Leia a reflexão sobre Mateus 18,15-20, texto de Paulo Ueti.
Boa leitura!
Não deixar ninguém para trás: teologias que escolhem juntar.
A correção fraterna e a vocação para a unidade: ligar na terra para que seja ligado no céu.
Situando
Vivemos, já há algum tempo, uma agudização da polarização política e ideo-teológica nas nossas sociedades. Para sublinhar o óbvio, é preciso dizer que as desigualdades continuam sólidas, enraizando-se cada vez mais e crescendo globalmente. Não é mais uma questão ou problema do chamado “terceiro mundo” ou “dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento”. Consequência disso são os níveis de intolerância e diferentes fobias que têm estampado nossas vidas cotidianas provocando mais sofrimento, exclusão e morte.
Estamos num momento assustador, para dizer o mínimo. Grupos neonazistas ressurgindo, políticos (sim, aqui o masculino é proposital e determinante) misóginos, homofóbicos, racistas e xenofóbicos tomando conta dos parlamentos e de governos no mundo todo. E o pior é perceber quanta gente religiosa que os apoia e reproduz seus ideais e comportamentos.
A diversidade, que é NATURAL, parece estar perdendo o lugar e sendo tratada, há muito tempo, como ameaça à “ordem natural e divina”, seja lá o que isso signifique.
Aqui, falo como cristão. Não pretendo tecer comentários sobre outras religiões. Isso não cabe a mim. Nas igrejas cristãs, como em qualquer grupo social, vivemos dissenções e sempre teremos gente que vai errar (pecar). Afinal, nascemos “na iniquidade” (cf. Salmo 51,4.7) A igreja, aliás é o lugar privilegiado para essas pessoas (elas são as “vocacionadas/ chamadas para estar em Jesus”), as que erram, as perturbadas, as que necessitam ajuda, as desequilibradas, as pecadoras, afinal “quem não tem pecado atire a primeira pedra” (cf. Jo 8,7).
Igreja não foi, não é e não será o lugar da idealização de “santidade” (o lugar eugênico, da raça “pura”, que não peca mais), que muita gente acha que existe em suas mentes e espíritos despedaçados e fantasiosos. Somos gente, e gente é sempre difícil. Quando chamamos alguém de “difícil”, lamento, mas estamos somente indicando o óbvio, que, aliás, serve para nós mesmos também. Conflitos, oposições, brigas, fofocas, tentativas de hegemonização sempre haverá. Faz parte da vida.
O mundo foi criado diverso. Quando alguns grupos tentaram o golpe do totalitarismo e da homogeneização na história da cidade de Babel, Deus interveio e devolveu a diversidade que ele criou. Ele enfrentou o império que prima pela monocultura, monogoverno (cf. Gn11,1-9). O movimento de Jesus foi diverso. A igreja nasceu na diversidade, assim é a nossa tradição. A imagem da Igreja é a imagem do corpo, ou seja, diverso. Seja aquela das cartas Paulinas autênticas, dos evangelhos ou a declarada pelos Atos dos Apóstolos. A diversidade é a natureza da comunidade e espiritualidade cristã. E o pecado e o erro são parte dessa vida em movimento, inquieta e sempre em busca.
O leitmotiv do texto em questão
É necessário dizer o óbvio sobre o texto e a história que ele conta. Não estivemos lá. Nunca saberemos “ao certo” o que foi mesmo que gerou essa articulação do discurso de Jesus feita por Mateus. Podemos investigar e chegar a conclusões racionais e “consentir” em algum rumo para interpretar o sentido do texto.
Eu resolvi escrever essa reflexão:
- porque gosto muito desse texto e do contexto literário onde ele está inserido;
- porque utilizo bastante essa perícope como exercício hermenêutico com os grupos com quem trabalho.
Meu ponto, no exercício, é confrontar e oferecer uma alternativa (seguindo muitas outras pessoas estudiosas da Bíblia) às interpretações “tradicionais” sobre o que significa quando a pessoa “não tem mais jeito” e deva ser tratada como “pagã/gentia e cobradora de impostos”.
Isso significa que sempre terminam, ao ler e interpretar o texto, com o conselho para a “disciplina” ou exclusão/excomunhão “da pessoa problemática” (a pessoa difícil – acho que muitas de vocês ou já foram rotuladas assim ou já rotularam alguém, assim como eu).
