Reflexão do Evangelho

Quaresma: Um Retiro de 40 Dias

Nesta quarta-feira dia 05 de março iniciaremos o tempo da Quaresma. Na espiritualidade cristã temos tempos propícios para revermos nossa vida e nos dispormos a uma vivência mais coerente do Mistério Pascal de Cristo que celebramos em toda sua intensidade e esplendor na Vigília Pascal.

A Quaresma tem uma história. Nos três primeiros séculos havia somente o jejum de três dias antes da Páscoa. No século 5 há uma preparação de seis semanas. Ela se desenvolveu a partir da reconciliação dos penitentes na manhã da Quinta-Feira Santa que se preparavam com 40 dias de jejum. Recebiam as cinzas para indicar a penitência. Mais tarde a Igreja adotou esse uso para todas as comunidades.

Iniciamos esse tempo quaresmal como um espaço de recolhimento e oração pessoal, comunitária e social onde vivemos uma maior intimidade com Jesus e desejamos dar passos firmes em seu caminho fortalecendo nossas lutas e compromissos. Passamos com Ele pela morte para chegar à Ressurreição, uma experiência que nos exige abertura de coração e responsabilidade com a vida em suas mais diferentes dimensões. Chamamos este tempo de momento de conversão e de penitência para fortalecer no combate contra os males promovidos pela perversidade do sistema individualista, das submissões do mercado financeiro e da morte promovida a céu aberto nas diferentes janelas desse tempo, isto é, vemos claramente a institucionalização do pecado pessoal e social como mecanismos que destroem a dignidade humana.

O povo do Primeiro Testamento era conclamado pelos profetas a uma conversão para Deus e fazia celebrações penitenciais pelos pecados. Os profetas clamavam: “Voltai a mim com todo vosso coração com jejuns, lágrimas e gemidos” (Joel 2.12).

O pecado é a expressão mais acabada de nossa fragilidade. Somos pó e um pó que nem sempre produz vida. A palavra de Deus reconhece: És pó e em pó hás de tornar (Gênesis 3.19), como está descrito logo no início das Escrituras após a condenação do ser humano: A pessoa é como a flor do campo que hoje está viva e, passando o vento, já desaparece (Salmo 103.15).

A fragilidade da pessoa faz parte da sua constituição de criatura finita. Esta fragilidade se deteriora em seu ser profundo quando existe o pecado, isto é, a recusa de Deus e a recusa de sua finalidade de buscá-lo na comunhão de irmãs e irmãos. A própria Escritura dá o exemplo deste egoísmo ao narrar a onda de males que cresce após o pecado, o fratecídio: Caim mata o próprio irmão Abel. Esses males se propagam por todo o universo, prejudicando a própria inocente criação. Neste tempo quaresmal o chamado que nos é feito é sobre como devemos nos comprometer com o cuidado da vida, sobretudo com a vida de nosso planeta. É preciso propagar uma cultura da “globalização da ecologia”.

Se não houver o reconhecimento da fragilidade e a conversão do coração, como sugere Jesus no Evangelho (esmola, oração e jejum, conforme Mateus 6.1-6,16-21) a terra se tornará, também ela, pó sem vida. O rito das cinzas não é uma lembrança do antanho, coisas da superstição, mas é uma profecia de hoje para salvar as pessoas e o mundo. Por isso Paulo chama para aproveitar bem este tempo favorável: “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2 Coríntios 6.2).

Na Quaresma lembramos o jejum de Jesus. Ele sofreu a tentação em toda sua vida. E foi vencedor. Fazer penitência não é sofrer. É fortificar-se. As pessoas malham e fazem regimes mortíferos para manter-se em forma. Um atleta está em contínuo exercício para poder vencer a disputa. Do mesmo modo, para levar nossa natureza humana e espiritual a estar pronta para vencer os males que nos cercam e viver saudavelmente, necessita de um treinamento vigoroso.

A penitência nos fortalece no combate contra o espírito do mal! Houve tempo que a penitência era castigar o corpo. Jesus ensina a domar o coração e a fonte de nossos desejos. A pessoa vencerá se vencer seu coração e se tornar dona de seus sentimentos, desejos, afetos, ambições, orgulhos. Se o jejum, a penitência, a esmola não entrarem em nosso interior, não estaremos prontas. Se não é provada, não pode ser comprovada.

Jesus manda fazer tudo no segredo do quarto. Em segredo quer dizer feito com o coração, não só como uma técnica, mas como um caminho de conversão. Fazendo a comparação com os fariseus que mostravam o que estavam fazendo para orgulho pessoal, Jesus ensina a intimidade com Deus, no silêncio do coração. O que nos falta muito, é o silêncio interior que nos coloca no relacionamento com Deus, num tempo em que parar e dá o tempo a si, parece perder tempo, oportunidades e dinheiro: o ativismo não é um lugar para a vida de intimidade consigo e com Deus.

Sintetizando as três modalidades de conversão (o jejum, a penitência e a esmola), Jesus diz que elas devem ser ocultas para não ser para os outros, mas para Deus. Isso não elimina o testemunho. E tudo na mais pura alegria, pois a conversão não é dor ou tristeza, mas satisfação de encontrar as riquezas do Reino de Deus. É bom, ao iniciar a Quaresma, procurar uma penitência (que não prejudique a saúde) que ajude nossa conversão.    

O clamor da Quaresma é o convite: “Deixai-vos reconciliar com Deus” (2 Coríntios 5.20). Buscai o Senhor e Ele se deixará encontrar. Por isso Jesus diz que é preciso ter o rosto alegre, pois não se trata de dor, mas de mudança de atitude que nos leva ao encontro com Deus. É um tempo de nos recolhermos um pouco mais dentro de nós mesmos e, na oração, conhecer nosso interior e trabalhá-lo para que seja mais apto para enfrentar a mudança que a Páscoa exige de nós: “Nós vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus” (2 Coríntios 6.1).

A Quarta-Feira de Cinzas é a porta que nos é aberta para vivermos um retiro de quarenta dias que mexa com nossas estruturas pessoais e nos instigue a nos comprometer com a vida, defendendo-a e promovendo a Boa Notícia do Evangelho.

Claudio C. de Miranda
Clérigo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB / Diocese da Amazônia

 

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