Autor: Eduardo Dias Maciel
Postulante da Congregação dos Padres e Irmãos Paulinos e graduado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção, é um dos autores do “Devocionário Juvenil Mariano”, lançado pela Editora Paulus em 2022.
Convite…
Oi, antes de você desistir de ler este texto por achar chato ou cansativo, deixe-me te motivar a continuar! Quero compartilhar algo de coração, sem fórmulas mágicas ou discursos complicados. Afinal, nosso amigo Jesus não precisou de muitas palavras, tratados ou formalidades, porque Ele as viveu plenamente; aliás, deu um novo sentido, uma nova maneira de viver a lei do amor. Se fosse para continuar como estava, estaríamos reproduzindo o “de sempre”, mas nós atualizamos todos os dias o grande Mistério de Amor: na mesa da Palavra e da Comunhão.
Caminhando por Roma, vi um anúncio que dizia: “O valor do passado e a mobilidade do futuro, juntos na cidade”. Isso me fez pensar a semana toda sobre o que essa frase tem a ver com a nossa vida e como tudo se interliga na Casa Comum. Podemos fazer uma releitura e dizer: “O valor da Tradição, a urgência do presente: todos juntos rumo ao futuro da Igreja”. Com isso, quero refletir sobre três realidades que vivemos e caminhar juntas nessa reflexão, concordando ou não:
- Tradição: É o testemunho das pessoas cristãs de ontem, hoje e sempre.
- Presente: É o resultado da criação de Deus em comunhão com a humanidade.
- Futuro: É o caminho que podemos trilhar com nossas vidas compartilhadas.
Não somos o Cristianismo do “sempre”, não somos a comunidade da jurisdição, somos o povo do Deus vivo: Pai Criador, Espírito Santificador e Filho Redentor, a Comunidade de Amor. Temos leis e organizações, mas elas não podem se sobrepor à vida, sobretudo das pessoas que estão à margem. Jesus não deu pleno cumprimento ou aprimorou o que já estava sem Espírito, pela dureza de coração; ele mesmo fez novas todas as coisas: viveu, ensinou, transformou e deixou a base do encontro com Ele, e consequentemente da experiência cristã: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Algo que se lê e fica bonito, mas tão difícil na prática!
Um homem apaixonado pela comunicação, chamado Tiago Alberione, fundador da família Paulina, dizia que “sentiu-se obrigado a preparar-se bem para fazer alguma coisa pelas pessoas”. Não se pode só falar, é preciso ter conteúdo para se anunciar, porque podemos entrar numa vibe superficial, fundamentalista e conservadora, em que o conhecimento ou jurisdição anula a experiência sacramental da misericórdia e da reconciliação em que cremos. Sobre isso, o Papa Francisco falou em uma entrevista: “O conservador é aquele que se apega e não quer ver além. Isso é uma atitude suicida, porque uma coisa é levar em conta a Tradição, mas outra coisa é fechar-se em uma dogmática quadrada”.
O termo “conservador”, tão recorrentemente utilizado com tom de virtude na atualidade, se colocado em perspectiva histórica, demonstra sua verdadeira face. Diversas pessoas santas, veneráveis, bem-aventuradas… foram duramente criticadas pelos ditos “conservadores” de seu tempo. Tomemos como exemplo o caso de Jonathan Daniels, de venerável memória. Seminarista da Igreja Episcopal (Anglicana) e ativista dos direitos civis, preparava-se para ser ordenado Reverendo quando foi assassinado, em 1965, ao defender o jovem afro-americano Ruby Sales. Jonathan foi martirizado por Tom Coleman, na época, o deputado conservador, que defendia que pessoas negras continuassem sendo segregadas, porque, segundo o pensamento da época, isso era Bíblico e “sempre foi assim”. J. Daniels se torna exemplo daquilo que Deus espera dos seus Santos, a defesa da vida e da liberdade. É redundante falarmos em evangelho da libertação, pois toda a mensagem de Cristo nos fala sobre liberdade.
As comunidades cristãs nos ensinam a não usar a Tradição como ferramenta de separação, mas como uma realidade de reconciliação, não um fechamento, mas uma abertura respeitosa. Não podemos negar nossa fé, mas tampouco podemos usá-la como cruzes para crucificar o diferente ou, muito menos, podemos, a partir da nossa fé em Deus Criador, negar que Ele é Pai e Mãe de todos. Portanto, todos nós somos seus filhos e filhas e precisamos caminhar juntos como tal, porque somos a família de Deus.
