A narrativa do Evangelho escolhida para a nossa reflexão na liturgia deste final de semana foi tirada de Marcos 9,38-50. Esse relato se divide em três partes.
1 – Autonomia das comunidades e a luta pelo poder (Marcos 9,38-40)
Para compreendermos bem a repreensão de Jesus ao apóstolo João, convém recordar algumas situações a respeito desse apóstolo. Certamente, os autores do Evangelho segundo Marcos conheciam estas tradições. De Paulo sabemos: João, junto com Pedro e Tiago, o irmão do Senhor (cf. Gálatas 1,19), era uma das autoridades em Jerusalém (cf. Gálatas 2,9). Tinha, portanto, uma posição de poder. Segundo o próprio Evangelho de Marcos nos informa, João, dessa vez junto com seu irmão Tiago, lutava por poder, pelo lugar mais importante, de maior prestígio, isto é, sentar-se ao lado do trono de Jesus em seu Reino (cf. Marcos 10,36-37). Por outro lado, Lucas nos informa que, mais uma vez junto com seu irmão, João tinha postura antiecumênica em relação aos samaritanos. Chegaram a propor a Jesus que um raio os queimasse vivos (cf. Lucas 9,51-55). Esse modo de agir do apóstolo João nos faz compreender sua dificuldade em aceitar a diversidade, a autonomia de outras equipes missionárias que não “seguissem” os seus ditames, as suas ordens (cf. v. 38).
Com essa cena do Evangelho de hoje, Jesus nos ensina que ninguém pode ter o monopólio da Boa Nova, da prática do bem. Nenhuma pessoa pode considerar-se dona exclusiva da missão confiada por Jesus a seus discípulos, nem pode se impor sobre outras comunidades ou grupos que promovem o respeito, a tolerância, a justiça, o amor.
Por trás dessa narrativa, é provável que as comunidades de Marcos reivindicassem o respeito por sua autonomia, livres de um poder centralizado, representado aqui por João. Agindo assim, Jesus legitima a soberania das comunidades e critica a centralização do poder. Certamente, essa postura do Nazareno nos faz pensar sobre as hierarquias das instituições de hoje.
A atitude de Jesus é ecumênica, não coibindo ninguém de contribuir com seu projeto, isto é, com a libertação de todas as formas de opressão e com a promoção da vida. Jesus não é monopólio de ninguém.
Para seguir Jesus em seu caminho, ele nos coloca, entre outras exigências, libertar-nos da tentação do poder como privilégio, como status, como prestígio (cf. João 13,1-17). Quem lidera, quer lavar os pés de seus liderados. Quem quer ser grande, que sirva (cf. Marcos 10,43).
2 – A solidariedade com quem segue Jesus (Mc 9,41)
De um lado, sabemos que o seguimento radical de Jesus na luta pela justiça do Reino, desperta violência, ódio e perseguição (cf. Mateus 5,10-12). De outro, sabemos também que muita gente é acolhedora e solidária. Enquanto Jesus está a caminho de Jerusalém para o grande gesto de doação de sua vida, afirma que também é nos pequenos gestos de solidariedade que se revela o Reino de Deus.
3 – Não escandalizar os pequeninos que creem (Mc 9,42-50)
Para que possa entrar na Vida, no Reino (vv. 43.45.47), quem segue Jesus não pode servir de queda (escandalizar = fazer tropeçar) para os pequeninos, os “discípulos novos” (v. 42).
Não pode seguir o profeta de Nazaré quem escandalizar os pequeninos. O lugar de quem assim age é o fundo do mar, onde deve permanecer junto aos porcos que lá foram precipitados (v. 42; cf. 5,13).
Para seguir o Mestre é necessário “cortar a mão” que rouba, acumula, esbofeteia e violenta. É preciso mudar o “modo de agir” (v. 43). Além disso, é necessário também “cortar o pé” que pisa, esmaga, faz tropeçar. Para quem segue Jesus, é imprescindível “mudar a conduta”, o “modo de caminhar” (v. 45). E mais. É necessário também “arrancar o olho” que julga, deseja, cobiça e inveja. Portanto, é indispensável “mudar o modo de ver” as coisas, as pessoas, a vida e o próprio Deus (v. 47).
Escandalizar os pequeninos é seduzi-los a se desviarem do projeto do Reino e sua justiça, a fim de que sigam as tentações de Satanás (riqueza, poder, prestígio). Escandalizar os pequeninos é desencaminhá-los através de mentiras, de modo que sigam cegamente o ódio, a indiferença, a intolerância. Daí a insistência em evitar o escândalo dos pequeninos, para que não se afastem do projeto do Reino, da verdade, do amor e da justiça.
Essa mensagem fala muito para nós hoje, quando vemos tantas pessoas dizerem que seguem Jesus, mas seu “modo de agir” é intolerante. Jesus, porém, pediu-nos mais que tolerância, pediu-nos respeito. Ou ainda, quando a “conduta” dessa gente segue pelos caminhos do ódio. Jesus, ao contrário, pediu-nos amor. Ou ainda, quando seu “modo de ver” é movido pela mentira. O mestre de Nazaré, porém, propõe-nos a verdade.
Três vezes, a narrativa se refere à Geena. Geena era um vale a sudoeste de Jerusalém, onde se queimava o lixo e, no passado, se sacrificavam pessoas (vv. 43.45.47; cf. Jeremias 7,32; 19,6). Era considerado um lugar impuro, de desprezo, de maldição.
Os vv. 50-51 se referem ao sal. Ser “salgado com fogo” é ser purificado (vv. 49-50; cf. 2Reis 2,20-22; Ezequiel 16,4). Portanto, quem decidir seguir radicalmente à Boa Nova de Jesus precisa purificar seu modo de agir, de caminhar e de ver, de modo a não escandalizar os pequeninos.
O sal também era símbolo da aliança da paz, sinal de amizade (cf. Levítico 2,13; Números 18,19). Daí o pedido de Jesus aos apóstolos e a nós hoje: “vivei em paz uns com os outros” (Marcos 9,50; cf. Romanos 12,18).
Ildo Bohn Gass
CEBI-RS