Por Pastor Ras André Guimarães – CEBI Bahia
No evangelho escrito pela comunidade de Lucas é notório o compromisso de fazer uma descrição que busca ser a mais próxima possível dos fatos, o empenho em relatar a história dos acontecimentos com extremo cuidado e um forte envolvimento com a verdade. É possível perceber ainda a descrição como um método de organização que acolheu relatos daqueles e daquelas que testemunharam as ações de Jesus. Isso nos remete à figura do Griô ou Griote na forma feminina, e também chamados jali ou jeli, que é o indivíduo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo. São as pessoas da comunidade, geralmente mais velhas, que são responsáveis por guardar e transmitir, de uma geração para a outra, as tradições culturais dos povos africanos. São responsáveis por organizar a memória das comunidades de que fazem parte e transmitir oralmente as histórias.
Em tempos de profusão de notícias falsas, as tão faladas “fake news”, o cuidado que a comunidade de Lucas teve nos mostra o quanto é importante estarmos comprometidos com a verdade, comprometidos em contar os fatos da forma que aconteceram conectados com a realidade. É um ensinamento que nos convida a ter o mesmo zelo e rigor na conferência da veracidade das informações que recebemos antes de compartilhá-las. Vivemos em um tempo em que existem muitas inverdades, travestidas de notícia, circulando por meio de aplicativos de troca de mensagens e redes sociais e contaminando quem lê com mentiras e negações da realidade. Tal prática, que muitas vezes também acontece em nossas comunidades, não produz vida, pelo contrário, visto que a fonte das falsas mensagens é o desejo de manipulação por parte daqueles que
as produzem.
Jesus sempre nos convida, nos desafia a olhar e repensar as nossas ideias e nossas ações. É importante, ao olhar para Jesus, olhar também para o contexto histórico, político e cultural da época em que Ele viveu. Nos tempos de Jesus, assim como acontece hoje, as escrituras e a mensagem dos profetas e profetisas também sofriam interpretações “esvaziadas de carne” e que não acolhiam os dramas e os sofrimentos do povo.
Nesse texto da comunidade de Lucas relatado no capítulo 4, versículos 14 a 21 observamos que Jesus faz uma leitura poderosa do livro do profeta Isaías. O ato de entrar no templo, buscar o rolo, abri-lo e fazer a leitura pública revela também a postura de Jesus de não se calar. Ao invés disso, Jesus “a luz do mundo” denunciou as práticas equivocadas seu povo, não seria um absurdo dizer que Jesus fez uma leitura popular de Isaías e também, rapidamente, “viu, julgou, e agiu” nos moldes do que entendemos hoje por Leitura Popular da Bíblia. Jesus confronta uma tradição de interpretação alienadora e descompromissada com a realidade. Esse é o nosso ponto de partida a leitura conectada à vida e a realidade. A atitude e a postura de Jesus mostram a radicalidade no compromisso com uma tradição de libertação e de enfrentamento das estruturas de morte. Ele não ficou calado e nem fez de sua leitura um processo de alienação ou de aliança com as estruturas religiosas de seu tempo. Fez da leitura uma convocatória para que todos e todas assumam responsabilidade e sua parte no processo de libertação. No momento que é feita a leitura fica nítido que a estrutura religiosa havia feito uma opção pelo poder e se silenciado diante da opressão contra o povo. Jesus deixa evidente seu compromisso pastoral e político e isso causa sempre desconforto aos que estão confortáveis. Outra coisa evidenciada por Jesus naquele momento é que a boa notícia não pode ser fragilizada ou negociada no seu teor radicalmente profético e libertador, a boa notícia não pode ser transformada em instrumento de poder institucional, ou de silenciamento e mecanismo de morte das vozes da luta popular, a boa notícia não pode ser conivente com a dor e o sofrimento das pessoas. Em uma sociedade marcada por mentiras e más notícias, como a que vivemos atualmente, a boa notícia de Jesus de Nazaré é um refrigério para as pessoas que não tem mais esperança, que não acreditam no amanhã. Nesse cenário nossa tarefa é compartilhar diariamente que Deus não tem compromisso com poderes e práticas desumanizadoras. Compartilhar diariamente a boa notícia de que é possível ser feliz, que é possível viver com dignidade, de que todas e todos nós somos amados por Deus. E de não é mais possível ficarmos paralisados diante das “fake news”, somos os portadores da boa notícia e é isso que deve nos fortalecer, encorajar e ajudar a construir juntos, em Cristo, uma nova sociedade.
Importante também é não perder de vista a tarefa da leitura popular da Bíblia, pois forma de ler, em comunidade, nos lembra da tarefa profética e libertadora das escrituras. Não abriremos mão dessa forma de viver, testemunhar e comunicar a libertação proposta pelos profetas, profetisas e também por Jesus de Nazaré.
As escrituras não podem mais ser usadas para o fortalecimento de notícias de morte e sofrimento, e nem para legitimação da opressão. Toda leitura alienante precisa ser combatida por nós da mesma forma que Jesus fez. Precisamos ter a mesma coragem de Jesus e desafiar as interpretações querem promover opressão e morte. Não podemos esquecer que “O Espírito do Senhor Deus está sobre nós para…”