Um lugar que não é meu

Enquanto eu viajava confortavelmente num avião, ia pensando como seriam aqueles dias, no encontro com pessoas que eu só conhecia pela tela do notebook, nas coisas que iria ver em Campo Grande.

Sim, eu já havia estado ali naquela cidade, mas num contexto muito diferente.

Os primeiros olhares e sorrisos, encontrei no aeroporto, numa acolhida tão terna, que já aqueceu meu coração. Vi coisas na cidade, que nunca tinha visto e um sentimento de alegria começou a caminhar comigo.

O motivo de eu estar ali, tão longe do meu chão, era um seminário de um grupo de estudo bíblicos do CEBI – Centro ecumênico de estudos bíblicos, do CEBI MS (MS –Mato Grosso do Sul). Participo do CEBI em São Paulo e faço alguns estudos on line com pessoas do CEBI MS,  motivo pelo qual, recebi o convite de estar ali, naquele seminário. Primeiramente, eu desejava conhecer meu professor e algumas colegas desses cursos e também fazer novas aprendizagens.  No entanto, foi tanta surpresa, que eu conheci e vivi, foi muito além do que esperava.

Enquanto escrevo, relembro cada detalhe, que não quero enumerar aqui, não, todos não, pois quero guardá-los no meu coração como um tesouro precioso.

Depois de sentir-me acolhida, conhecer professor e colegas dos cursos, no sábado, partimos em direção ao seminário. O tempo estava muito quente e seco, mas tinha um vento soprando as coisas boas que iriam acontecer. E de lá para cá, nas ruas da cidade, iam aparecendo Ipês amarelos, majestosos, enfeitando os olhos de um amarelo cheio de esperança.

Chegamos na aldeia Água funda, do povo Terena,  por volta das duas horas, de chão de terra e poeira. Alguém que está lendo pode imaginar aqui, que iríamos ver aquelas ocas dos livros didáticos ou o pajé fazendo suas rezas e danças.  Não, o que encontramos foram casebres, barracos, feitos de madeirite, mais terra e poeira, um pequeno “campo” de futebol também na terra batida, num bairro em estruturação, ruas com grandes valetas, acho que na chuva nenhum carro entra ou sai de lá e alguns fios fazendo ligação clandestina de energia, os gatos.

Não era só isso, ao andar pelo pequeno espaço denominado “aldeia”, logo vimos pessoas ocupadas com seus afazeres, barulho de crianças correndo por lá, música alta bem próximo num lugar que parecia um bar, destoando das vozes das crianças e das pessoas com as quais fomos nos integrando. Numa das “casinhas”, uma das mulheres havia feito pães, tão lindos, pareciam tão saborosos, que despertavam o desejo de comê-los com um cafezinho. Será que tinham café por ali? Não sei, mas havia o pão, grande símbolo de comunhão.

Minha boca calada, meus olhos extasiados pela simplicidade e pela alegria da rotina de trabalho que eu ia percebendo. As mulheres estavam ocupadas em preparar as vestes das crianças para a dança. Em nenhum momento pareciam preocupadas em correr com o trabalho, somente em fazê-lo. Parecia que tinham todo o tempo do mundo. Quanta diferença pra mim, que sempre medi o tempo cronometrado no relógio, horário de dormir e de acordar, aulas, horários de compromissos, despertador pra não perder nenhum tempo e irritação com quem se atrasava. Ali, o tempo era outro, o tempo da vida, do sol e da lua marcando espaços, o tempo da criação: “Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para dominar o dia, o luzeiro menor para dominar a noite, e também as estrelas” (Gn1,16). Meu coração começou a se desconstruir. Consegui entender na prática o que Nobert Elias escreveu em seu livro  “Sobre o tempo” de como o tempo que conhecemos é uma invenção humana.

Sentadas embaixo de um barraco quente e com cheiro de chão, esperamos as pessoas da aldeia irem chegando. Então, a celebração começou. Um mulher, Darlene, professora, mãe e líder, contou-nos como se organizavam por ali. Havia um cacique, mas eram as mulheres que organizadas, aprendiam, cuidavam, ensinavam, faziam e resistiam das tantas desigualdades causadas pela prepotência humana, que esquece que somos todas irmãs e irmãos.

