
Domingo IV da Quaresma
Lecionário Comum e Lecionário Católico: Lucas 15,1-3.11b-32
30 de Março de 2025
Os textos evangélicos dos domingos da Quaresma guardam uma antiga pedagogia das primitivas comunidades cristãs. São os textos de preparação catequética para uma pessoa que se apresentou para a comunidade e está pedindo a sua inserção na vida comunitária através do Batismo. Dentro desta antiga proposta, a chave para todos os evangelhos dominicais da Quaresma é a transformação exigida pelo Batismo cristão. Nos tempos antigos, o Batismo só era celebrado dentro da Vigília Pascal. A Quaresma era o período de quarenta dias de preparação para que a pessoa estivesse bem consciente da importância do passo ser dado em sua vida. Os evangelhos quaresmais apontam para um processo pessoal de discernimento.
O evangelho deste quarto domingo da Quaresma é a bem conhecida parábola do “filho pródigo”. Um nome infeliz para um texto tão importante. Afinal, “pródigo” em português significa “um irresponsável gastador” e este, na verdade, é um detalhe secundário na parábola de Jesus. Mas, ao mesmo tempo, é um detalhe importante no processo de transformação e de discernimento do rapaz “pródigo”. A chave batismal desta parábola é perceber o processo de conversão de uma pessoa que, conscientemente, está pronta para romper com o esquema dominador do império e entrar na vida e na economia do Reino de Deus.
A parábola do evangelho de hoje é o centro do Evangelho de Lucas. Os dois primeiros versículos (15,1-3) formam uma moldura construída pelo evangelista e que, de uma certa forma, direciona um pouco a parábola contada por Jesus. Devemos a junção destas três parábolas que formam o capítulo 15 ao próprio evangelista. Não devemos pensar que Jesus contou-as numa mesma ocasião em seu trabalho educativo itinerante. Tratando de um problema familiar tão comum em sua época, podemos pensar que Jesus contou esta parábola em qualquer aldeia da Galileia por onde ele passou. E não podemos esquecer que se trata de uma parábola. Jesus deve fazer uma narrativa envolvente deixando claro que quem deve dar a última palavra são as pessoas que escutam.
Jesus começa colocando bem o problema familiar. Um pai tem dois filhos. O filho mais novo rompe com o pai e pede o que seria dele por herança. Mas esta ruptura não é total. Ao pedir dinheiro para poder sair de casa, o rapaz deixa claro que sem dinheiro não conseguirá viver no mundo fora da casa do pai. O dinheiro do pai é a única coisa que todo mundo aceita de bom grado.
Sem dinheiro, o rapaz não conseguiria enfrentar o mundo. Mas ele não tem maturidade suficiente para administrar o dinheiro que seu pai lhe deu. Jesus cria um quadro dramático dizendo que ele foi para uma terra estrangeira e, entrando numa espiral consumista, esbanjou tudo numa vida desenfreada. E, para piorar o quadro, Jesus acrescenta que a terra em que ele vivia passou por dificuldades econômicas. O rapaz passa a sentir uma dificuldade que até então ele não conhecia: a fome. Como sobreviver nestas condições?
Qualquer um sabe que precisa de dinheiro para sobreviver. Assim, pela primeira vez na vida, o rapaz saiu em busca de emprego. Ele então encontra emprego na casa de um patrão estrangeiro que o emprega no cuidado de porcos. Mas a fome é muita e ele quer comer a lavagem dos porcos. No entanto, na casa do patrão comida de porco é para porco. O empregado que vá comer do salário que ele conseguir ganhar. Mesmo com a fome do empregado, a preocupação do patrão está na engorda dos porcos. O rapaz então descobre que na casa do patrão nada é partilhado. Nem a lavagem!
Enfrentar as dificuldades gera maturidade. Jesus faz o rapaz entrar num processo de “conversão”. A palavra grega para este processo é “metanoia”. Uma boa tradução para esta palavra seria “mudar de cabeça”. Aqui entramos na chave batismal desta parábola: discernimento entre dois modelos. Ou seja, para o rapaz há necessidade de discernir entre permanecer a casa do patrão (o império) ou voltar para a casa do pai (Reino). O recado para as pessoas que buscam o Batismo é claro: todos devem fazer uma opção clara e evidente entre o acúmulo da casa do patrão e a partilha na casa do pai.
Assim, o rapaz começa a comparar sua vida na casa do patrão com a situação existente na casa do pai. Na casa do patrão a lavagem lhe é negada. Na casa do pai o pão está em cima da mesa, disponível para qualquer um. Até os empregados podem comer. Para quem passa fome, a escolha não é difícil. Ele decide então voltar parta a casa do pai. Todo processo de discernimento só acaba com uma firme tomada de decisão.
