Reflexão do Evangelho

Este é o meu filho amado, escutai-o

Leia a reflexão sobre Marcos 9,2-10, texto de Ildo Bohn Gass.

Boa leitura!

Situando o texto na estrutura do Evangelho e na intenção de Marcos

No próximo domingo, muitas comunidades celebram, tendo como Evangelho a narrativa de Marcos que apresenta Jesus vitorioso sobre a morte e sobre os poderes que o mataram. O texto é mais conhecido como a transfiguração de Jesus no monte (Marcos 9,2-10).

Conforme o plano deste Evangelho, encontramo-nos na parte que se refere ao caminho do discipulado, do seguimento (Marcos 8,22–10,52). É o caminho em que Jesus vai abrindo os olhos, isto é, vai instruindo as pessoas que o seguem sobre quais os critérios e quais as exigências do seguimento ao projeto do Reino. Por isso, começa narrando a cura da cegueira como um processo (Marcos 8,22-26) que somente será completo, depois de todas as orientações de Jesus, quando Bartimeu, curado da cegueira, decide seguir Jesus pelo caminho (Marcos 10,46-52). Nesse caminho, estão os três anúncios da paixão (Marcos 8,31-32; 9,30-31; 10,32-34). Cada anúncio vem seguido pela incompreensão ou cegueira dos discípulos e por instruções de Jesus sobre o seguimento. O relato da transfiguração no monte faz parte das instruções após o primeiro anúncio da paixão. Sua função é contribuir na cura da cegueira, na falta de entendimento a respeito do Messias que passa pela cruz.

Além disso, este relato é uma leitura pós-pascal e pretende narrar antecipadamente a vitória de Jesus sobre a morte na cruz, apresentando-o como o messias glorioso. É o que indica sua roupa brilhante (Marcos 9,3). A ressurreição, a vitória sobre a cruz, é a vida em toda a sua plenitude que vence os poderes de morte deste mundo. É que nos encontramos num momento em que a cruz do império mais uma vez pesa forte sobre o povo. Estamos no período da guerra judaico-romana (66 a 73 d.C.), realidade em que este Evangelho foi escrito nos arredores da Galileia. E hoje, mais uma vez as forças do mercado imperial e dos messias milicianos pesam forte sobre o povo brasileiro.

Por um lado, apresentar Jesus vitorioso sobre a cruz anima as comunidades de ontem e de hoje a resistirem com esperança contra a violência do poder econômico e jurídico, midiático e militar. E, no tempo de Jesus, a crucificação era o instrumento principal de condenação à morte para quem não se submetesse ao poder implacável de Roma.

Por outro lado, esta narrativa quer ajudar a superar a dificuldade em aceitar Jesus como o Messias, uma vez que fora crucificado como alguém que ameaçara o poder colonialista na região. É como escreve a própria comunidade de Marcos: Acima dele, havia a inscrição do motivo: ‘O rei dos judeus’ (Marcos 15,26). Para os judeus, ser pendurado numa árvore, ter o corpo exposto de forma humilhante como advertência às demais pessoas que não se sujeitavam à opressão era um escândalo, uma maldição (Deuteronômio 21,22-23; Josué 8,29; 10,26; Gálatas 3,13). Daí a resistência de muitas pessoas de origem judaica em aceitar Jesus como o Messias. E para os gentios, também havia uma dificuldade para aderirem a Jesus como o enviado de Deus. Era o fato de ele ter sofrido a pena de morte. Era uma loucura, algo inaceitável e que impedia reconhecerem em Jesus o filho amado do Pai (1 Coríntios 1,23). E ainda hoje, temos dificuldade em perceber que estar do lado certo da história, do lado de Jesus de Nazaré, é estar com quem é caluniado pela mídia hegemônica, perseguido pelos adoradores do capital e mercadores da fé, e com quem é criminalizado pela “justiça”.

