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Uma carta feminista imaginária para um Paulo imaginário

Sr. Paulo, quase apóstolo
Tarsis, Turquia (ou qualquer outro lugar nas bandas do Mediterrâneo)

Você nunca escreveu para nós mas, suas cartas chegaram como se tivessem endereço certo: nossos corpos! não abrimos suas cartas indevidamente, mas elas foram lidas e pregadas também diretamente para nós: mulheres!

Não “você” um possível Paulo histórico, mas um Paulo inventado pela teologia patriarcal: herói da fé do cristianismo vencedor e presença constante nas homilias dominicais, na catequese e nas sistemáticas.

A sua voz e suas cartas fizeram muito mal pra nós: mulheres! Sabemos que nem tudo que dizem que você escreveu… você escreveu. Sabemos da conjuntura difícil do império romano, a economia que esfolava as gentes, as guerras que devastavam os povos, a perseguição cruel de outros modos de viver a experiência de Deus.

Sabemos também que traduções ruins e os interesses de manutenção de uma igreja patriarcal, branca, hierárquica e acomodada ao poder tomaram seus textos de forma absoluta e linear desprezando as contradições e confusões da sua escrita sempre contextual e lidando com conflitos reais de comunidades reais.

O que poderia ser exercício de reflexão a partir dos dramas e amores das comunidades do seu tempo,  virou uma parede, um muro, expressão de uma teologia considerada estrutural, estruturante, sistemática, homogênea e coesa.

Haja hermenêutica e ferramentas de crítica para que seus textos não nos machuquem! Nos esforçamos: uma exegese ali, uma melhor tradução acolá, uma teoria de escritos autênticos e outros não, estudos sociológicos sobre sua maneira inclusiva de organizar as comunidades cristãs para além do fardo das pertenças de etnia, classe e… gênero(?).

Estes esforços – que precisam de Diatribes, Deprecações, Palinódias, Preterições e outros truques da escrita e da linguagem – ficam restritos aos grupos de estudo formal com pouca circulação nos âmbitos vorazes e costumeiros onde seus textos são proclamados.

Então… quase quase a gente podia dizer que não é culpa sua! Mas, o que interessa para nós, é o estrago afetivo, sexual, político e criativo de suas cartas para gerações de mulheres nas igrejas.

Vamos aos fatos! (alguns exemplos corriqueiros)

  • Jovens e a Pureza Sexual: Conselhos de Paulo

Não Viver na Paixão dos Desejos

No versículo 5 (de 1 Tessalonicenses 4) Paulo adverte contra viver na paixão dos desejos, como fazem os que não conhecem a Deus. Isso implica que aqueles que conhecem a Deus são chamados a viver de maneira diferente, não sendo dominados por seus desejos carnais, mas permitindo que o Espírito Santo os guie. A paixão dos desejos, especialmente os sexuais, pode ser uma armadilha que desvia os jovens do caminho da santidade. Portanto, é crucial que os jovens aprendam a submeter esses desejos à vontade de Deus.

https://www.esbocosdepregacao.com.br/jovens-e-a-pureza-sexual-conselhos-de-paulo/

Quem nunca escutou seu pastor (ou pastora!!), um padre ou missionária, um influencer ou cantor gospel ou um escritor no seu livro de virtudes, jogar estes textos como manta pesada sobre corpos e desejos?

Vão dizer que não foi o que você quis dizer, mas você disse “na autoridade do Senhor Jesus”:

Pois vocês conhecem os mandamentos que lhes demos pela autoridade do Senhor Jesus.

A vontade de Deus é que vocês sejam santificados: abstenham-se da imoralidade sexual.

Cada um saiba controlar o próprio corpo de maneira santa e honrosa,

não com a paixão de desejo desenfreado, como os pagãos que desconhecem a Deus.(1 Tessalonicenses 4)

Imoralidade sexual, desejo desenfreado de quem desconhece a Deus. Gerações de pessoas – homens e mulheres – que no afã de controlar o próprio corpo se perderam de si mesmas, tiveram medo e vergonha, se sentiram expulsas do paraíso e se conformaram com a miséria sexual, casamentos ruins e erótica adormecida.

