A predominância da razão na sociedade moderna, com seus avanços tecnológicos, científicos e a dessacralização do mundo, tem provocado crise de valores éticos e morais
Frei Jacir de Freitas Faria*
Em nossos dias, muito se fala de espiritualidade. O ser humano vive momentos de crise em relação ao seu modo de existir na relação com os outros, com o mundo pós-moderno e, sobretudo, com o Sagrado. A predominância da razão na sociedade moderna, com seus avanços tecnológicos, científicos e a dessacralização do mundo, tem provocado crise de valores éticos e morais. A afetividade e crenças estão sendo redesenhadas no Ocidente. As futuras gerações conviverão com modos de ser, outrora inimagináveis nas sociedades antigas. Como no mundo cibernético e nas redes sociais, onde as mudanças e notícias correm de forma veloz, quem não se deixar moldar por esse modo de viver e conviver vai perder o bonde da história.
Na perspectiva religiosa, pairam no ar perguntas instigantes. As espiritualidades tradicionais ainda continuam válidas? O Devocionismo, por exemplo, é capaz de alimentar o vazio existencial que bate às portas da grande maioria? A crise provocada pela Covid-19 foi capaz e de suscitar novos modos de ser? Nesse caso, há os que afirmam que nada mudou nem mudará. Não serei tão radical, mas é notório que algo acrescentou à vida dos humanos do planeta terra, ricos e pobres mortais. A questão é como ressignificar a vida sempre. O ser humano é fruto das decisões que vai tomando em sua vida. Mas, o que é mesmo espiritualidade? E essa tal de espiritualidade holística?
Espiritualidade é algo que vai além da religião. Nos últimos séculos, as religiões passaram e passam por crises nos seus modos de ser como instituições. Vemos reflexos disso no Brasil, onde há uma volta ao conservadorismo católico, agora protagonizado, defendido por leigos. No afã de defender a Igreja Instituição, eles atacam até o papa Francisco. A Santa Inquisição medieval, que mandava para a fogueira os opositores da Igreja e da fé, tem agora novos atores no comando.
O papa Francisco tem exercido liderança mundial inconteste, justamente por sua espiritualidade inclusiva, que rompe barreiras, propondo a destituição de muros que acrisolam pessoas no vazio da fé. A sua recente proposta de iniciar um processo de escuta dentro da Igreja, o que servirá de base para o Sínodo dos Bispos, em 2023, é uma tentativa de reviver o Vaticano II e de abrir novas portas para o catolicismo mundial a partir da comunhão, participação e missão. A pergunta, no entanto, é: tem futuro a Igreja Católica? – como escreveu frei Betto.
Diante desse cenário, o que propõe a Espiritualidade holística? Esse modo de ser se define como sendo um modo de viver a fé e a relação com o Sagrado, para além dos modos convencionais das religiões institucionalizadas, isto é, de forma corpórea, integrada e afetiva. A fé é a mesma, mas ela é vivenciada de forma diferenciada, sem, necessariamente, estar vinculada à uma religião. O Sagrado não perdeu o seu sentido, muito pelo contrário. Ele está sendo revisitado sob novo olhar, novas perspectivas. Uma pessoa holística, característica pós-moderna, pode até participar dos ritos religiosos com experimento de relações, mas não como adesão a essa ou àquela religião. Ela participa de uma celebração de batizado, casamento ,etc. mesmo não sendo católica ou evangélica.
Holístico, substantivo grego originários de holos (o todo, inteiro), é o modo de ver a si mesmo, os outros e o mundo como um todo interligado, em relação e não separado. Uma espiritualidade holística é aquela que considera a integração entre a razão, o corpo e os sentimentos. Desse modo, Deus deixa de ser um Ser Superior, Transcendente e Poderoso, mas próximo das pessoas.
Correlato à espiritualidade está o vazio existencial, provocado pela solidão e pelo desejo exacerbado de sempre querer consumir, comprar, ter, de conhecer para dominar, de viver sem conviver, o que ocasionou os relacionamentos virtuais, zapeados de fofocas e de fake news. O que fazer diante da falta de sentido da vida frenética e vazia?
Os psicólogos, substitutos dos padres de confessionário que atendiam os fiéis de forma não tanto profissional, mas a partir da fé, veem seus consultórios cada vez mais abarrotados de pessoas deprimidas, que perderam o sentido da vida com as dores da alma provocadas por uma sociedade suicida. Nesse sentido, é notório o fato de que os padres e religiosos, outrora orientadores espirituais, também estão na fila dos que esperam ser atendidos por eles.
Acrescente-se a isso o número preocupante de padres suicidas. O vazio existencial chegou também para os “profissionais do Sagrado”. Aliás, a figura do padre como um super-homem, assexuado e sacralizado, entrou em profunda crise a partir do Concílio Vaticano II. Urge redesenhar o perfil espiritual do padre, do religioso(a) na sociedade atual.
Na tentativa de encontrar novos caminhos, atualmente têm surgido muitos movimentos de espiritualidade com as mais variadas propostas de cursos, dinâmicas, terapias corporais e musicais, massagens terapêuticas e vibracionais, eneagrama, meditação, mandala, respiração, renascimento, etc.. Destaque para os retiros holísticos que cuidam do corpo para cuidar do espírito, propondo encontros de espiritualidade coletiva e individual, com reeducação alimentar associada à desintoxicação do corpo com jejuns, monodietas, atividades físicas, celebrações da fé, etc..
Para finalizar, diria que a espiritualidade holística é como a água que nunca cria raízes. Ele penetra na terra e flui sem pedir licença. Água não foi feita para ser controlada. A água não briga com a montanha, quando a encontra. Ela refaz o seu caminho. Como um novo modo de viver a espiritualidade plena (holística), a água nos ensina a sermos irmãos na pureza da vida, na fonte cristalina e casta dos relacionamentos saudáveis no tudo e no Todo. E assim, com o salmista, no vazio existencial de nossas vidas, haveremos de rezar: “Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2).
*Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quinze. Youtube: Frei Jacir Bíblia e Apocrifos. https://www.youtube.com/channel/UCwbSE97jnR6jQwHRigX1KlQ