Militantes do movimento negro consideraram um “momento histórico” o reconhecimento pelo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da violência contra essa população de que existe uma prática genocida institucionalizada contra a juventude negra e pobre brasileira. “A CPI colocou o dedo em uma ferida grande. O Brasil não quer encarar esse problema. O racismo institucionalizado é o grande causador da matança de jovens negros. Essa é a principal conclusão do trabalho”, avaliou o frei David dos Santos, coordenador da ONG Educafro.
Para o frei, a afirmação de que o preconceito racial está naturalizado nas instituições brasileiras é fundamental para que o enfrentamento desse crime possa avançar, tanto em políticas afirmativas quanto no combate à discriminação. “O racismo está presente no policial que executa um jovem negro. Nos meios de comunicação, que naturalizam a conotação negativa a tudo que se relaciona com os negros. Na formação universitária, que tem apenas 2% dos docentes negros”, ressaltou.
O relatório final da CPI aponta a segurança como área onde o racismo é mais evidente. “No que diz respeito ao levantamento das causas e razões da violência contra os jovens negros e pobres, pode ser levantado que a razão primordial do genocídio institucionalizado de jovens negros e pobres é o racismo que, historicamente, acompanhou nossa trajetória. Não se pode perder de vista que o aparato estatal encarregado da segurança pública pauta a sua conduta pela manutenção da ordem pública. E (…) o conceito de ordem pública repousa na manutenção da cultura e das regras sociais que historicamente alijaram os negros de uma posição de dignidade no concerto social”.
A defesa da CPI quanto a sete projetos de lei e as cinco emendas constitucionais – que tratam desde a elaboração de um plano nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens até a desmilitarização das polícias e o fim dos autos de resistência – também são significativas para conseguir avançar tais pautas no Congresso mais conservador dos últimos 50 anos, defende Frei David.
“Temos consciência de que vai ser difícil, mas o movimento negro vai manter-se mobilizado. Foi com luta que conseguimos cotas e outras ações afirmativas”, afirmou.
Já o militante do Círculo Palmarino, Joselicio Júnior, conhecido como Juninho, considerou a CPI “um marco”, mas ressaltou que ela foi resultado da mobilização do movimento negro. “Esse relatório é um marco importante, sobretudo por dar visibilidade a algo que denunciamos há muitos anos: o racismo como prática de Estado e institucionalizado na sociedade brasileira”, afirmou.
Tendo acompanhado os trabalhos cotidianamente, Juninho lamentou as pressões que impediram um relatório ainda mais contundente. “Havia menções aos meios de comunicação, que desenvolvem uma cultura de medo e legitimam a violência contra a população pobre e negra. E também quanto a questões de gênero e diversidade sexual, que estavam no relatório preliminar. Mas a 'bancada da bala' e a 'bancada evangélica' pressionaram pela retirada desses itens”, relatou.
Mesmo assim, o militante exaltou as propostas apresentadas pelos parlamentares. “Temos de considerar conservador o Congresso que temos hoje. Uma CPI com essa finalidade, reconhecendo o genocídio contra jovens negros; recomendando a desmilitarização e um controle externo mais efetivo das polícias, além da criação de um plano e um fundo nacional para combater essa situação, é um grande avanço”, ponderou.
O Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens proposto pela CPI deverá ser focado, sobretudo, na população negra e pobre. E conter uma abordagem dos problemas de segurança a partir do desenvolvimento de políticas públicas em todas as áreas: educação, cultura, profissionalização, saúde, lazer, assistência, acesso à Justiça, entre outras.
Essas medidas seriam financiadas através de um fundo criado especialmente para combater a violência por meio de ações de promoção da igualdade racial. Esse fundo já é objeto da PEC 2, de 2006, que tramita atualmente no Senado.
Os parlamentares também apresentaram um projeto de lei para regulamentar o uso da força pelas polícias e manifestaram apoio à aprovação do PL 4.471, de 2012, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que extingue os autos de resistência. Os autos são documentos elaborados pelas polícias em caso de resistência à prisão, contra a qual foi empregada força letal. Os movimentos de direitos humanos denunciam que esse recurso tem sido utilizado para encobrir execuções, já que as mortes não são investigadas ao serem registradas dessa forma.
Por fim, o relatório elaborado pela deputada federal Rosangela Gomes (PRB-RJ) e aprovado por unanimidade recomenda que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, analise casos de chacinas e violações de direitos humanos denunciados à comissão durante as audiências realizadas. Entre os casos estão os chamados “Crimes de Maio”, quando pelo menos 505 pessoas foram mortas pelas polícias Militar e Civil paulistas, após os atentados cometidos pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), entre os dias 12 e 20 daquele mês, em 2006. Também menciona o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
A expectativa é que tais casos possam ser enquadrados no Incidente de Deslocamento de Competência, a chamada federalização. Esse procedimento é garantido pela Constituição Federal, em casos de violação de direitos humanos, em que fique demonstrada a incapacidade de conduzir o caso pelo Poder Judiciário, o Ministério Público e a polícia judiciária do estado onde o crime ocorreu.
Texto: Rodrigo Gomes