
Domingo I da Quaresma
Lecionário Comum e Lecionário Católico: Lucas 4,1-13
09 de Março de 2025
A narrativa da tentação no deserto recorre à imagem do embate apocalíptico entre Deus e o Diabo durante o advento do Reino de Deus. Esse embate será expresso também nos diferentes relatos de expulsão dos demônios que governam o mundo e oprimem o povo: “Viestes para nos destruir?”(Lc 4, 34).
A linguagem apocalíptica é um gênero de temática profética que revela uma realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que interpela a história como expressão do advento do Reino de Deus e sua Justiça.
Dessa forma, a Boa Nova anunciada e vivida por Jesus de Nazaré vai enfrentar vários confrontos e desafios. Quais? Aqueles mesmos que fizeram Israel tropeçar em seus 40 anos no deserto, e os mesmos que os seres humanos de ontem e de hoje encontram em diversos contextos sociais: opressão, injustiça, soberba, autossuficiência, ambição, omissão, conformismo.
Para sair da escravidão e da opressão do Egito em direção à liberdade, o povo, guiado por Deus, precisou atravessar o deserto, enfrentando muitas dificuldades, carências, incertezas que os fizeram questionar se não teria sido melhor ter permanecido na escravidão do Egito. Saíram do Egito, mas o Egito não havia saído deles. Estavam dispostos a abrir mão da liberdade para voltarem a comer as cebolas do Egito. Foram tentados a abrir mão da liberdade para não precisarem passar fome, sede, carências e incertezas: “Quem nos dará carne para comer? Temos saudade dos peixes que comíamos de graça no Egito, os pepinos, melões, verduras, cebolas e alhos! Agora, perdemos até o apetite, porque não vemos outra coisa além desse maná” (Nm 11, 4-6).
A epístola aos Hebreus, citando o Salmo 95, menciona esse episódio como o dia da Tentação no deserto, onde os ancestrais dos judeus tentaram a Deus, pondo-o à prova (Hb 3, 7-19).
Por seu turno, Jesus de Nazaré, levado ao deserto pelo Espírito Santo, sente fome após 40 dias no deserto. O diabo questiona que Jesus pode transformar pedras em pão se ele for realmente o Filho de Deus. Jesus afirmará, citando as Escrituras, que nem só de pão vive o ser humano. Esta passagem das Escrituras refere-se ao Maná dado ao povo por Deus no deserto (Dt 8, 3).
O diabo oferece o poder e riqueza de todos os reinos do mundo desde que Jesus se coloque a serviço do diabo. Jesus, mais uma vez citando as Escrituras, afirma que só se deve servir a Deus. Novamente, trata-se de referência à passagem que lembra que se deve servir exclusivamente o Deus que fez o povo “sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Dt 6, 12-13).
O diabo insiste, dessa vez citando, ele próprio, as Escrituras, dizendo que se Jesus é realmente o Filho de Deus, ao se jogar do alto do Templo de Jerusalém, Deus mandará seus anjos para guardar e cuidar de Jesus. A resposta de Jesus é que, conforme as Escrituras, não se deve tentar a Deus. Jesus se recusa a tentar a Deus assim como o povo de Israel havia feito no deserto.
Essa passagem mostra como as Escrituras podem ser usadas, no alto do Templo (centro religioso), em Jerusalém (centro político), para justificar uma interpretação diabólica que exige demonstrações extraordinárias de poder como sinais da legitimidade da ação libertadora de Deus em Jesus.
Lucas registra que após esgotar todas as formas de tentação, o diabo se afastou, temporariamente, até momento oportuno.
No fim, será em Jerusalém, diante da morte iminente, que o diabo jogará sua última cartada, tentando deslegitimar a presença da ação libertadora de Deus em Jesus de Nazaré. Os chefes, diante do povo reunido, zombarão da aparente impotência e desamparo do Jesus crucificado: “Que salve a si mesmo, se é de fato o Messias de Deus, o Escolhido”. Os soldados romanos também caçoarão: “Se tu és o rei dos judeus, salva a ti mesmo!”
Ainda hoje, as autoridades religiosas e políticas exibem sinais de poder, nas igrejas e palácios, como prova de legitimidade, enquanto ameaçam com o desamparo do deserto ou a violência da cruz aqueles que tentarem se libertar da opressão e da exploração. A autoridade soberana tem sua legitimidade assegurada não apenas por instaurar uma relação baseada no medo do desamparo e da morte violenta, mas também na submissão do povo a um poder soberano que garantiria segurança e amparo, ordem e progresso, colocando a própria preservação ou prosperidade ao custo da justiça comum e da solidariedade mútua.
Ao contrário, Jesus de Nazaré venceu todas essas tentações, permanecendo fiel, do deserto até a morte na cruz
Ronaldo Sales – CEBI Borborema/PB