Os textos bíblicos propostos nos domingos do Tempo Pascal nos ajudam a perceber e nos alegrar com a presença do Ressuscitado. E esse encontro sempre nos interpela a viver um novo Êxodo, processo de passagem da morte para a vida.
Na semana anterior iniciamos na liturgia de nossas igrejas a meditação do capítulo 15 do Evangelho segundo João. Esse capítulo faz parte de um texto maior, um longo diálogo do Mestre com seus discípulos, preparando-os para as dificuldades decorrentes do anúncio da Boa Nova do Reino (Jo 13,31-17,26).
A comunidade joanina resume numa conversa de despedida com Jesus as recomendações e encorajamentos que necessita para tentar superar inúmeros desafios. É um texto que dá forças em tempo de crise, e também se apresenta como um espelho, no qual as pessoas se olham e descobrem se estão mantendo ou não a identidade de continuadores da missão deixada por Jesus.
As dificuldades são grandes, como as perseguições de judeus e romanos, e também problemas internos, principalmente a falta de unidade e de amor. Se com tanta insistência se exorta a permanecer unido a Cristo, podemos supor que isto não estivesse acontecendo. Há o receio de um retorno à teologia que apresenta Deus como um juiz implacável e distante. Percebem isso porque a solidariedade e a benquerença entre os membros estão ficando em segundo plano, frente a ritualismos vazios que, por sinal, Jesus tanto denunciou, e que foi a causa da tentativa de desmoralização e apagamento que as elites quiseram impor a ele com a crucificação. Mas a memória do que se viveu com Jesus foi mais forte. Por isso não se pode aceitar que fé e vida fiquem desligadas. Mais que imagens ou símbolos externos, o texto nos exorta a ser reconhecidos como seguidores de Jesus pela nossa capacidade de amar. A solução é o amor, sempre, e de novo, e de novo…
Nesse longo discurso a comunidade reafirma fortemente que Jesus continua no meio deles, pela ação da Divina Ruah, esse espírito que sopra onde quer, capaz de espalhar sementes e juntar pessoas. Com a meditação do capítulo 15 fica evidente a preparação para a festa de Pentecostes.
No Evangelho da semana passado (João 15,1-8), Jesus falou-nos sobre a videira. A árvore é um símbolo universal da vida. Liga o céu e a terra. Oferece beleza, em suas flores e folhas, aromas revitalizantes, e também alimento, através de seus frutos. Dá sombra, proteção, abrigo. Algumas árvores são milenares. Conseguem sobreviver aos desafios do tempo. Outras suportam climas áridos, com raízes que se entranham no solo dezenas de metros à procura de água. Não são violentas. Apenas servem e mantêm a vida… Mas com teimosia e resiliência. Essa deve ser a prática de quem aceita ser discípulo de Jesus.
O texto de hoje continua essa reflexão. Em Jo 15,9-14, fica claro que o que se espera da comunidade é a prática do amor. “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v. 9). É essa prática amorosa e solidária que testemunha que estamos unidos a Jesus, como ramos ligados ao tronco de uma árvore. E o primeiro fruto é saboreado pelo próprio grupo: a alegria de estar juntos. “Eu vos disse isso para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v. 11).
Dos vários mandamentos existentes, Jesus passa a falar de apenas um: “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (v. 12). É algo tão importante que é repetido no versículo 17. Resume a lei e os profetas, ou seja, é o ponto alto de toda a experiência da Aliança entre Deus e o seu povo. Quem ama será amado pelo Pai e pelo Filho, e este se manifestará nele. Quem ama se torna morada de Deus. E a nossa Defensora, a Divina Ruah, o Espírito Santo, nos recordará e ensinará como viver esse amor no mundo, nos protegendo dos que temem a força revolucionária da bondade, da misericórdia, da solidariedade, da justiça, da partilha…
Jesus chamou a prática desse amor de amizade. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (v. 13). É uma experiência radical em seu desprendimento e comprometimento. A amizade cria novas relações sociais: “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (v. 15). Não há mais servos ou senhores. Há pessoas irmãs de caminhada.
A comunidade percebe que seguir Jesus pressupõe uma adesão voluntária. E não é assim a dinâmica da amizade? Ela só ocorre na liberdade de seus membros, no sentimento de pertença, cumplicidade, reciprocidade… Verdadeiros amigos se unem por laços que ultrapassam e subvertem as convenções sociais.
Seguir Jesus é também ser missionário: “Não fostes vós que me escolheste, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para produzirdes frutos e o vosso fruto permaneça. O que então pedirdes ao meu Pai em meu nome, ele vo-lo concederá” (v. 16). O amor é o ingrediente valiosíssimo que devemos acrescentar desde a dinâmica familiar até a organização da sociedade. A comunidade vai conseguir superar todos os obstáculos se seus membros se amarem como Jesus amou, na igualdade, equidade, inclusão e justiça social.
Para muitos o amor não parece ser suficiente para mudar a realidade. É algo bonito que falamos na igreja, vemos em filmes e novelas, na mídia social, mas que na prática não passa de utopia, ou, no máximo, deve ser vivido somente com as pessoas mais próximas e queridas ou por pessoas diferenciadas, como as lideranças religiosas. Esse amor fica difícil quando o próximo está distante, não fisicamente, mas porque não professa a mesma fé, opinião, gênero ou condição social… As diferenças se tornam abismos.
Jesus nos pede para sermos pontes. Nos exorta para permanecermos no seu amor: “Isto é o que vos ordeno: amai-vos uns aos outros” (v. 17). É como um refrão, um mantra que nos fortalece na teimosia de cultivar amigos e acreditar no ideal comunitário.
A comunidade joanina faz sua profissão de fé no Deus de Jesus, que é amor! E nos convida a fazer o mesmo hoje. Por amor o universo e o ser humano são criados… Por amor Jesus faz de nossa história uma história de salvação. Fez-se humano e nos ensinou como amar de verdade. Ao despedir-se, pede para nos amarmos mutuamente, como ele próprio nos amou. Essa é a base da felicidade, a condição que eterniza e dá sentido à vida…
Autora: Regina Maria Almeida Nagy
CEBI-SP