Reflexão do Evangelho

Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe

Leia a reflexão sobre Marcos 3,20-35, texto de Tomaz Hughes.

Boa leitura!

Este texto de Marcos nos apresenta uma característica bastante usada neste Evangelho. O autor intercala uma discussão com os escribas (vv. 22-30) em uma cena em que Jesus se defronta com a incompreensão da sua família (vv. 20-21.31-35). Ele usa o mesmo procedimento em 5,21-43; 6,7-33; 11,11-21 e 14,1-11. A finalidade é para que o leitor interprete um evento à luz do outro. Assim, no texto de hoje, devemos nos perguntar como é que os versículos que tratam dos familiares de Jesus e o trecho referente à discussão com os escribas lançam uma luz, um sobre o outro. Na verdade, em ambos os casos, Jesus é objeto de acusações falsas e é incompreendido, até rejeitado, pelos seus familiares, bem como pelas autoridades de Jerusalém.

Não há dúvida que a atividade de Jesus causa espanto e choque. Trabalhava até à noite em prol de pessoas excluídas e sofridas, misturando-se com gente considerada impura pela religião oficial, que conseguia implantar esta ideia na mentalidade do povo comum. Além disso, Jesus criticava fortemente as lideranças religiosas do seu tempo. Por isso, parecia, para muitos, “louco” ou “possuído por um demônio”, ou algo semelhante. Em uma cultura onde “honra” e “vergonha” eram conceitos chaves para qualquer família, os familiares de Jesus resolveram conter o problema, indo ao lugar da sua pregação para “segurá-lo” e trazê-lo para a casa da família, em Nazaré.

Nos vv. 31-35, o confronto com a família continua. É interessante como Marcos constrói a cena. Quando os parentes chegam ao local onde ele está ensinando, eles nem tentam entrar para escutá-lo ou para conversar com ele. Eles deliberadamente ficam do lado de fora e mandam chamá-lo. Isso contrasta muito com a cena de dentro da casa – onde uma multidão está sentada ao redor de Jesus, com uma atitude de discípulo. Quando é informado da presença dos seus parentes do lado de fora, Jesus olha aos que estão ao redor dele e faz uma declaração espantosa e contundente: “Aqui está minha mãe e meus irmãos!” O texto logo explica o sentido dessa afirmação: “quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe!” Na verdade, Jesus não está desprezando a sua família, mas insistindo nas novas relações que nascem do fato de se tornar discípulo d’Ele. Parentesco não traz privilégio nenhum – o importante é ser discípulo/a e cumprir a vontade de Deus. Assim Jesus afirma que, na medida em que nós nos tornamos discípulos/as, teremos a mesma dignidade que a sua mãe e seus familiares. Tudo se relativiza diante das exigências do Reino e do seguimento!

Embora não seja uma questão de grande importância, talvez valham umas palavras sobre o sentido da frase “irmãos e irmãs de Jesus”. É bom lembrar que na tradição do Oriente Médio não se define a família como o pequeno núcleo de pai, mãe e filhos, mas inclui parentes próximos e distantes. A versão grega do Antigo Testamento usa a palavra: adelfos (irmão) nos dois sentidos, restrito e amplo (Gênesis 29,12 e 24,48). Podemos dizer que, na tradição cristã, existem três tipos de interpretação para esta questão. Primeiro, entende-se o termo “irmão” no sentido do uso oriental. Segundo, usando uns documentos apócrifos (nunca foram aceitos pela Igreja como canônicos) do século IV chamado “O Proto-Evangelho de Tiago” e “A História de José, o Carpinteiro”, se diz que a Maria casou com um viúvo idoso, José, que já tinha seis filhos/as: Judas, Tiago, Joset, Simão, Lídia e Lísia. Assim, os “irmãos” seriam só da parte de José e não de Maria. Porém, parece muito improvável que essa informação seja histórica.  Terceiro, seguindo Jerônimo, diz-se que são primos de Jesus em primeiro grau. O importante é saber que a concepção virginal de Jesus está nos Evangelhos da Infância (Mateus 1-2 e Lucas 1-2) e faz parte do Credo Apostólico. Tanto a narrativa de Mateus como a de Lucas, em primeiro lugar, quer mostrar que tudo o que aconteceu na vida de Jesus de Nazaré desde a sua concepção tem origem em Deus.

A disputa com os escribas também intriga umas pessoas quando fala do “pecado contra o Espírito Santo” que não tem perdão. Em que consiste? Segunda a nota do rodapé da Tradução Ecumênica da Bíblia, “este pecado consiste em negar-se a reconhecer o poder que atua por meio de Jesus, atribuindo a Satanás as obras que ele realiza pelo Espírito Santo. Tal recusa à conversão contraria o perdão”. Por isso, é muito grave não querer ver a ação do Espírito de Deus no cuidado e na defesa da vida de quem mais sofre, atribuindo-a a Satanás. Mas, as palavras fortes referentes a este pecado não devem tirar a nossa atenção de algo muito mais importante – que todos os outros pecados, por mais “pesados” que possam ser, têm perdão diante da infinita misericórdia de Deus. Esse fato é um grande “Evangelho”, ou “Boa Notícia” e deve nos animar para que sejamos portadores dessa mensagem de perdão e reconciliação.

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