Articuladora nacional da rede Jubileu Sul Brasil, Sandra Quintela critica o uso da religião como instrumento de manipulação na política
por Fabiana Reinholz, publicado originalmente no portal Brasil de Fato
Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19? O que líderes religiosos pensam destes tempos que estamos vivendo? Estas e outras respostas buscamos neste Especial Religiões, onde entrevistamos lideranças religiosas dos mais diferentes matizes, do espiritismo à matriz africana, da igreja luterana ao budismo.
Para encerrar o Especial Religiões, o Brasil de Fato RS conversou com a economista, educadora popular e articuladora nacional da rede Jubileu Sul Brasil, Sandra Quintela. A alagoana que integra também o Grito dos Excluidxs e a 6ª Semana Social Brasileira moderou a organização do recente lançamento do caderno de estudo nº 7 do Jubileu Sul Brasil, com o título “Religião e Política: vamos falar sobre isso?”.
Na época do lançamento, a rede promoveu um debate com a participação da teóloga feminista Nancy Cardoso, da autoridade civilizatória da tradição de matriz africana e afrodiaspórica do Batuque do Rio Grande do Sul, Ìyá Sandrali de Òsún, e do teólogo, professor, ator, escritor e poeta Henrique Vieira.
“Como não discutir religião e política num país em que o atual governo federal tem como slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”? Como não discutir religião e política num país em que a bancada católica autodeclarada da Câmara dos Deputados é de 53%, a evangélica representa 21%, números maiores que o de presença de mulheres deputadas (15%)? Vale lembrar que as mulheres são mais de 51,8% da população brasileira”, aponta o estudo intitulado Religião e Política: vamos falar sobre isso?”.
Ao ser indagada sobre a laicidade do Estado, Sandra destaca que o Estado brasileiro é laico, mas somente até a página dois. Para ela, muitas vezes a pauta religiosa é usada pra mascarar interesses conservadores do ponto de vista da economia e da política. “Defender a laicidade do Estado é defender os direitos às políticas públicas universais, não é para favorecimento de a, b, ou c”, afirma.
Abaixo a entrevista completa:
Brasil de Fato RS – O Jubileu Sul lançou recentemente o caderno de estudo Religião e Política. No contexto brasileiro, em especial no momento em que vivemos, como a religião e a política se entrelaçam ainda mais se analisarmos o slogan do governo de Bolsonaro “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”? Como uma influencia e modifica a outra e vice-versa?
Sandra Quintela – A Jubileu Sul, nós não somos uma rede necessariamente que trabalha o tema da religião e política, nós somos uma rede enraizada em muitos movimentos, organizações, territórios nesse Brasil a fora. A gente vê crescendo essa discussão sobre religião e política. Fizemos uma mesa, em um seminário em 2018, exatamente sobre religião e política. As pessoas começaram a pedir para sistematizarmos aquilo, e virou essa cartilha onde nós procuramos apresentar, exatamente a partir do slogan do governo. E a partir também de bancadas, por exemplo a bancada federal, onde mais de 50% declaram-se cristãos, evangélicos ou católicos, onde as bancadas se organizam, a bancada da bíblia, onde as agendas conservadoras são puxadas por essas bancadas. Mas não só a agenda conservadora do ponto de vista dos costumes, também do ponto de vista da economia, do ponto de vista dos direitos, que são muito alinhadas.
Em nome da família, da propriedade, aprova-se a reforma da Previdência, a reforma trabalhista, privatizações do patrimônio público. Então veja que a religião, ela é muito usada pra mascarar uma agenda ortodoxa, vamos dizer assim, do ponto de vista econômico e político.
O uso político da religião é corriqueiro, e é isso que a gente quer debater no caderno.
BdFRS – Como fica o Estado laico nesse contexto de liberdade religiosa?
Sandra – O Estado brasileiro é um Estado laico, até a página dois. Porque desde que Marco Feliciano foi o presidente da Comissão de Direitos Humanos na Câmara, ele começa a fazer cultos evangélicos dentro da Câmara. Nós sabemos que esses cultos, não só evangélicos, começam a fazer parte, vamos dizer assim, do dia a dia da vida política nacional, isso é bastante preocupante.
Quando olhamos direitinho, é laico para quem? Porque o que nós vimos, a questão é a seguinte, como eu falei anteriormente: essa pauta religiosa é usada para mascarar interesses conservadores do ponto de vista da religião, da política. Então defender a laicidade do Estado é defender os direitos às políticas públicas universais, não é para favorecimento de a, b, ou c.
O que sabemos é isso, por exemplo, quando se perdoa as dívidas das igrejas, está favorecendo a quem com isso tudo? Se está favorecendo uma máquina eleitoral, que de alguma forma garante que essas pessoas consigam continuar se elegendo como representantes desse povo que se alimenta, vamos dizer assim, de um ciclo de distanciamento da realidade concreta, a partir de uma leitura meio fosca da realidade.
BdFRS – Quais são as principais conclusões que o estudo apresentou?
Sandra – Ao trazer o tema, queremos fazer com que as pessoas conheçam mais esse debate. Uma conclusão certa é que religião e política se discute sim. Porque o ditado popular diz que política e religião ninguém discute, nós estamos dizendo que não, que política e religião se discute sim. E trazemos alguns elementos para que possamos refletir.
Primeiro essa ideia de que o país, o nosso Brasil é um país católico. A partir do século XXI, cresce o número dos evangélicos, crescem as religiões de matriz africana, crescem outras religiões. É isso mesmo? Então a gente começa fazer essa reflexão.