E, sobretudo, uma Igreja que se abriu ao diálogo com o mundo: já não vista a priori como inimiga, mas reconhecendo a legítima autonomia das realidades terrenas, redescobrindo a solidariedade natural que a une ao gênero humano. E esta abertura, recordou o Papa no Tertio Millennio Adveniente, foi “a resposta evangélica à evolução recente do mundo com as experiências chocantes do século XX, perturbado por uma primeira e uma segunda guerra mundial, pela experiência da concentração e massacres horríveis. O que aconteceu mostra mais do que nunca que o mundo precisa de purificação; precisa de conversão. E a Igreja foi a primeira a dar o exemplo. Através do Concílio, tomou novamente consciência daquele elemento fundamental da sua própria natureza – ‘santo ao mesmo tempo e sempre necessitado de purificação’, ‘Ecclesia semper reformanda, Ecclesia semper purificanda’ – que desde os tempos da Contra-Reforma, desde o Concílio de Trento, as circunstâncias históricas muitas vezes acabaram por ser sacrificadas a uma atitude apologética.” (Gian Franco Svidercoschi, Revista “Tertium Millenium”, no novo milênio no roteiro traçado pelo concílio, 2000).
Não se pode desprezar o estudo, pelo contrário, é necessário conhecer, mas não podemos incorrer no desequilíbrio teológico, aliás, desequilíbrio humano, de tratar uma pessoa como número ou objeto jurídico. Como dizia São Paulo na segunda carta aos Coríntios: “pois a letra mata, e o Espírito é que dá a vida.” Não podemos tratar as pessoas como réus de um tribunal e “resolver” tudo com o uso de uma lei ou disciplina.
Deus, que conhece nosso coração, nos ajude a ser jovens cheios de sonhos e esperança, que não aceitam a indiferença e a exclusão, mas se apaixonam por Jesus, que está vivo e entre nós, e procuram colocar em prática seus ensinamentos. Cristo vive!
Por uma Tradição…
Quando falamos da Tradição das primeiras comunidades cristãs, não estamos falando só de coisas antigas. A Tradição vem dos apóstolos, das primeiras comunidades nascentes, patriarcas, matriarcas (Gn 16,1-16), profetas, profetizas (Jz 4; 5) (Ex 1,15-22) (Ex 2,1-10; 15,19-21), reis e de todo o povo de Deus que fez história. Antes de ser escrita, a Tradição foi vivida, proclamada e compartilhada com muito amor e sacrifício.
Nós, como jovens pessoas cristãs, não podemos olhar só uma parte, como os “antolhos” de um cavalo, e ter uma visão incompleta e contraditória da Tradição do Cristianismo. Por vezes, os fechamentos são conscientes, quando se formam grupos privilegiados e parciais, avessos a qualquer discordância, conferências fechadas, pessoas seletas.
Todas as ações que levam em primeiro lugar interesses e desejos escusos são demoníacas, porque dividem o povo de Deus, quando não estão em unidade com as conferências, comunhões, papado, patriarcado, governos ou qualquer líder responsável pelo pastoreio daquele povo, ao ponto de financiar pessoas e tecnologia para produzir conteúdo falacioso, como os ataques às campanhas da CNBB no Brasil, se autointitulando exímios detentores do Mistério Trinitário. A raiz é o egoísmo, o eu, eu e meu grupo, e eu os favoreço. Deus não usa essa lógica “barganhista”.
Ignorar o caráter vivo da Tradição é ignorar a ação do Espírito Santo; torna-se contraditório quando se opõe ao Magistério de qualquer comunidade de fé, que possui uma liderança, na Igreja Católica, por exemplo, por meio do Papa Francisco e pelos Bispos, no Brasil, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Não se pode ser fiel à tradição rompendo o vínculo de unidade com a liderança constituída por aquele povo, a quem Cristo confiou a unidade.
A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa incompleta e contraditória noção de Tradição. Incompleta, porque não tem suficiente consideração pelo caráter vivo da Tradição, “que ― como é claramente ensinado pelo Concílio Vaticano II ― sendo transmitida pelos Apóstolos ― progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração, quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade”. Mas é sobretudo contraditória uma noção de Tradição que se opõe ao Magistério universal da Igreja, do qual é detentor o Bispo de Roma e o Colégio dos Bispos. Não se pode permanecer fiel à Tradição rompendo o vínculo eclesial com aquele a quem o próprio Cristo, na pessoa do Apóstolo Pedro, confiou o ministério da unidade na sua Igreja. (JOÃO PAULO II, Carta Apostólica “ECCLESIA DEI”, 2 de julho de 1988).
Somos a Tradição de um Deus que se fez humano por amor, viveu entre nós e se comunicou com as primeiras comunidades, mesmo em tempos de perseguição e morte. Deus revelou seus mistérios a homens e mulheres ao longo da história e continua a falar conosco hoje, nos ligando às raízes da nossa fé. A Tradição é viva, acontece agora, não está no museu, não está arquivada!
