Marcos 14,12-16.22-26
Ildo Bohn Gass
Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: Tomai, isto é o meu corpo (Mc 14,22).
Nesta festividade, celebramos Corpus Christi. Inicialmente, partimos do “corpo de Cristo” para, na sequência, passar pelo “corpo da comunidade”, pelo “corpo dos irmãos mais pequeninos de Jesus”, pelos “nossos próprios corpos” e pelo “corpo de toda a criação”.
O corpo de Cristo
Nesta festa, honramos o corpo de Cristo presente no pão da vida. Eu sou o pão da vida (Jo 6,34.48.51). Esse pão é seu corpo, que ele entrega antecipadamente, pois na cruz os romanos tentaram eliminá-lo. Pão e o vinho são sinais concretos de nossa vida cotidiana. Na Eucaristia, porém, eles passam a ter um novo significado, colocando-nos na presença da entrega que Jesus faz de sua carne e de seu sangue, verdadeiro pão e verdadeira bebida (Jo 6,48-58). Na Santa Ceia, o pão se torna o corpo de Cristo e, ao mesmo tempo, o corpo de Cristo se torna pão da vida.
Apesar da proximidade da cruz, Jesus tem domínio da situação, pois ele toma a iniciativa, enviando discípulos para prepararem a celebração da Páscoa (Mc 14,12-16; cf. 11,1-6). Era a festa que fazia memória da libertação do Egito. Jesus não a celebrará no Templo, mas será na “casa de alguém” (Mc 14,14). A casa substitui o Templo. É a ceia do Reino em oposição às refeições nos cultos do Templo. Um outro Cordeiro torna inúteis os sacrifícios do Templo.
Durante a celebração da ceia pascal com os “Doze” (v. 17), isto é, o povo do Novo Israel (cf. Mt 19,28), Jesus resume em que consiste o projeto do Reino, o seu projeto de vida, um projeto revolucionário, um projeto de entrega, de partilha.
E isso não é feito no enorme altar do Templo que hierarquiza, mas em uma casa ao redor de uma mesa que iguala e irmana. A mesa substitui o altar.
Se Jesus nasce na “casa do pão” (“Belém”; Mt 2,1-12), e se Jesus passou o tempo todo promovendo a partilha do pão (Mc 6,41; 8,6), agora ele mesmo se torna o pão compartilhado. Jesus não come, mas reparte o pão. Ele se entrega no pão, pois ele é o pão da vida. O pão se torna seu corpo (Mc 14,22). Se o sangue dos novilhos é o sangue da Antiga Aliança que Javé firmara com seu povo no Sinai (cf. Ex 24,7-8), agora é ele mesmo que entrega seu “sangue” (morte violenta), isto é, entrega a sua “vida” (cf. Gn 9,4; Dt 12,23) para que muitos tenham vida no Reino da Nova Aliança. E mais uma vez, Jesus não bebe do cálice. Ele entrega sua vida.
Seu corpo-pão é alimento para nossas vidas e seu sangue-vinho é alegria e sentido de vida (Mc 14,22-25). Neles, fazemos comunhão com Jesus para assumirmos o mesmo caminho trilhado por ele. O pão e o vinho substituem o sacrifício do cordeiro no Templo. Jesus é o cordeiro pascal, vítima dos sacerdotes do Templo, do altar e dos sacrifícios. Jesus substitui os sacrifícios.
O corpo da comunidade
Além de honramos o Corpo de Cristo presente no pão da vida, exaltamos também o corpo de Jesus na comunidade de seus seguidores. Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros (1Cor 12,27; cf. vv. 12-27). Não basta comungar o pão da vida se não estivermos em comunhão com a comunidade que é o corpo de Cristo. Mas é o corpo de Cristo na medida em que vive relações igualitárias (vv. 12-14), no respeito à diversidade (vv. 15-21) e no cuidado dos mais fracos (vv. 22-26).
A comunidade de quem segue o Mestre Jesus é corpo de Cristo, é templo do seu Espírito (1Cor 3,16-17; Rm 8,9-11). Não é por acaso que Jesus diz: Quem vos der um copo de água por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa (Mc 9,41; cf. Mt 10,42).
Como nós honramos o corpo de Cristo no corpo comunidade?
Os corpos dos irmãos mais pequeninos de Jesus
No Evangelho do Reino, Jesus deixa claro que não somente podemos exaltar o seu corpo no pão da vida e na comunidade. Mas também podemos glorificar o seu corpo nos corpos de seus irmãos mais pequeninos, nos corpos das pessoas mais vulneráveis, desfiguradas, crucificadas (Mt 25,31-46).
Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes (Mt 25,40). O irmãos mais pequeninos são os que têm fome e sede, estão sem casa e sem roupa, sem saúde e sem liberdade (cf. vv. 35-36). Não é por acaso que a partilha do pão para saciar a fome dos corpos, bem como as curas de corpos doentes são eixos centrais na prática do Reino.
Como nós glorificamos o corpo de Cristo nos corpos dos irmãos mais pequeninos de Jesus?
Os nossos corpos pessoais
Além de honrar o corpo de Cristo no pão da vida, no corpo da comunidade e das pessoas mais vulneráveis, Jesus nos pede que dignifiquemos os nossos próprios corpos, pois neles glorificamos o próprio Deus (1Cor 6,19-20).
Honrar o corpo de Cristo em nossos corpos pessoais significa viver o batismo, de modo que nossos corpos estejam revestidos pelo corpo de Cristo (Gl 3,27). A consequência é exigente: viver a igualdade, pois já não há mais desigualdade entre gregos e judeus, entre pessoas livres e escravizadas, entre homens e mulheres, pois todos somos um só corpo em Cristo Jesus (cf. Gl 3,28). Então, já não somos nós que vivemos, mas Cristo em nós (Gl 2,20; 4,19). Somos novas criaturas, somos realidade nova (Gl 6,15; 2Cor 5,17).
Nossos corpos são lugar teológico, pois neles Deus se manifesta. Eles são habitação sagrada, templo do Espírito. São também o lugar em que experimentamos o êxtase da vida na comunhão amorosa de corpos.
Como nós dignificamos o corpo de Cristo nos nossos corpos pessoais?
O corpo de toda a criação
Por fim, celebrar o corpo de Cristo é honrá-lo em todo o Universo, anunciando o Evangelho a toda criatura, a toda criação (Mc 16,15), isto é, transformando toda criação e uma boa notícia, a justiça do Reino. É toda criação transformada em corpo místico de Cristo. Ele é o primogênito de toda criatura, pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra. Tudo foi criado por ele e para ele. Nele habita toda a plenitude para reconciliar todos os seres, os da terra e os dos céus (cf. Cl 1,15-20). Ao fazer memória do Corpo de Jesus, portanto, entramos em comunhão com toda a criação. Também nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus, conosco mesmos e com o corpo da natureza, pois tudo está interligado como se fôssemos um. Celebrar Corpus Christi, portanto, também é cristificar nossos corpos, todos os corpos do cosmos.
Como cuidamos de toda a criação, corpo místico de Cristo?