Abrindo olhos e corações

Para ajudar as comunidades neste contexto a aderirem firmemente ao Messias, que passou pela cruz, a fim de resistirem com esperança num momento em que a cruz fazia parte do cotidiano durante a guerra com os romanos em torno do ano 70, Marcos faz memória das Escrituras judaicas como luz a iluminar o caminho do discipulado, do seguimento. Com essa narrativa, Marcos quer ajudar as comunidades das origens cristãs e de nosso tempo a perceberem que a calúnia e a perseguição, em vez de serem escandalosas ou uma loucura, revelam a fidelidade à defesa da vida, ao projeto do Pai. É nesse sentido que o apóstolo Paulo afirma anunciar a “loucura da cruz” (1 Coríntios 1,18-25). Nós também não nos envergonhamos de seguir o condenado de Nazaré e de estar do lado certo, o lado de quem hoje é crucificado, o povo pobre e as “minorias” étnicas e de gênero.

As tradições do passado iluminam o presente

Primeiro, a cena apresenta a vida de Jesus transfigurada, com um novo brilho, um novo sentido (Marcos 9,2-4). Ela revela a força de Deus. Manifesta a sua glória na fidelidade de seu Ungido até as últimas consequências. Ao mesmo tempo, a transfiguração ou ressurreição de Jesus manifesta, de um lado, a condenação que Deus faz da violência imposta pelos poderes deste mundo. De outro, revela também a exaltação, o reconhecimento de quem dá sua vida em favor do projeto do Reino e de sua justiça, como fiel servidor.

Ao lembrar um alto monte em um lugar deserto, vem à memória o brilho da aliança de Deus com seu povo liberto da casa da escravidão e a caminho da partilha do pão, do poder e da terra. Em Jesus, renova-se essa aliança no novo Sinai. Jesus resgata esse mesmo projeto libertador do Êxodo, um projeto de vida cidadã para hebreias e hebreus, isto é, para todas as pessoas do mundo que se encontram à margem de seus direitos fundamentais.

Elias é o representante da profecia. Moisés faz lembrar não somente o Êxodo, mas também todo Pentateuco, toda lei, que a tradição judaica atribuía a ele. Por um lado, a lei e os profetas, isto é, todas as Escrituras, se realizam em Jesus. Ou seja, o Nazareno dá continuidade à primeira aliança, levando-a a sua plenitude. Já não há mais lei, pois ela é superada pelo princípio do amor.

Por outro lado, a comunidade de Marcos apresenta Jesus como um profeta que, tal como os profetas Elias (1 Reis 17,1) e Moisés (Deuteronômio 18,15), veio anunciar um novo Êxodo de liberdade para seu povo. O fato de Jesus subir no alto de uma montanha (Marcos 9,2) confirma esta perspectiva, pois é uma referência ao monte Sinai, no qual, segundo as narrativas de Êxodo 19-24, Deus deu a conhecer ao povo o seu projeto de vida e de liberdade. Se lá Moisés teve a responsabilidade de mediar a aliança, agora essa mediação é tarefa de todas as comunidades representadas pelos três apóstolos. A roupa resplandecente, muito branca, tal como também resplandecera a face de Moisés no monte Sinai (Marcos 9,3; Êxodo 34,29-35), manifesta a glória de Deus em Jesus vitorioso sobre os poderes da morte.

A cegueira de Pedro

Quando Jesus anunciou a cruz como consequência de sua fidelidade à luta pela vida em abundância para todas as pessoas (Marcos 8,31; João 10,10), Pedro já havia revelado sua cegueira, sua incompreensão (Marcos 8,32). E Jesus o repreendera por isso, dizendo que todas as vezes que traímos o projeto do Reino nos tornamos Satanás, isto é, inimigos do projeto de Deus (Marcos 8,33). Agora, ao propor permanecer na montanha e construir três tendas, Pedro novamente revela sua falta de compreensão (Marcos 9,5-6). Ele ainda não entendeu que a construção da justiça do Reino não permite privilégios, nem acomodação. Ser discípulo não é somente participar da glória de Jesus, mas é também carregar a sua cruz, gerando e defendendo a vida. É descer a montanha e ir lá onde o povo está, no caminho para Jerusalém.

