Artigos e Reflexões

Uma agenda ecológica e anticapitalista para 2022: A Economia de Francisco e Clara

 

Por Eduardo Brasileiro e Gabriela Consolaro Nabozny

A mudança radical do sistema de morte que governa o mundo pode estar em nós por meio de nossos sonhos e nossos gestos, em nossas comunidades. É possível que estejamos falando de uma cura coletiva diante de uma doença que nos abateu. É certo que se trata de um mergulho sobre o potencial ecológico anticapitalista do ser humano não visto em tempos da economia da destruição.

O século XX foi um ensaio da beleza e do horror construídos no segundo milênio. Nele, a economia de latifúndio escravagista tomou corpo na industrialização e no desenvolvimentismo, a sede de progresso tecnológico foi entremeada por guerras, massacres e conflitos de ontem e de hoje. Foram escritas novas formas de colonialismo e de aprofundamento do capitalismo, ambos, portanto, como corpo e forma da economia do presente. No mesmo século também foi possível alcançar a arte na profundidade da alma humana, com as novas formas de organização e de luta, de conquistas e da marca da resistência como perenidade do ser humano em sua busca pela liberdade. Tempo das lutas pela erradicação da fome, da educação como prática de liberdade, da política como bem comum, tempo das redes de resistência de comunicação livre.

O ser humano também passa por uma transição. Do agrarismo do final do século XIX para o industrialismo do século XX, para enfim a era do trabalho imaterial. O capitalismo neste último período financeirizou-se e isso acarretou em concentração de renda nunca antes vista na história da humanidade, somada a uma destruição do trabalho na sociedade de classes. No mundo, o processo de destruição da seguridade social e de todas políticas sociais está mais agressivamente presente no advento do neoliberalismo, doutrina econômica que constrói o sujeito empresarial. O ‘patrão de si mesmo’ é um modo de vida do imperialismo às avessas, propondo que você seja uma empresa, dê lucro, tenha produtividade e gere suas finanças, em meio ao abandono de qualquer política de proteção que o Estado pode prover no século passado.

O desafio para este tempo do mundo reside numa nova subjetividade, em que espiritualidade libertadora e pluralista somada a contra-condutas diante do império neoliberal reposicionem uma nova forma de estar no mundo. O Papa Francisco, se não atento a isso, pelo menos atento aos protagonistas da história, os empobrecidos, conectou aos movimentos populares uma nova ação eclesial engajada: a Laudato Si’ – Sobre o Cuidado da Casa Comum e a Frateli Tutti – Sobre a Fraternidade e a Amizade Social, são cartas que anunciam esse limiar. A reconstrução da ecologia integral e fraternidade universal aponta a retomada do ser ecológico do humano e da economia como mote de solidariedade e nova cultura de relações, não mais líquidas e descartáveis, mas territoriais e fraternas.

A Economia de Francisco e Clara é uma ferramenta desse instrumento revolucionário: potentes narrativas e inserções territoriais, a fim de construir nova rota para a produção e consumo. No Brasil, ao chamado do Papa Francisco para a Economia de Francisco foi feito uma inclusão contestatória: Clara. No nome da jovem que, com ousadia e coragem, rompeu os vínculos familiares e financeiros para seguir o pobrezinho de Assis, são lembrados todos os grupos colocados à margem da sociedade que se constrói para gerar exclusão. O movimento brasileiro abraça as figuras não vistas pelo recorte do Norte e coloca a mulher como protagonista. Nesse chão, a Economia é também de Clara porque carrega a garra de Marielle, a coragem de irmã Dorothy, a bravura de Margarida Alves. Só assim faz sentido.

A face latino-americana caracteriza o levante anticapitalista que se forma e fortifica a partir do chamado no Brasil. Por ser originado na perspectiva nortista, nem tudo se enquadra à realidade de um povo que é singular, o que permite construções particulares e direcionadas a uma história de lutas anticolonialistas e de libertação. O desejo pelo resgate de uma organização nacional integral e insurgente traz lembranças de esperança e reacende a chama em muitas pessoas que já não acreditavam mais. Por outro lado, o direcionamento inicial às juventudes do convite para ir até Assis, na Itália, fez somar à construção muitas outras pessoas ainda não inseridas nesse contexto. Dessa mescla efusiva, borbulham ideias, força e vontade, que desaguam em uma articulação nacional e outras tantas organizações territoriais, pensando o contexto e trabalhando em alternativas.