Agora ele tem maturidade suficiente para admitir seu erro. Foi ele quem rompeu com a casa do pai. Não pode mais ser chamado de filho. Assim, decidido a voltar, ele volta para pedir emprego ao pai. Afinal, na casa do pai os empregados não passam fome. Lá o pão é partilhado por todos, filhos e empregados. Na casa do pai ninguém passa fome. Nem os empregados!
Muita gente acha que o filho só retornou porque está com fome. Sua volta seria um gesto oportunista. Não se trata disso! O filho está escolhendo livremente um determinado modelo de casa. Na casa do patrão nada é partilhado, nem a lavagem dos porcos. Na casa do pai tudo é partilhado e lá ninguém passa fome. Como canta Maria em seu hino, é missão da Casa do Pai “saciar de bens os famintos e despedir os ricos de mãos vazias” (cf. Lc 1,53). É o pão partilhado que impede que haja fome na casa do pai. Mas isso o rapaz só descobriu passando fome na casa do patrão. Comparando os dois modelos de casas, o rapaz faz sua opção: prefere ser empregado na casa do pai e comer do pão partilhado em cima da mesa.
Por mais que o filho esperasse uma boa acolhida por parte do pai, jamais esperava que o pai lhe fizesse uma festa tão grande. O pai se compadece do filho que achou o caminho certo na vida. Em gestos de extrema generosidade o pai partilha com o filho não apenas o pão, mas também a melhor roupa, as sandálias novas, o anel no dedo e o novilho cevado. E faz festa, muita festa. Na casa do pai tudo é partilhado. Esta deve ser a esperança de uma pessoa que busca inserção na comunidade cristã.
Mas o pai tem dois filhos. Então Jesus traz um problema que ninguém esperava. Faltava aparecer o filho mais velho. Jesus, descrevendo as atitudes do filho mais velho, cria um tipo de gente que nos faz pensar. O filho mis velho é desconfiado, raivoso, rancoroso, ressentido. Ele parece não entender mais nada. Ele não consegue entender o amor do pai para com aquele filho miserável que esbanjou tudo o que recebeu. O filho mais velho não acolhe nem perdoa nada. O filho mais novo se perdeu fora de casa. Mas o filho mais velho estava perdido dentro de casa.
Lucas coloca esta reflexão no coração de seu evangelho. Ele quer dar um recado para as comunidades cristão dos anos 80 EC. Elas devem ser como a casa do pai da parábola de Jesus. O Império Romano é a casa do patrão. Lá os porcos são o investimento que merece mais atenção do que os empregados. Na lógica do acúmulo que sustenta o império, investimento vale mais do que o trabalho. Na comunidade cristã o sistema imperial deve ser vencido. As comunidades vencem a lógica do acúmulo através da lógica da partilha. As comunidades devem viver a partilha de bens. Partilhar os bens é romper com o sistema imperial de dominação. É romper com a casa do patrão. No livro dos Atos vemos que uma das características da comunidade cristã é a partilha de bens (cf. At 2,44-45; 3,6; 4,32-37). Uma pessoa que busca a Batismo deve ter bem claro que entrar na comunidade implica, obrigatoriamente, romper com o império. Os que querem entrar na comunidade, mas não rompem com o sistema imperial, são como o filho mais velho. Não entenderam nada da proposta de Jesus!
A parábola de Jesus é importante numa catequese batismal neste tempo de Quaresma. Lucas nos lembra que o maior sinal do Reino é a mesa comum na Casa do Pai. Nessa mesa deve haver lugar para todos e todas. O pão está à disposição de todos e todas. Viver a proposta da casa do pai é colocar tudo à disposição da comunidade, não retendo nada para si mesmo. Nesta mesa comum da comunidade ninguém pode ser excluído. Todos são chamados e chamadas a partilhar. Não existe ninguém tão pobre que não tenha nada a oferecer. E também não existe ninguém tão rico que não tenha nada a receber. A mesa comum se constrói com a partilha de todos e todas.
Francisco Orofino é leigo católico. É formado em Teologia Bíblica pela PUC do Rio de Janeiro. Foi professor de Teologia Bíblica em Nova Iguaçu entre 1990 e 2018. Trabalha com Pastoral Bíblica na Baixada Fluminense desde 1988. Par- ticipa no CEBI desde 1983. Atualmente reside em Nilópolis, RJ.