Uma outra reflexão é de que a religiosidade faz parte da cultura popular, e que ela esteve muito presente na história, de resistências, e continua tendo uma forte presença nas resistências. E também na dominação, na alienação, principalmente através das neopentecostais onde se procura quase que uma solução fácil, rápida para o sofrimento. ‘Venha, deixe seu sofrimento aqui’… isso, em um momento de muito desemprego, de muita concentração de riqueza, de muita fome, quem não quer deixar seu desespero ali, sua desgraça toda ali?
Enfim, é um mecanismo de alienação, mas é também um mecanismo de libertação em muitos momentos da história do Brasil. É um pouco isso que tentamos trazer na nossa cartilha, que não é uma cartilha religiosa, é uma cartilha onde apresentamos elementos para refletir sobre a conexão entre religião e política.
BdFRS – O caderno traz também um levantamento histórico dos movimentos religiosos que lutaram contra a intolerância religiosa, entre eles a Revolta dos Malês. Nos dias atuais vemos um crescimento de perseguição a alguns padres e líderes religiosos que criticam o governo Bolsonaro. Como tu vês as perseguições?
Sandra – Sim, nós trazemos essas diversas experiências, não só de revolta, Revolta dos Malês, Jacobina, Canudos, onde todas elas tiveram presente muito fortemente elementos religiosos. Há um capítulo que fala assim: a religião é muita coisa ao mesmo tempo há tanto tempo. Então trazer um pouco essa história, de que essa dimensão da religiosidade, da espiritualidade, ela tá presente nas lutas populares, e a gente precisa entender para compreender e adentrar mais na cultura popular.
BdFRS – No Brasil os muçulmanos são a segunda religião que mais sofre intolerância, em primeiro estão as religiões de matriz africana. Como combater essa intolerância e esse preconceito?
Sandra – Combater a intolerância e o preconceito também tem a ver com políticas públicas, com campanhas, campanhas nacionais, com ação política para que isso aconteça. É uma ação política através também de processos educativos, uma ação política através de um marco regulatório de legislação, que coíbe esse tipo de atitudes, atitudes discriminatórias, atitudes preconceituosas.
Mas no Brasil estamos vivendo o seguinte: o presidente da República dá o exemplo, e o presidente pratica toda hora atos de intolerância e preconceitos com as suas piadas, com seus gestos. E nós precisamos combater o ‘guardinha’ da esquina que se vê representado ali pelo presidente da República.
Não é à toa que crescem os crimes de intolerância religiosa, crescem os crimes de preconceito contra a população LGBTQI+, e por aí vai. Nós vivemos um momento onde mais do que nunca é preciso dialogar sobre isso. Então esse caderno de estudos quer contribuir com isso, para que se abra o diálogo, para ter mais tolerância e respeito às diferenças, sejam elas quais forem.
BdFRS – No nosso especial perguntamos aos líderes religiosos: Costuma-se dizer que viver é um ato político, a religião também seria? A resposta foi que sim. Na tua visão a religião é um ato político?
Sandra – No nosso caderno de religião e política fazemos essa discussão que a religião é política. Mas se é um ato político, isso depende muito de quem faz uso dela. O presidente Jair Bolsonaro, ele faz uso dela, agora no dia 12 de outubro estava em Aparecida, outro dia estava se batizando no Rio Jordão, outro dia estava… Então ele faz uso político da religião, ele vai de acordo com a maré, ele vai de acordo com o que pode agradar. Então não tem nada a ver com religião na real.
Como muitos pastores acusados de pedofilia, padres acusados de pedofilia, isso jamais poderia estar dentro, vamos dizer assim, de um quadro do que poderia ser a religião, religar, a ligação com o divino, a ligação com algo maior. Então o uso político da religião é corriqueiro, e é isso que a gente quer debater no caderno.
BdFRS – Como a religião pode ser um caminho para a construção de uma sociedade mais justa e um planeta mais sustentável?
Sandra – Aquilo que entendemos a partir de várias cosmovisões, a partir da visão indígena, por exemplo, é uma visão também de espiritualidade, não necessariamente de religiosidade, mas de espiritualidade. Onde cada planta, cada peixe, cada mosquito, cada inseto, cada vida é sagrada.
Se a gente entende a religião nesse sentido mais profundo do respeito, mais profundo da vida, no sentido amplo da natureza, dos seres humanos, respeitar diferenças… essa conexão com o divino, onde que cada um e cada uma é divino e é divina, frente a você, que é também divino e divina – eu acho que sim, pode ajudar muito. O que não pode acontecer é o que está acontecendo aqui, a religião usada como instrumento de manipulação, de alienação, de dominação, de castração, enfim, principalmente das mulheres.
No Brasil, as mulheres em números são mais do campo evangélico do que do campo católico. Tem mais mulheres evangélicas do que mulheres católicas hoje em dia no Brasil, que são extremamente conservadoras para as mulheres.
Então a religião não deveria ser isso, mas infelizmente é o que vemos. E nós, como Jubileu Sul, que é inclusive uma palavra da bíblia, a cada 50 anos as dívidas eram perdoadas, os escravos eram libertos, a terra voltava, era dividida, e por aí vai. Então tem a ver com isso, tem a ver com esse sentido mais profundo da espiritualidade na real, de um mundo sem dominação, de um mundo sem amarras.
Edição: Marcelo Ferreira
Fonte : site Rede Jubileu Sul