Os povos, nos movimentos populares, organizações da sociedade civil, professores/as, juventudes e ativistas, entendem esse chamado por um ideal de vida, de solidariedade e ecologia integral como chave emancipatória: uma oportunidade de construir outros mundos. Na realidade latino americana pulsa o resgate do Bem Viver dos povos originários, a mudança da lógica de extrativismo desenfreado para a sintonia com a Mãe Terra, ao conceber relações que a respeitam como Irmã, sem que seja indistintamente serva do homem. Por isso o chamado a re-almar a Economia passa pela ecologização do pensamento e das ações. O que significa deixar o modelo antropocêntrico de apropriação da natureza para a concepção de que o ser humano com ela convive, em uma dança infinita que possibilita a própria existência. Como na dança, a sincronia e o respeito devem deslizar suavemente para tornar possível a vida. A luta pelas práticas agroecológicas, pela aproximação do campo e da cidade, pelo fim do dos latifúndios e suas monoculturas, perpassa o ideal da Economia de Francisco e Clara, que, além de anticapitalista, é ecológica.

Na perspectiva de transpor a subjetividade neoliberal que transforma as relações para torná-las consumo, individualismo e indiferença, o chamado é para a construção de um novo tempo. Para unir as práticas já existentes de economia solidária, bancos comunitários, moedas sociais, cooperativas, em um horizonte comum. Na certeza de que todas as lutas são atravessadas pela vontade de construir um futuro de igualdade, justiça social e fraternidade. Para isso, o enraizamento desses valores é fundamental. Torna-se necessário abraçar os territórios, fomentar o ressurgimento da solidariedade comunitária, da organização popular, da efetiva democracia. Não se quer inventar a roda, nem se ignora o esforço de tantas pessoas com esse mesmo objetivo há muitos anos, mas se aproveita uma oportunidade. A oportunidade de ampliar o chamado, de formar pontes, de renovar esse compromisso e de potencializá-lo. Economia de Francisco e Clara é potência. É resgate, reforço, impulso.

As economias transformadoras que o chamado do Papa começou a instigar vão brotar (e já brotam!) das periferias. Das lutas populares, das necessidades, da criatividade e da irreverência. Para juntar essas potencialidades às tantas pessoas que se somam a partir da Economia de Francisco e Clara, germinam as Casas de Francisco e Clara. Com o conceito simples de ser um lugar de referência na comunidade e de construir coletivamente ao povo possibilidades concretas de respostas aos problemas locais, são lugares-farol de esperança, para reunir juventudes e quem mais interessar na construção de novos horizontes.

As Casas de Francisco e Clara expressam a vontade do surgimento de um novo lugar para o pluralismo religioso atravessar as práticas comunitárias, formando elos inexistentes ou fortalecendo aqueles já fragilizados. Nas Casas, pretende-se a valorização da cultura local, das manifestações espirituais cultivadas nos territórios, das necessidades latentes e da sede pela Terra sem Males. O convite se faz para reorganizar os espaços, chamar o povo para junto, ocupar espaços que respiram morte de um sistema econômico perverso e fazer, novamente, florescer a capacidade de sonhar e construir outros mundos.

Eduardo Brasileiro, é sociólogo e educador, integrante da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara e da Coordenação da 6ª Semana Social Brasileira da CNBB. Trabalha no NESP – Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas, onde é mestrando em ciências sociais e atua no Instituto Cultiva com o projeto Comunidades Educadoras.

Gabriela Consolaro Nabozny, Secretária Nacional de Formação da Juventude Franciscana (JUFRA) do Brasil e integrante da Articulação Brasileira Pela Economia de Francisco e Clara. Mestranda em Direito Ecológico e Direitos Humanos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Grupo Transdisciplinar em Pesquisa Jurídica para uma Sociedade Sustentável – CNPq/UFSC.

 

*Texto publicado originalmente na Agenda Latino Americana 2022

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