Encontramos alguns comentários, infelizmente, como recurso para quem vai pregar no domingo, de que a pessoa “se exclui”:
“E se a pessoa não quiser escutar a comunidade, que ela seja para você como um publicano ou pagão, isto é, como alguém que já não faz parte da comunidade. Não é você que a está excluindo, mas é a pessoa que se exclui a si mesma”.
Sem dúvida temos o absoluto direito de, a partir de nossas perspectivas e estudos, interpretar dessa forma. Mas novamente quero sustentar que essa é uma escolha hermenêutica de gente que vive nesse contexto e/ou está de acordo com ele (igrejas desligando gente das suas comunidades ou instituições familiares, ecumênicas ou outras porque “não se encaixam” na instituição ou no modelo hegemônico da mesma).
Eu prefiro escolher uma interpretação (e sim, interpretar é sempre uma escolha) mais acolhedora e mais configurada com a teologia, espiritualidade e agenda política de Jesus de Nazaré, o Cristo tão bem imaginado pelo Isaias 40–55. Ninguém é deixado pra trás. É necessário embarcar na difícil tarefa ecumênica (tenho cuidado com essa gente “ecumênica” que prefere “limpar” a comunidade de gente “difícil”) de conviver e reconhecer que gente difícil todas nós somos de algum modo.
O nosso tecido carinhoso de teimosia misericordiosa
Penso que é prudente e razoável tomar uma perícope maior. Já aprendemos de muito tempo que todo texto tem seu contexto literário que ajuda a “direcionar” a intenção de quem deixou a memória e de quem escreveu a mesma. O capítulo 18 faz parte dos grandes discursos (pregações) de Jesus para a comunidade, a igreja. É Jesus o autor da fala e é a igreja a destinatária. Pra ser sincero, é meio improvável que Jesus tivesse dito isso do jeito que está escrito. No tempo dele ainda não havia igreja cristã (ekklesia). Também acho improvável que ele se referisse à sinagoga (ekklesia pode ser também a congregação de judeus).
O nosso texto em destaque ( Mt 18,15-20) está rodeado de outros textos que formam a moldura para que o encaixe seja adequado (Mt 18,1-10.11-14 e 21-35: são textos sobre quem está perdido e sobre o perdão como pilar fundamental da vida comunitária e da vida em sociedade).
Mateus já começa o sermão (chamado por alguns biblistas de Sermão Eclesiológico) atestando que os discípulos estão ainda preocupados com a hierarquia dos poderes. Eles não estão interessados em mudar o sistema de opressão (bom lembrar a decepção do casal de Emaús, relatada no texto de Lc 24,13-35). Eles estão interessados em trocar de lugar na dança das cadeiras de quem está no “poder que controla e oprime”, tomar o poder para que eles possam ocupar esse lugar e não ser mais oprimidos. Por isso, estão perguntando: quem é o maior no Reino dos Céus (essa preocupação dos discípulos, bastante em dissonância com as preocupações de Jesus, é muito bem atestada em vários outros relatos evangélicos). E o exemplo que Jesus dá em primeiro lugar é o da criança (paidion), dos pequeninos (mikron). Tem que ser como criança, não pode escandalizar as crianças (dar mau exemplo, faze-las sair do caminho – ortopraxis).
Jesus, no mesmo evangelho, já havia louvado a Deus por ter revelado as coisas do Reino aos pequeninos (Mt 11,25). O Reino não é para as pessoas que são “certinhas”, inocentes, “santas” e recatadas, obedientes/domesticadas/projetos de adulto (tudo o que uma criança normalmente não é – quem tem filhas/os e/ou lidou com crianças sabe do que estou falando).
O Reino é “do jeito da criança”: ousada, às vezes inconveniente, perturbadora da ordem estabelecida pelas pessoas adultas, aberta e curiosa a aprender, perambulante, atravessa limites, meio desobediente, aquela que necessita, que é carente de relações, corajosa e que exerce poder desde o dia que nasce para o mundo (e normalmente ganha).