Há um trabalho de preservação da cultura no ensino e registro da língua Terena, na preservação das manifestações culturais nas danças, rezas, cantos, no grafismo e no artesanato, colares, pulseiras, cerâmicas, panos de prato, pães. Não há dinheiro. O pouco que conseguem vem do trabalho das mãos, que artesanalmente, buscam seu sustento, vendendo suas produções. Há trabalho, nem sempre há material para trabalhar, nem sempre há comida para todas. Ali não há recursos, não há a certeza da colheita, num chão que não é “seu chão”.

Ouvimos atentas as apresentações, as falas e histórias, a realidade, na língua Terena e no Português, fomos abençoadas e uma ternura, que nesse momento me dá lágrimas nos olhos, encheu meu coração.

Enquanto eu sentada ouvia a vida daquele povo, próxima de mim, uns olhinhos curiosos, me deram o sorriso mais doce e cheio de esperança que já vi. Num sinal, pedi para fotografá-la e registrei aquele encanto.  Uma pequena rainha coroada. Mais tarde, ainda ganhei um abraço e uma flor amarela, que trouxe comigo. É agora um símbolo de amor, um sacramento.

A festa continuou, celebramos a vida, na dança das mulheres, anciãs e crianças, a dança do guerreiro, os símbolos de um povo que resiste. No meio do chão e do pó, os pés na terra, o ritmo, os passos e seus significados. Há dificuldades, mas há alegria e esperança. Em meu corpo uma vontade imensa de dançar com elas.

Terminada a dança, começou a partilha dos alimentos. As crianças, primeiro, depois as demais. Esse cuidado com os pequenos, sublime cuidado de um povo para quem educar a criança é garantia de existirem pessoas boas. A alegria por um simples cachorro quente e um refrigerante era ruidosa, era festa, era música, era celebração.

Escurecia e o cheiro da noite vinha nos encontrar, momento de irmos para outro lugar. Fui, mas larguei um pouco de mim no pó, nos olhares, na surpresa que é a vida.

De volta, no carro, eu olhava as luzes da cidade, os faróis dos outros carros, distraída e ainda sentindo um abraço caloroso, acolhedor, quase de mãe, que recebi no caminho.

Depois da nossa mesa farta, a gente tinha boa comida ali, no seminário dos Pobres servos, nos esperando, enchendo o estômago de delícias, mas de reflexão, porque saímos de um lugar, que nem sempre tem comida, mas tem criança, e, se criança passa fome, eu não posso descansar. Pensei nas palavras de Mateus: “felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Cf Mt,5,6).

Chegou a juventude, o grupo Xovo-xovó, de Sidrolandia. Vieram com cantos, celebrando conosco a vida, mostrando o quanto estão organizados, como tem tentado preservar sua identidade étnica e cultural. Eram quatro guerreiros, não como os cavaleiros do apocalipse, mas quatro jovens, tão meninos ainda e com tantas lutas a enfrentarem. A luta da perda da identidade, da exclusão por serem indígenas, da falta de oportunidades, da exploração do turismo, da expulsão de sua terra, das drogas, da prostituição, do suicídio.

Mas não pense, você, leitora em ter pena. Eles são guerreiros e estão trilhando o caminho de preservação de suas origens e de sua identidade. Sabem quem são e de onde vieram. São vida que pulsa, são coragem e são ensinamento. Os jovens têm muito que ensinar. Tivemos naquela noite, uma grande lição. Principalmente, lição de coragem e de esperança. É preciso resistir. É preciso sonhar. “A utopia é nossa causa, porque somos esperança e libertação; mas a utopia só é crível quando é forjada no dia a dia, assim como o dia a dia só se torna suportável pela força da utopia” (P. Casaldáliga & JM Vigil, p222, 1994)

Terminada a atividade noturna. Silêncio grande no coração antes de dormir. Os olhos fitos na escuridão, refletindo.  É preciso fazer mais. Como posso ajudar sem invadir? Como posso aprender a respeitar o que não é igual?

Domingo. Começamos partilhando nossas impressões do dia anterior. Que riqueza! Foi quase uma oração. Dizem, que a oração tem o poder de mudar, de salvar, de nos curar. E estávamos nos curando, nos desconstruindo de nossa cultura e escolaridade colonialista, que faz de nossos irmãos e irmãs indígenas, figuras exóticas, romantizadas e instagramáveis. Que as separa, que as exclui, que as mata. Estávamos deixando para trás décadas de ignorância, de preconceito, de prepotência.

