Gênero

O ódio e a cultura popular [Ivone Gebara, part.II]

Confira a primeira parte do artigo de Ivone Gebara, publicado pelo Instituto Humanitas.

Parte II – O ódio e a cultura popular

O ódio destrói a realidade relativa e provisória de meu ser fazendo-me acreditar na onipotência e imortalidade de minha vida sem o outro. E, ao odiar o outro estou mais uma vez odiando a mim mesma que sou o diferente do outro, que não sou sem o outro. Sem perceber podemos criar relações de ódio múltiplo e diversificado como base das relações sociais. Muitas atitudes chamadas de ‘bem educadas’ revelam nossos preconceitos de classe e de cor.

Muitas músicas do funk nacional dos últimos anos revelam a seriedade das denúncias contra as diferentes formas de opressão social, mas ao mesmo tempo revelam o fio de ódio presente no tecido da arte musical. É como se os injustiçados e odiados pelos que lhes negam direitos de vida retribuíssem com ódio artístico sua relação odiosa. Que se explodam os que não são de meu clã. Olho por olho, dente por dente dos dois ou dos três lados embora as responsabilidades e oportunidades sejam diferentes.

Mais alguns exemplos podem talvez ajudar a entender a complexidade dos diferentes matizes do ódio como também os diferentes matizes do amor.

Fecharam as torneiras de água para os pobres da periferia… Ódio vivido pelos pobres aos quais foi negada ou reduzida a água para sobreviver. Ódio dos ricos porque não tiveram a água renovada da piscina aquecida dos filhos. Ódio dos órgãos públicos que não cumpriram com sua responsabilidade social. Como sair desse ódio mortal coletivo e diversificado que invade a todos nós? Ou como torná-lo paixão menos destrutiva e avassaladora? Ou seria o ódio necessário para a prática da justiça? Seria ele o começo da consciência social?

No último domingo na câmara federal dos deputados do Brasil se ouvia o nome de Deus misturado ao ódio pelo atual governo da república. Nem Deus, mistério infinito foi isentado da acusação de ódio e da vivência do mesmo em relação às ações humanas. “Primeiro agradeço a Deus” por tomar essa decisão histórica diziam alguns, e, em seguida despejavam sua raiva ou seu ódio em forma de palavras acusatórias. Por que nos comportamos assim? Por que necessitamos de um plano acima da história para justificar nossas posturas políticas e sociais? Por que usamos de uma autoridade intangível com a qual não podemos debater em iguais condições para justificar ou legitimar nossas posições?

A capacidade que temos de fazer de nosso semelhante um inimigo, um ser humano sem humanidade, um ser cujo sofrimento não me interessa, um ser ao qual nego qualquer possibilidade de relação ou de aproximação comigo é aterradora. E essa capacidade é elevada à potência superior na medida em que determina a partir de nós mesmos a vontade de Deus sobre a história humana. Essa vontade superior imaginariamente legitima a minha. E no mesmo ato releva minha fraqueza e falta de convicção pessoal na afirmação dos frágeis caminhos escolhidos. Sem dúvida há uma questão cultural religiosa em tudo isso, mas através dela se mostram também os complexos meandros do coração humano.

Embora eu possa parecer bastante teórica ou até mesmo idealista não vejo outro caminho para encontrar o equilíbrio de nossas paixões as mais vis a não ser o da proximidade e do reconhecimento uns dos outros. É da proximidade conosco mesmo que nasce a compreensão de nossa complexa humanidade. É da proximidade reconhecida como necessidade para a convivência social que nasce o contrato, a negociação, o encontro entre as pessoas como caminhos que apaziguam nosso desejo de morte ao outro, como caminhos que equilibram a expansão indevida de nosso eu a limites inimagináveis.