Depois, vem a conversa famosa e demasiadamente pregada nas igrejas sobre a ovelha perdida (Mt 18,11-14). Tema bonito para retiros, aqueles papéis laminados na parede do altar, sermões efusivos. E a declaração (“meio” artigo de fé, que incomoda os defensores da “raça pura dos eleitos do Senhor) bombástica do verso 11: veio salvar/curar/cuidar o que se tinha perdido. A pessoa que tem lugar privilegiado para a missão da comunidade, penso eu, é aquela pessoa que está “perdida”, que é problemática, que não se encaixa no modelo hegemônico da instituição ou de quem está na coordenação (talvez porque a comunidade ficou demasiadamente fixa que não deixa mais espaço para acomodações das mudanças de contexto ou de autocrítica).
A perícope (Mt 18,21-35) que vem depois de nosso texto é também, obviamente, muito importante. É sobre perdoar sempre, 70 vezes 7, o número do infinito, da incondicionalidade. Parece que há uma insistência literária, teológica, escriturística, eclesiológica e espiritual do exercício do perdão. Lembrando sempre que o perdão está muito relacionado com quem perdoa, mais do que com quem deveria ser perdoado. O exercício do perdão não é sobre a outra pessoa na verdade, sobre “quem pecou”, é um exercício de quem julga ter autoridade para condenar ou julgar (normalmente para condenar). Infelizmente, nas comunidades e nas relações (nem sempre equitativas em relação ao exercício de poder), o papel de quem convoca “conversas sérias” ou “julgamentos” é o papel de acusador (o Diabo, o Satanás), quase nunca do defensor (o Paráclito, o Espirito Santo). Algo para pensar bastante.
Agora sim, depois dessa primeira moldura de cima e de baixo, entramos em nossa perícope – Mt 18,15-20.
A igreja é o lugar das pessoas que buscam encontrar a Deus, e uma busca importante é encontrar a si mesmas e as outras pessoas com quem ela escolheu conviver. Um novo tipo e arranjo familiar. Nada tradicional, aliás. O verso 18 aqui identifica que a igreja (ekklesia – comunidade reunida em nome de Jesus) tem poder de ligar e de desligar.
É um modelo “kyriarcal”, conforme muitas feministas, e segue o “jeito” de impérios sobreviverem. Kyriarcado é um termo forjado por Elizabeth Fiorenza para designar o patriarcado, como modelo que é baseado no poder exercido pelo imperador/mestre/senhor/pai/marido sobre as pessoas subordinadas a ele/s, e é mais suscetível a encapsular outras formas de opressão como racial, de estrato social e econômico, assim como a opressão de gênero. Mesmo assim, com essa crítica reconhecida, é necessário perceber que se trata do poder de ESCOLHER entre desligar ou ligar. Infelizmente, esse texto bíblico, nas interpretações “normais” que se tem por aí (inclusive de biblistas e pastoralistas “da libertação”), é ainda usado para enfatizar o poder de desligar, excluir, legislar sobre quem não “serve” nem se “encaixa” na vida comunitária. E uma vida comunitária formatada a partir da teologia e projeto politico da “raça eleita” (aqui, certa tradição judaica pesou muito e foi transportada para o mundo cristão). Eu prefiro sempre exercitar, ler esse texto com a tarefa fundamental que nos foi dada por Deus, e que em Cristo somos colaboradoras, de ligar gente umas às outras, de permanecer ligados mesmo na diferença, divergência e conflito.
Este pedaço é sobre o pecado. Se teu irmão pecar [“contra ti” aparece em alguns códices, mas em outros não], toma certas providências. O texto é um chamado ao exercício metódico, transparente e persistente (resiliente) de lidar (e aprender a lidar) com as pessoas que “pecaram”. O pecado é algo que certamente é presente no cotidiano de todas as pessoas e na vida comunitária. Não é possível apagar o pecado. Só é possível vencê-lo cotidianamente, reconhecendo sua existência e também admitindo que ele não tem mais poder sobre você (Rm 6). Se acreditamos que o pecado tem poder de afastar alguém de Deus ou manter Deus afastado das pessoas, precisamos orar mais e meditar mais para encontrar o Deus da graça e da misericórdia incondicionais (Os 11, entre outros textos).
E só é possível vencer o pecado cotidianamente com ajuda quando estamos conectadas umas às outras, quando percebemos que temos necessidades comuns e precisamos nos ajudar. A comunidade é esse lugar. Na Regra de São Bento, ele imagina o mosteiro (a comunidade) como uma Escola do Senhor. É um lugar de mútuo aprendizado e mútua transformação para a vida. Ninguém está ou estará pronto. E, ao final, ninguém chega pronto. A comunidade é o lugar de “se arrumar”. Não é tribunal muito menos clube fechado de pessoas que ficam se bajulando ou bajulando Deus o tempo todo.