Você listou a fornicação (relações sexuais fora do casamento), o adultério e a homossexualidade como alguns dos pecados comuns entre os coríntios (1 Coríntios 6, 9 e 10)… e esta lista chegou até nós. Paulo, viver é difícil – tanto para os Coríntios como também para nós. Corpos em relação, sexo, desejo e paixão não podem ser resolvidos com um “cala a boca” pela “autoridade do Senhor Jesus”. A erótica é o que de nós nos humaniza; pode ser cortada também por poderes ruins – de acordo! – mas a paixão é desejo desenfreado, e aprender a desejar dem desumanizar é bem-aventurança possível.

Sabemos que não há nos seus escritos referência a homossexualidade como é entendida hoje. Mas fazer o que? Gritam nos púlpitos as “suas” palavras garantindo a heterocracia da tradicional família burguesa. Nessas horas quase quase não queremos mais saber de você[1]

  • Não há homem nem mulher (Gálatas 3, 28)

Sabemos que neste texto você inovou, retirou as barreiras de etnia, gênero e classe:

Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus.

Muito já se escreveu sobre este texto e tem sido uma sombra importante no calor perverso da igreja dos homens de supremacia branca. Mas sabe o que? Há dois problemas que precisamos considerar.

Diversidade qual? você afirma que esta unidade se dá em Cristo Jesus e aí a universalidade e inclusividade que você queria fica restrita à mediação do cristianismo. Sabemos que seria pedir demais de você que antecipasse desafios do tempo que não era o seu… mas as suas cartas perduraram, chegaram até aqui. Ou nos submetemos à ideia dos textos inspirados, imutáveis e coisa e tal ou precisamos ter uma séria conversa.

Hoje seu texto parece uma afirmação do poder mediador do cristianismo vencedor e hegemônico. Somos todOs iguais em Jesus! O significado disso é que a diversidade apaga as desigualdades e se resolve na unidade de uma mediação religiosa única. Trocamos 6 por ½ dúzia. As desigualdades não se dissolvem em Cristo Jesus, ao contrário! ficam até mais estáveis, adaptáveis e controladas.

A diversidade está e não se resolve com uma essencialização do ser em Jesus. Hoje sabemos que a diversidade não é o problema, nem a diferença. O problema é a desigualdade, as relações sociais de poder e dominação econômica, social e política.

Um homem latino americano também quis inovar em plena revolução cubana quando disse: A classe operária não tem sexo[2]. Mas tem, melhor dizendo gêneros! Che queria fundir a desigualdade na unidade da classe trabalhadora. Mas as feministas latino-americanas disseram que não! Explicitar a diversidade e as diferenças é essencial na busca da igualdade também no mundo sindical e na luta de classes.

Elizabete Souza-Lobo expressou a luta das mulheres trabalhadora num livro: A classe operária tem dois sexos[3] em 1991. Um livro vital na organização das feministas classistas de lá se vão 30 anos! Mas não para por aí: trabalhadores LGBTQIPA+ também são classe operária! [4]

Não sei se você recebeu a carta do Congresso Feminista Latinoamericano que aconteceu no Uruguay em 2014. Diz assim:

No 14º. Encontro Feminista Latinoamericano e do Caribe – realizado no Uruguai em 2017 – com a presença de 2200 mulheres – foi dedicado um momento para perguntar por “Los nombres del feminismo” não como controle de pertença ou marca de identidade mas o reconhecimento de que na América Latina e Caribe (ALC) o feminismo é muito mais do que a reunião de movimentos reconhecidos e com características eurocêntricas ou “mais amplamente “ocidental”, branca, hetero-normativa, acadêmica, institucional, com dificuldades para criar raízes no coração e na pele das mulheres das cidades do sul (…)” . Somos muitas, diversas:

feministas populares, indígenas, comunitarias, negras, campesinas, lesbofeministas, con capacidades diferentes, feministas socialistas, materialistas, trabajadoras, sindicalistas, y otras grupalidades que venimos de diversas propuestas e identidades culturales, ideológicas y políticas que sentimos necesario visibilizar, debido a que no nos contiene la pretensión de universalidad de los feminismos hegemónicos.[5]