Chegou o Antonio Seize. Ele é doutor, que moço estudado! Mas ele também é indígena, Terena.  Deu-nos um banho de realidade. Falou com tanto amor e sabedoria do seu e de outros povos. Partilhou conhecimento, partilhou sua vida. Disse-nos da importância da ancestralidade, do conhecimento que ela deixou na pele da cada indígena. Eles são o que são, porque existiram os ancestrais e suas escolas feitas na oralidade. Sérios ensinamentos transmitidos pelas gerações.

Olhamos surpresas umas para as outras, quando ele nos disse que o suicídio tão presente entre os jovens, é causado pelo silenciamento de suas vozes, imposto pela cultura diferente da cultura deles, que quer dominá-los e suprimir seus costumes. Como para a cultura Terena, a garganta é onde passa o sopro de vida, a fala, quem não fala, quem perde a voz, não vive, é melhor morrer e voltar para a liberdade do “chaco”, local de onde eles acreditam que foram retirados, de onde nasceram.  Por isso os suicídios dos jovens, são por enforcamento, por não poderem falar quem são, sufocam a voz, já se sentem mortos em vida.  Para os Terena, a  relação com a morte é a passagem de retorno para a terra de onde vieram. A terra de onde vieram é o seu lugar, lá eles retomam a fala e a vida.  Assim, não querem uma terra estranha, que não tem nada a ver com eles, querem estar próximos de onde surgiram, de onde se encontra sua ancestralidade.

Com que amor, Seize, falou de seu povo e de suas origens.  Da sua cultura, da sua luta em registrar, academicamente, a sua história, demonstrando e preservando sua identidade. Do quanto, mesmo tendo estudado muito, o que ele é, sua identidade, permanece no seu corpo, ele é Terena.  Que aula de história! Que aula de Brasil! Que aula de humanidade!

Enquanto ele falava, eu presa nos ensinamentos, estava como que, sob encantamento, enfeitiçada pela sabedoria, mas ciente de minha ignorância. E novamente uma pergunta: como isso tudo pode ir além daqui? Como partilhar esse conhecimento? O que eu posso fazer?

Eu escutava, e em alguns relatos da sua cultura e espiritualidade, eu encontrava coisas que já fiz, que também acreditava, que vi nas pessoas com as quais cresci, na minha família e nos arredores dela, que estão embrenhados nos meus costumes, no meu corpo, na história que ouvi de que uma bisavó foi “caçada no laço”, nos sonhos que tive e vi acontecerem, nas  plantas que uso como remédio, naquilo que o vento sussurra em mim, no quanto de indígena mora no meu ser. O quanto sou.

Fiquei quieta, muito quieta, porque tudo que ouvi falou tão fundo em mim. Está latejando no meu coração. Enquanto escrevo ainda faz tremer a minha pele.

Era um seminário sobre espiritualidade. Onde está a espiritualidade nisso tudo? Está encarnada na vida. Está quando fincamos os pés no chão, no chão que a gente vive ou num lugar que não é seu. Quando sentimos que a dor da outra é a nossa dor, que a sua alegria é nossa alegria, que a sua esperança é a nossa esperança. Quando compreendemos que a nossa realidade se mistura com a da outra. Que sozinhas nada somos. Que precisamos estar juntas pra existirmos. Que a humanidade é bem parecida, independente das nossas características físicas, da cor dos nossos olhos, da nossa comida preferida. Que a espiritualidade não está nas nuvens distante de nós, nem precisa de grandes ritos e nem nos faz levitar. Ela pode ser encontrada num olhar inocente de uma criança, que apesar dos pesares, no meio da poeira e da miséria, nos transmite num sorriso a esperança.

Regina de F. Marchesini Souza – Mestre em Educação, Esp. em Sagrada escritura e sempre aprendente.

Referências

– Bíblia Pastoral. São Paulo: Paulus, 2014.

– CASALDÁLIGA, P & Vigil, J M. Espiritualidade da Libertação. Petrópolis,Vozes, 1993.

– ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1998.

 

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