A comunidade deveria ser o lugar da esperança, da acolhida e da tolerância 70 vezes 7. É o lugar onde sei que, em última instância, eu posso ir ou estar e serei acolhido, não julgado. Terei ajuda para melhorar ou para acertar meu rumo, não sentenciado e humilhado publicamente fazendo com que eu deseje nunca ter ido ou queira sair. A gente vai à Igreja cristã para descobrir (para quem ainda nunca foi) ou para reconhecer (porque a gente já sabe na verdade) que Jesus me/te aceita. Eu não vou para eu aceitar Jesus.
Na sociedade impaciente, intolerante e violenta em que vivemos, somos chamadas a testemunhar diferente. Somos chamadas a viver a experiência de conversão cotidiana, onde todo mundo precisa de ajuda e onde todo mundo SE ajuda. Onde pedir ajuda seja natural e não humilhação. Onde haja espaço seguro e lugar para a convivência, que é e será sempre marcada pela tensão e necessidade de ajuste diário.
Parece-me que Jesus está insistindo com uma comunidade que precisa aprender, primeiramente a “ir atrás” e a lidar com o pecado e com as pessoas pecadoras (que, aliás, inclui a mim e a você que lê esse artigo). Em sociedades e grupos muito institucionalizados, certamente é um aprendizado necessário. Nos textos, o ensinamento reconhece que é difícil e que, muitas vezes, há uma insistência em ceder ao pecado. Às vezes, cedemos ao pecado e lhe damos mais poder do que ele possui. Mas o escalonamento de “conversar pessoalmente, depois com mais uma testemunha e depois com a igreja” parece-me um alerta para que o erro de alguém seja reconhecido como também responsabilidade do todo, da comunidade. Precisamos evitar colocar sempre a culpa na pessoa que pecou. Ao final, levar a pessoa ao centro da comunidade não deveria ser interpretado como levar a pessoa para que a igreja a julgue, para que ela (a pessoa que pecou) seja exposta e somente ela reconheça publicamente o pecado. O processo terapêutico sugerido aqui é para que todo mundo seja afetado, é para que todo mundo possa falar sobre o assunto. E se, mesmo assim, não der certo, o conselho de Jesus é tratar a pessoa como “gentio e cobrador de impostos”.
Mas, o que significa mesmo tratar alguém como “gentio e publicano”? As interpretações corriqueiras são de que no tempo de Jesus e na cultura hegemônica em que ele vivia (em termos de normas legais e sociais) seria não se aproximar, excluir de sua convivência. Mas eu acho difícil imaginar que, mesmo se estivéssemos falando do tempo de Jesus (acho que não estamos, pois estamos no tempo da igreja), ele se conformou com essa norma. Jesus foi um transgressor político, econômico, religioso e também das normas sociais. Desafiou a “moral e os bons costumes” daquela sociedade na qual vivia. A comunidade de Mateus começa as narrativas sobre a vida de Jesus, fazendo memória da presença de muitos gentios na genealogia dele (gente não judia, cf. Mt 1,1-17: Tamar, Raab, Rute, Betsabá). Quando um centurião (soldado romano) foi em busca de sua ajuda, ele prontamente o acolheu e atendeu seu pedido (cf. Mt 8,5-13). E ainda o elogiou, dizendo que nunca tinha encontrado tamanha fé em Israel. Chamou para seu grupo íntimo um cobrador de impostos, chamado Mateus (cf. Mt 9,9). Costumava andar com “pecadores e publicanos”, inclusive compartilhando sua intimidade na casa, tomando refeição, isto é, fazendo comunhão com os mesmos (cf. Mt 9,10-13). Uma mulher gentia (siro-fenícia) veio até Jesus pedir ajuda para sua filha com demônio. Jesus, mesmo com reservas, dialoga com ela, a escuta, dá-lhe razão e aceita seu pedido. Também ela, uma mulher gentia, ganha um grande reconhecimento da parte de Jesus: grande é a fé dela (cf. Mt 15,21-28). E tudo isso, somente no Evangelho de Mateus.
