Josias Vieira do Nascimento Jr, Teólogo Batista,
coordenador nacional do Movimento Nós na Criação-Brasil,
congrega na Igreja Batista em Coqueiral-Recife
Essa pergunta assombra a mente de quem observa a conjuntura na qual os povos do Sul Global estão imersos atualmente. E, nesse sentido, uma reflexão Ecoteológica se faz necessária.
Pensando nas questões que se alinham ao Sul Global, gostaria de observar brevemente um conceito, muito caro para a Ecoteologia Decolonial, que entende como fundamental a libertação dos seres humanos, não humanos e do território, partindo do pensamento de Milton santos, ao falar que:
O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da resistência, das trocas materiais e espirituais do exercício da vida. (SANTOS, 2007)
O termo Ecoteologia, que pode parecer novo para alguns, vem bem definido nas palavras do teólogo brasileiro Afonso Murad, quando, em seu artigo: “O Núcleo da Ecoteologia e a Unidade da Experiência Salvífica”, afirma que:
…o eixo temático da ecoteologia consiste na forma de compreender a relação entre criação, graça e pecado, encarnação, redenção e consumação. Ou seja, a unidade e a interdependência dos elementos que constituem a experiência salvífica cristã. (MURAD, 2009)
Compreende-se então que a Ecoteologia é o estudo sistemático da palavra da divindade sobre tudo o que ela criou. E deste modo, podemos afirmar que, o fazer Ecoteológico se estabelece na conexão com a divindade, pela coexistência harmônica entre todos na Criação que revela o Criador.
Então, para pensar sobre a fé que defende a vida frente ao contexto de morte em Abya Yala, a Ecoteologia tem que ser feita a partir deste território, e precisa, por essência, ser Decolonial. Ou seja, precisa rejeitar a “Monocultura do Saber”, como propõe Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 2006), no saber teológico. Essa monocultura precisa ser questionada nas nossas estruturas soteriológicas, eclesiológicas e escatológicas, mas também exegéticas, e sobretudo, hermenêuticas.
Mas porque questionar essas estruturas hermenêuticas? Respondo com uma metáfora. Imaginemos que, ao longo do tempo, se colocou os óculos para miopia, no rosto de quem está lendo, e apenas tem a peculiaridade de enxergar de outro ponto de vista. Sem necessariamente ter a miopia como problema de visão, acaba tendo distorcida sua forma de ler a revelação do divino no natural criado.
Em minha formação evangélica, passei a vida ouvindo que o sangue de Jesus nos deixa “alvos mais que a neve”. Isso porque, no olhar de quem trazia essa mensagem, ser branco seria um sinal de pureza, e a neve seria o que há de mais branco, mais puro. Passei toda a infância e adolescência ouvindo que a salvação era individual e que para além disso, todo esse mundo tenebroso será destruído pelo fogo.
Nenhuma dessas coisas fazia sentido pra mim. E, mesmo depois de todo esse tempo, continuam não fazendo sentido algum. Na verdade, é totalmente o contrário disso. A mensagem que chegou pronta, já chegou escrita e nos moldes de uma legitimação que hierarquiza os saberes, apoiando-se em máximas construídas por teólogos do eurocentrismo sem considerar o olhar, daqueles e daquelas, que expressam, de tantas outras formas, a relação com o Deus criador.
A socióloga Boliviana Silvia Rivera Consicanqui, aponta que “há no colonialismo uma função muito peculiar para as palavras: as palavras não designam, mas ocultam/encobrem.” (RIVERA, 2010). Assim, essa Teologia Colonial, que é necroteológica, ENCOBRIU, ao tentar apontar suas verdades universalizantes, a partir de um pensamento teleológico, a espiritualidade dos povos subalternizados do mundo. E com isso, cometeu, e comete, os epistemicídios que recaem em uma diversidade de violências e mortes.
Portanto, para ser Decolonial, a Ecoteologia precisa, em primeiro momento, considerar a diversidade de saberes que podem muito mais colaborar com a fé em favor da vida. Desta forma, é importante considerar que a teologia colonial e de morte, que temos visto estabelecida nos territórios contra colonizadores (SANTOS, Bispo, 2019), como ressalta o relator dos saberes tradicionais, Nêgo Bispo, do Nordeste Brasileiro, falando dos territórios que sofreram colonização, se apoia em uma estrutura maniqueísta e metonímica, que elege inimigos, que separa em extremos. Esta, intencionalmente, coloca num extremo o que deve ser exterminado e morto, ou seja, aquilo e aqueles que considera coisas, impuros e primitivos.