Pedro não está sozinho. Com ele, estão Tiago e João. Representam, portanto, a toda comunidade, inclusive a nós. Dessa forma, a narrativa questiona também a nossa cegueira quando ela nos induz a limitar a execução de Jesus a uma morte em nosso favor desvinculada de toda uma trama que o levou à cruz. Em outras palavras, o texto questiona nossa dificuldade em aceitar Jesus de Nazaré como o Messias de Deus, como alguém que não retrocedeu diante do projeto de morte e firmemente enfrentou a violência da cruz imposta por interesses religiosos e imperialistas, tal como um servo sofredor que dá sua vida por fidelidade ao povo e a Deus. Quantas pessoas nós conhecemos e que também sofreram morte violenta por defenderem vida digna? Quantas lideranças do povo ainda hoje sofrem calúnias, acusações sem provas e condenações, pelo simples fato de estarem do lado das pessoas mais pobres e excluídas?

O fato de Jesus pedir silêncio até a hora da cruz (Marcos 9,9-10) confirma a intenção da comunidade de Marcos. Não é possível desvincular a missão de Jesus da sua morte violenta imposta pelos romanos em conluio com as autoridades do Templo. Estas, aliás, indicadas ou confirmadas por aqueles. Portanto, autoridades dependentes e também a serviço do poder central. Assim, a cruz fez parte da vida de Jesus, não por que Deus assim o exigisse e sentisse prazer com sua execução, mas por ele ser fiel à missão na defesa da vida. Dessa forma, assumiu a mesma cruz que fez parte da vida dos profetas no passado e também da vida dos exilados violentados pela tirania babilônica, tal como um servo sofredor condenado à morte (Isaías 53,3-9). E, hoje, todas as pessoas que se convertem ao crucificado de Nazaré precisam buscar a mesma comunhão com o Pai que ele cultivava, a fim de poder enfrentar os poderes de morte que continuam perseguindo suas discípulas e seus discípulos em nossos dias.

Este é o meu filho amado, escutai-o

Por fim, novamente a memória das Escrituras ilumina a missão de Jesus (Marcos 9,7-9). A nuvem é um dos símbolos privilegiados na Bíblia para falar da presença de Deus (Êxodo 13,21; 16,10; 34,5; 40,34-38; Números 12,5). E, tal como em Lucas o anjo dissera a Maria ‘o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra’ (Lucas 1,35), agora desceu uma nuvem sobre a montanha, cobrindo-os com a sua sombra (Marcos 9,7). É o Pai confirmando a missão do Filho. Do seio de Deus saiu uma voz que disse: Este é meu filho amado, escutai-o (Marcos 9,7), da mesma forma como já havia anunciado por ocasião do batismo: Tu és o meu filho amado (Marcos 1,11). Jesus é o Emanuel, presença libertadora do amoroso Deus entre nós.

E mais. Ele é o servo amado, o filho amado, experimentado e aguardado há muito tempo pelo movimento profético (Isaías 42,1). A expressão ‘escutai-o’ confirma essa perspectiva. O servo amado tem ouvidos de discípulo para proclamar ao cansado palavras de conforto (Isaías 50,4). E quando o povo hebreu alimentou sua esperança na vinda de um profeta como Moisés, o chamado também foi: escutai-o (Deuteronômio 18,15). A atitude de escuta da voz de Deus em toda a sua criação, especialmente na voz profética de quem clama por vida plena, é uma das mais profundas formas de oração, de comunhão com o sagrado.

O fato de Moisés e Elias desaparecerem de cena mostra que a missão deles se integra na de Jesus, e este dá uma nova perspectiva às antigas tradições. Não mais um legalismo sobreposto à profecia, mas novamente a profecia, agora libertada pelo amor fiel de Jesus até a cruz, é o novo espírito que fortalece a quem o segue pelo caminho. Em sua vida, revela-se o amor pleno de Deus por nós.

Não é possível acomodar-se no alto da montanha. Escutar a sua voz desinstala e leva a descer para junto do povo sofrido e tornar o Reino de Deus presente, sem ufanismo ou triunfalismo (Marcos 9,9), mas seguindo humildemente, em nosso tempo, o servo Jesus na sua prática libertadora. Assim, recriamos a vida na semana da nova criação (“Seis dias depois”; 9,2), pois, em Cristo, somos novas criaturas (2Coríntios 5,17).

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