Por um agora…
Hoje se fala muito de uma grande crise no cristianismo, como se no passado não houvesse momentos que mudaram drasticamente o rumo da humanidade. Na história do povo de Deus, nada foi construído isoladamente ou sem influência subjetiva.
Um exemplo é a ideologia do nazismo, que causou tantos horrores, e hoje encontramos um forte movimento de pessoas e grupos que apoiam essas ideias: de um povo “eleito”, “perfeito” e usam da tecnologia e da inteligência artificial para espalhar “fake news” e se organizar.
Podemos encontrar hoje na sociedade, inclusive, muitas pessoas qualificadas profissionalmente que utilizam tantos meios para se comunicar, produzindo ou compartilhando conteúdos para outrem, mas vivendo sob uma grande quantidade de remédios e auxílios profissionais, pessoas emocionalmente frágeis e em estado constante de perda de sentido da vida e de identidade. Quantos jovens passando por doenças neurológicas e transtornos mentais, como a depressão, transtorno afetivo bipolar, esquizofrenia, psicoses e tantos outros…
A crise é do cristianismo ou de uma sociedade construída doentiamente? A crise entre nós, jovens, vem de agora ou algo ou alguém que provocou em nós? Não se trata de jogar a responsabilidade, mas sim de reconhecer que o que vivemos hoje não começou agora. Talvez agora esteja mais evidente e exposta, inclusive, pelas redes sociais.
Todas as comunidades cristãs são parte da sociedade, e muitos de seus membros estão expostos a realidades extremas: desde o moralismo e legalismo nas redes sociais, passando pela exposição íntima excessiva, até comportamentos que misturam o “tradicional” com o “carismático” ou “moderno”, sem uma identidade consistente ou integrada. Como diz o artigo sobre o livro “O novo rosto do clero”, aplicando a realidade católica:
“Entre outros aspectos, a pesquisa mostra os ‘padres novos’ em meio a práticas pastorais e comportamentos pessoais, por um lado, ligados aos valores da ‘pós-modernidade’ e às novas tecnologias e, por outro, a devocionismos e tradicionalismos nostálgicos de um passado sem retorno. Com isso, constituem-se em um sujeito ambíguo, entre o distanciamento da renovação do Vaticano II e da tradição eclesial libertadora e inovações por eles veiculadas a serem levadas em consideração. Os ‘padres novos’, por suas práticas pastorais e comportamentos pessoais, têm promovido na esfera da experiência religiosa, o deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético. É um novo sujeito incômodo, pois tem provocado tensões e entraves nos processos pastorais em curso, tanto entre os presbíteros nas Dioceses, como em relação às religiosas e aos leigos e leigas nas Paróquias onde atuam.” (https://vozes.com.br/blog/o-novo-rosto-do-clero)
Por um amanhã…
Ao passo que são muitos os que realizam trabalhos de grande relevância e seriedade, que geram processos úteis e necessários para o cristianismo e a sociedade. A nossa geração é conectada e acompanha todos os movimentos que ocorrem no mundo e nas instituições, e é por meio de testemunhos credíveis e harmoniosos que podemos ver quantas iniciativas benéficas e ao modo de Jesus são feitas mundo afora.
São muitos os desafios que as lideranças cristãs têm falado, de guerras nas relações humanas, que desembocam em centenas de vítimas inocentes em guerras nas suas mais diversas facetas, desde ideológica a econômica. Sem olhar para o passado, analisar o presente e agir para construir um futuro melhor, nada muda de verdade. A transformação começa em cada um de nós, mas também precisa de colaboração mútua para iniciativas que promovam o crescimento biopsicossocial e místico das pessoas, sobretudo de nós, jovens.
Assim, podemos nos tornar pessoas mais saudáveis em todos os aspectos, capazes de enfrentar situações adversas e lidar com a própria humanidade. É tempo de, como jovens, caminharmos juntos, reclamarmos menos e começarmos a partir de nós mesmos, a fazer algo que contribua para que o Reino de Deus cresça entre nós, rumo à “civilização do amor”, que derruba os muros da inimizade e nos faz construir pontes que promovem o diálogo e o respeito entre os filhos e filhas de Deus.
São Paulo, na carta aos Romanos (Rm 12,4-5), diz: “Num só corpo há muitos membros, e esses membros não têm todos a mesma função. O mesmo acontece conosco: embora sendo muitos, formamos um só corpo em Cristo, e, cada um por sua vez, é membro dos outros”. Meus irmãos e irmãs, avancemos para águas mais profundas, pois o Espírito ora em nós e por nós!
Referência:
https://www.vatican.va/jubilee_2000/magazine/documents/ju_mag_01051997_p-49_it.html