Mas, novamente, quero insistir que não estamos lidando somente com o tempo de Jesus, na Palestina, pelos anos 30 dC. Estamos também lidando com um texto e uma memória que foi usada por uma comunidade mais tarde, quando a igreja cristã já era uma realidade, dos anos 70. No caso do Evangelho de Mateus, muita gente concorda que teve sua edição final entre os anos 80 e 90 dC. Mesmo utilizando o argumento de que a audiência de Mateus é uma comunidade majoritariamente formada por gente de tradição judaica, não é a totalidade da comunidade. E, se a comunidade tem problemas com gente de origem gentia, isso precisa de conserto e revisão.
Na narrativa da cura da filha da mulher pagã (Mt 15,21-28), embora Jesus diga que só veio para os judeus, a siro-fenícia rebate veementemente essa postura exclusivista de Jesus. Isso revela que a comunidade mudou o jeito, o método e o conteúdo de sua vida. Neste texto em particular, há uma insistência no diálogo, mesmo quando somos ofendidas. Imagino que ser comparada, indiretamente, aos cachorros (que aqui pode ter duas possibilidades significativas) não é muito educado. Eu me sentiria muito ofendido se isso passasse comigo. Imagino que para uma mulher, já bastante sofrida, foi também uma ofensa e humilhação pública vinda de Jesus.
Textos guardam memórias para serem utilizadas no futuro, no momento correto, para influenciar o presente e modificá-lo, chamando a atenção para algo, atualizando a mentalidade e o comportamento. Mateus 18 é uma memória poderosa para a comunidade que escuta atenta. Há um conflito que precisa de carinho e cuidado. O texto/memória é para guiar, orientar e estabelecer método e conteúdo (ou melhor, relembrar o que foi esquecido). Ler esse texto em nossos contextos de ódio e extremismos, reter essa memória que insiste na capacidade imensa de perdoar, de rever o que se passou conosco e o que fizemos outras passarem, revoluciona a maneira de como governamos a nossa vida e de como as igrejas e instituições deveriam exercer sua governança. É alento e bálsamo que resultam em aumento de nossa resiliência, fortaleza e longevidade, em unidade e excentricidade pública, que incomoda e desafia grupos e ideo-teologias totalizadoras e homogêneas.
Voltemos ao exercício terapêutico de lidar com o pecado e com o poder de ligar ou desligar. Todo o capítulo é um apelo para as lideranças da comunidade (ou para a comunidade como um todo) dedicar-se umas às outras, dedicando-se especialmente àquelas pessoas que estão fora da norma e da forma (crianças, ovelha desgarrada, pecadores, pessoas difíceis). Reconhecer o pecado e publicá-lo é uma experiência sanadora, quando bem acompanhada e dentro de um quadro maior de “ligação” e acolhimento, de libertação e de transformação de todas as pessoas envolvidas. É um testemunho de que todo mundo precisa de mudanças e só podemos fazer isso quando publicamente nos reconhecemos pecadoras e pessoas em necessidade.
Marcas no caminho – memórias para seguir e permanecer
Quem sabe, podemos retirar, do texto, alguns marcos orientadores para o caminho da reconciliação, resiliência e para o esforço enorme que é permanecer juntas em comunidade, de concordar, de discordar e, mesmo assim, continuar de mãos dadas, compartilhando, orando e testemunhando publicamente a revolução que era viver daquele jeito, não nos conformando com os esquemas de morte, violência e exclusão desse mundo (cf. Rm 12,2).
