar Jeremias (Jr 38,1-13). Quantas vezes você se lembra de ter estudado este texto, dando atenção a este "detalhe"?
Moisés, conta-nos Nm 12, casou-se com uma africana, da região de Cush – Etiópia. Na verdade, quase toda a história do êxodo se passa na África. Uma simples leitura do Canto de Miriã (Ex 15,19-21), com certeza um dos textos mais antigos de toda a Bíblia, nos permite notar a proximidade da cena com a rica cultura dos povos negros: canto e dança ao redor dos tambores. Você já parou para pensar nisso?
O missionário Filipe, ao "aceitar a carona" na carruagem do negro e alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia, tem uma grata surpresa: o africano já tem em suas mãos o livro do profeta Isaías (At 8,26-40). E há quem continue afirmando que foram os europeus que levaram a Bíblia para a África!
Pois bem, os exemplos acima são suficientes para nos provocar ao desafio: olhar a Bíblia na perspectiva da negritude!
Em primeiro lugar, porque seguimos acreditando que o Deus da Bíblia faz opção pelas pessoas e pelos grupos mais marginalizados. Em nossa sociedade, as mulheres, as pessoas negras e indígenas continuam sendo as maiores vítimas da gritante exclusão social. Com elas aprendemos a resistir. Em segundo lugar, porque queremos e podemos descobrir as raízes negras do povo hebreu e de toda a Bíblia. De fato, antes de ser europeia, a Bíblia é afro-asiática. Não negamos a contribuição europeia ao nosso continente, queremos seguir trocando saberes com o chamado "Velho Continente". Mas denunciamos o cristianismo branco e opressor, com teologias que chegaram ao absurdo de justificar a escravidão negra (feita pelos brancos) e que continuam, muitas vezes, negando nossas raízes.
Não queremos fazer isso apenas pinçando textos bíblicos nos quais apareçam personagens africanas. Este até pode ser o primeiro passo, um exercício necessário e interessante. Mas é preciso mais do que isso, é preciso olhar toda a Bíblia na perspectiva da negritude. Porque essa é nossa experiência, ainda que negada: vivemos num país onde metade da população é afro-descendente. "Coincidentemente", é a metade mais pobre.
Que aceitemos o desafio de mergulharmos na Bíblia e na vida com nosso olhar afro-descendente. Afinal, por muitos séculos, fizemos isso apenas com o olhar europeu. Erramos e acertamos, agora vemos que é preciso mais. Ou manteremos a opção, muito mais cômoda e bem menos questionadora para nossa sociedade preconceituosa e racista, de continuar enxergando apenas um Jesus loiro, de olhos azuis e cabelos cacheados?
Extraído de Bíblia e Negritude – Pistas para uma leitura afro-descendente.