Ainda com Boaventura, ele vai dizer em sua obra que ela, essa razão metonímica, indolente e colonial, categoria onde incluo a necroteologia, é “indolente, impotente e arrogante”. Portanto, usa a dominação, a violência e a morte como ferramenta de controle
Também podemos trazer outro pensador que nos ajuda a refletir sobre a construção do pensamento decolonial, Ramón Grosfoguel. Este, quando no Seminário Internacional sobre Pensamento Contemporâneo pelo VRI da Universidad de Cauca, aponta que “os estudos decoloniais tem que, precisamente, descentrar o pensamento do homem europeu e impregnar com toda diversidade epistêmica, no sentido de descolonizar o pensamento.”[2] Eu completaria que isso deve ser feito sem o menor medo de perder o controle, porque o Espírito sopra onde quer (Jo 3: 8) e o Deus Criador nunca perde o controle.
E por saber que o Criador nunca perde o controle, compreendo que aquela soteriologia eugenista e higienista não cabe onde estou. Porque uma das coisas mais ricas e puras que conheço é a terra das nossas florestas, livre de poluição, e ela é preta. Porque a pele dos povos mais puros de coração nesse continente é escura como a minha.
Com tudo isso, não há como achar que a salvação é individual, se vejo Deus ao nos encontrarmos sob uma arvore frondosa ou ao dançarmos ao redor de uma fogueira. Esse mundo não é tenebroso. Porque mundo, descrito na Bíblia, vem de cosmos. Cosmos é tudo que Deus criou. “E Deus viu tudo que tinha feito, e era muito bom.” (Gn 1: 31).
O que falei no início vale para os que vieram colonizar, e colonizando, invadiram nossas terras, saquearam nossas culturas e riquezas, mas não só, nossa epistemologia, nossa filosofia ancestral, nosso modo originário e negro de produzir conhecimento também foram alvos dessa captura.
Colonizaram hierarquizando o saber, definindo um modelo tipicamente eurocentrado. Colonizaram nossa forma de nos relacionar com o divino. Chegou para nós uma teologia que individualiza, cria inimigos e divide em polos. Que deixou no campo natural, tudo que é pecaminoso e sujo, elegendo para o sobrenatural, e com estereótipo europeu, tudo que é bom e puro.
Mas nós, nos encontramos com Deus em coexistência na Natureza. E essa coexistência, vista a partir do olhar da Ecoteologia Decolonial, nos diz que precisamos romper com um “Projeto Civilizatório”, apoiado na destruição da vida e estruturado na morte.
Mais outro autor convido para nos aproximar desse pensamento. Alberto Acosta nos apresenta em seu livro “O Bem Viver”, que em kichwa é “Sumak Kawsay” dizendo que:
[…]sumak significa o ideal, o belo, o bom, a realização; e kawsay é a vida, em referência a uma vida digna, em harmonia, equilíbrio com o universo e o ser humano”, explica […] Fernando Huanacuni que, em aymara, “suma faz referência à plenitude, ao sublime; e qamaña, à vida, ao viver, ao conviver e ao estar”. (ACOSTA, 2016)
Em resumo, podemos entender que o modo de vida do Bem Viver, sumak kaway (Kichwa), sumak qamaña (aymara) ou Teko Porã (Guarani), se refere diretamente ao que o evangelho, em Jesus, traduz por vida plena, ou plenitude de vida (Jo 10: 10). Isso, sem nenhuma tentativa de justificar ou legitimar uma perspectiva em relação a outra, mas, apontando a diversidade epistêmica necessária para revelar a essência da vida.
Por isso, é necessário DESCOLONIZAR a teologia e fazer, a partir daqui, uma Ecoteologia Decolonial, que reconheça quais são as formas de implementarmos o Ano Aceitável do Senhor, reunindo todas as características necessárias para que Ele aceite o tempo oportuno do estabelecimento do seu Reino de Justiça, Paz e Alegria (Rm 14: 17).
REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto – O bem viver : uma oportunidade para imaginar outros mundos / Alberto Acosta ; tradução de Tadeu Breda.– São Paulo : Autonomia Literária, Elefante, 2016.
GROSFOGUEL, Ramón https://www.youtube.com/watch?v=IpIfyoLE_ek&t=4448s (Assessado em 03 de junho de 2020)
MURAD, Afonso. O Núcleo da Ecoteologia e a Unidade da Experiência Salvífica. Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 1, n. 2,. 2009
RIVERA Cusicanqui, Silvia Ch’ixinakax utxiwa : una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores – 1a ed. – Buenos Aires : Tinta Limón, 2010.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: Modos e Significações. 2 ed. Brasilia: Associação de Ciências e Saberes para o Etinodesenvolvimento AYÔ. 2019
SANTOS, Boaventura S. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura. São Paulo: Cortez. 2006
SANTOS, Milton. Território, Territórios – ensaios sobre ordenamento territorial, Lamparina, 3ª ed. São Paulo. 2007)
[1] ABYA YALA, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimento e é sinônimo de América.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=IpIfyoLE_ek&t=4448s (Assessado em 03 de junho de 2020)