Aprender a proximidade…

A proximidade do outro, da outra é um aprendizado desde a mais tenra idade, aprendizado que nos previne da tirania de uns contra os outros, da guerra que podemos declarar àqueles que pensam e vivem de forma diferente. A proximidade do outro deveria me conduzir desde a mais tenra idade a ser educada para um mundo onde todos e todas possam caber e nesse mesmo ato me previne do consumismo exagerado, consumismo não só de coisas, mas do outro que deve se submeter à minha vontade soberana.

Reconhecimento de nossa necessidade uns dos outros não como superior e inferior, mas simplesmente como cidadãos do mesmo planeta terra que necessitam da ajuda mútua para sobreviver. Reconhecer que somos ‘terrícolas’ que competimos uns com os outros, que nos odiamos, mas também nos amamos, é apenas a retomada de antigas sabedorias que nos convidavam a desenvolver a proximidade e a simpatia uns pelos outros, como condição de sobrevivência. A recusa da dominação do ódio, trabalho árduo sobre si mesmo, não é o esquecimento das muitas histórias de ódio, mas é uma ponte que nos conduz ao reconhecimento do direito de vida do próximo, a uma convivência com menos obsessões e agressões.

Sair de nosso cinismo, de nossa crueldade pessoal e de nossa auto-suficiência para simplesmente reconhecer que cada um de nós é a criança necessitada de cuidado e carinho, o velho trôpego caído na rua, o homem adulto que chora e sofre em seu cotidiano. Este é um caminho a ser retomado como convicção comum para o nosso tempo. Não é para chegarmos ao céu que o reconhecimento recíproco se faz necessário, mas é para apagar os incêndios que nosso egoísmo acendeu, incêndio do coração humano que é mais grave do que o fogo nas florestas e a crise econômica e política na qual vivemos. Não há receita de como fazer isso valer em mim e nos meus próximos.

Mas, tenho certeza que cada um e cada uma de nós tem dentro de si alguma luz capaz de iluminar sua mente e seu coração para descobrir sendas, atalhos, veredas de luz. Luz que pode abrir pequenos espaços para sairmos do reinado do ódio e das rivalidades no meio de nós. E esta descoberta, mais uma vez, não é espontânea, nem mágica. É um trabalho educativo individual e coletivo sobre si e sobre os outros até que descubramos afinal o veio de água fresca capaz de apaziguar nossa sede de amor e de justiça. E quando o veio desaparecer enterrado por nossos ódios e tribulações é preciso procurá-lo de novo como uma infinda tarefa humana.

Antes de nos reconhecermos como sendo de um partido, de uma nação, de uma religião, de uma ideologia, com uma identidade sexual precisa reconheçamo-nos na nossa diferença e diversidade como imagem e semelhança uns dos outros.

O ódio sou eu, o amor sou eu, o outro sou eu, o hoje e o amanhã sou eu… E nós todos somos da terra e a terra da Via Láctea e ela do inominável mistério infinito…

É fácil terminar um texto sobre o ódio com uma conclusão mais ou menos poética que pode até parecer uma nova ilusão. Mas, de fato é uma ilusão necessária ou simplesmente uma aposta ou uma singela utopia de que amanhã tudo poderá ser melhor, que meus filhos e filhas poderão viver melhor, que os que hoje buscam terra poderão enfim habitá-la com dignidade. Ilusão necessária aos seres humanos, ilusão que longe de nos cegar aos outros nos convida a reconhecê-los, a socorrê-los em suas necessidades e em seus sonhos de amor.

Fonte: Ivone Gebara é brasileira, freira e feminista. Pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho – e há décadas vive no Nordeste do Brasil, numa vida de “inclusão” no meio popular. Com o CEBI publicou o livro Terra: Eco Sagrado no qual aborda o conceito de natureza sob diversos pontos de vista, como por exemplo: filosófico cristão,  objeto a ser possuído,  a Teologia da Libertação, gênero e feminismo, entre outros.  O artigo foi publicado no site do Instituto Humanitas, 26/04/2017.

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