Imagino que os marcos poderiam ser:
- O primeiro grupo que precisa de conversão são as chamadas lideranças, que detêm o poder da governança, da autoridade sobre e do formato ideo-teológico do comportamento (moral) do grupo – metanoia (mudar de olhar/perspectiva/teoria e de atitude);
- O que está à margem precisa da nossa atenção – ser como criança;
- Reconhecer que a comunidade é uma “escola” (como disse São Bento em sua regra), um lugar para aprender, desaprender e transformar-se – isso vale para todas as pessoas, bem como sistemas de governança e conduta – “eu vim para os pecadores”…;
- Não escandalizar ninguém, não agir como o “Diabo” (aquele ou aquilo que provoca divisões);
- Ter sublinhado, na mente, na perspectiva (no olhar) e no comportamento, que desprezar (em sentido amplo da palavra) alguém, especialmente as pessoas mais pequeninas (as que estão em maior situação de vulnerabilidade), não é um comportamento que se espera na comunidade. Precisamos ter APREÇO pelas pessoas, pela vida e por TODAS as pessoas e suas vidas;
- A capacidade de SAIR (ser excêntrica) é indicadora de pertença à comunidade do Reino, sublinhando a necessidade de uma igreja que quer ser ESPAÇO SEGURO e VIVER NO CAMINHO, indo atrás de quem se “desgarra”, investindo tempo, recursos para isso, mudando nossa perspectiva sobre “as que dão problema e não se enquadram”, afim de não deixar ninguém pra trás;
- Dialogar sempre, procurar a relação, insistir na mesma, demonstrar que há amorosa disponibilidade para isso e, quando isso não for mais possível, oferecer espaço para que ambos os lados possam repensar o que passou;
- A liderança da comunidade deve novamente reconhecer que a revelação de Deus continua, também ali, na discordância e no dissidente, “indo atrás, com respeito pelo espaço da outra pessoa, com mais amor e afinco”, deixar as 99 já convencidas, para ir atrás da que se desgarrou, pois a igreja também tem o PODER de ligar;
- Orar sempre, sem cessar. A oração é encontro consigo mesma, portanto, com Deus que habita em nós e se revela, através de nós, a outras pessoas. A oração é o lugar amoroso da contemplação que muda e transforma, caso deixarmos. E não é necessário mais que duas pessoas (para o mundo judaico precisava de 10 homens) para que isso aconteça;
- E continuar insistindo na capacidade de perdoar. O perdão é primeiramente relacionado a você/eu que se sentiu ofendido. É um caminho de unificação interior que se estende e se estenderá a outras pessoas no devido tempo. Quem pecou ou pecou contra eu/você não precisa saber que a perdoamos. Mas nós precisamos desenvolver essa capacidade constante de rever o que aconteceu e perdoar (não esquecer, obviamente).
Na espiritualidade e tradição cristã, temos rituais (que educam e formam) para lidar com o erro (pecado), cujo objetivo é insistir que a pessoa pertença ao grupo e deva ser, de alguma forma, reconectada a ele. É na relação da comunidade que podemos sustentar nosso projeto contra os esquemas desse mundo. Quem sabe ,termino ilustrando essa conversa com um post que vem circulando, há muito tempo, pela internet sobre uma tribo (não consegui descobrir qual ainda), na África do Sul, que tem um costume alinhado com a proposta de Jesus.
Há uma “tribo” africana que tem um costume muito bonito. Quando alguém faz algo prejudicial e errado, eles levam a pessoa para o centro da aldeia, e toda a tribo vem e o rodeia. Durante dois dias, eles vão dizer ao homem todas as coisas boas que ele já fez.
A tribo acredita que cada ser humano vem ao mundo como um ser bom. Cada um desejando segurança, amor, paz, felicidade. Mas, às vezes, na busca dessas coisas, as pessoas cometem erros.
A comunidade enxerga aqueles erros como um grito de socorro. Eles se unem então àquela pessoa para erguê-la, para reconectá-la com sua verdadeira natureza, para lembrá-la quem ela realmente é, até que se lembre totalmente da verdade da qual tinha se desconectado temporariamente: “Eu sou bom”.
Sawabona Shikoba!
SAWABONA é um cumprimento usado na África do Sul e quer dizer:
“Eu te respeito, eu te valorizo. Você é importante pra mim”. Em resposta, as pessoas dizem SHIKOBA, que é: “Então, eu existo pra você”
Que Deus nos abençoe e continue insistindo no caminho conosco. Não porque merecemos, mas porque somos dignos do amor e de amar.
“Que belos e infinitos são Teus nomes, ó Senhor Deus.
Tu és chamado pelo nome
de nossos desejos mais profundos.
As plantas, se pudessem orar,
invocariam nas imagens das suas flores mais belas
e diriam que tens o mais suave perfume.
Para as borboletas, Tu serias uma borboleta,
a mais bela de todas, as cores mais brilhantes,
e o teu universo seria um jardim…
Os que estão com frio Te chamam Sol…
Aqueles que moram em desertos
dizem que Teu nome é Fonte das Águas.
Os órfãos dizem que tens o rosto de Mãe…
Os pobres Te invocam como Pão e Esperança.
Deus, nome de nossos desejos…
Tantos nomes quantas são nossas esperanças e desejos…
Poema. Sonho. Mistério”
Rubem Alves