Assim os seus textos não alcançam a vertigem do que temos que viver em nossas diversas vidas latino-americanas. Mesmo as feministas sebemos que a desigualdade entre nós está. Há sim uma etnia e outra, homens (plural) e mulheres (plural), negras e brancas, pobres e ricas. Afirmar a diversidade e perguntar pela desigualdade são os desafios que temos que enfrentar cada dia na luta por justiça entre nós. O Senhor Jesus (ou sua igreja) quase pouco participa desses debates e resoluções políticas e afetivas dos movimentos feministas por aqui: estão satisfeitos com sua resolução de Galátas 3 que mais esconde que revela. Mas não se preocupe, somos diversas as feministas, mas não dispersas!

Ah! ia esquecendo: porque você usou o exemplo de Sarah e Hagar para falar sobre ser escravo e ser livre, lei e graça? Sei que você dá um nó no texto de Gálatas 4, 22 a 31 e que tem objetivos profundos para resolver. Mas saiba que este texto reproduz o sofrimento dos povos de Hagar – os palestinos – e garante supremacia para os judeus filhos da promessa. Sinto muito! Mas é um desserviço. As igrejas sionistas como são não fazem crítica nem autocrítica e assistimos ao genocídio dia-a-dia. Porque não usou Isaque e Ismael? Tinha que ser com mulheres? Porque não usou Pedro e Paulo? Nesse texto você entrega: a diferença convive com a desigualdade.

Saudações!

Haveria mais para dizer nesta carta imaginária para você Paulo imaginário – quase apóstolo. O mais importante é dizer que nós feministas em fidelidade ao Evangelho de Jesus mantemos a memória de reler os textos bíblicos – todos e “qualqueer” um. É decisão nossa e nossa contradição!

O feminismo é para nós uma caixa de ferramentas e uma caixa de brinquedos (Rubem Alves): lidamos com textos difíceis e imprestáveis (alguns seus!) com as ferramentas. Mas nos divertimos porque nos sentimos livres diante dos textos. Eles já náo nos fazem mal. Afirmamos que é ação do Espírito atualizar os textos para nós hoje. E isto é libertador!

Nosso desafio é fazer uma leitura feminista popular, que chegue nas irmãs, beatas, benzedeiras, carismáticas, profetisas… e conversar com outros modos de crença, outras deusas e fazer a bíblia andar humildemente com nosso deus entre todes.

Não fique com pena de nós. Nós não temos de você! Leia este carta imaginária do mesmo modo que lemos você-imaginário: com liberdade e criatividade!

Saúda nossas companheiras na fé e na luta: Maria, Trifena, Trifosa e Pérscide, Evódia e Síntique, Febe e Júlia. Diga pra elas que entendemos o que elas passaram e porque continuaram.

No mais nós esforçamos para contrariar você: não respeitamos as autoridade constituídas, não nos calamos na igreja nem nas lutas, não aprendemos dos maridos (quando marido há), não cobrimos a cabeça para profetizar (haja diatribe!), vivemos apaixonadas por nós mesmas e pelo mundo de justiça e diversidade que vai exigir sempre o sopro renovador e atualizador do Espírito… até com você.

Sem mais nem menos, nos despedimos

Biblistas Imaginárias (carta inventada no encontro no Cebi MG em fevereiro de 2025 com o tema leitura feminista das cartas paulinas)

nancy cardoso

carnaval 2025

[1] para a profundar: Nem Julgamento, Nem Sentença: Relendo os textos bíblicos sobre a homossexualidade, The CENTER for LESBIAN and GAY STUDIES in RELIGION and MINISTRY

at Pacific School of Religion, https://www.clgs.org/wp-content/uploads/2015/11/nem-jugamento.pdf

[2] CHE GUEVARA, Discurso en la asamblea general de trabajadores de la Textilería Ariguanabo, 24 de marzo de 1963, https://www.archivochile.com/America_latina/Doc_paises_al/Cuba/Escritos_del_Che/escritosdelche0054.PDF

[3] Confira em https://siac.fpabramo.org.br/uploads/acervo/FPA_Avulso_LVR_0073.pdf

[4] Confira em https://www.esquerdadiario.com.br/LGBT-quem-somos-e-por-que-nossa-luta-e-de-toda-a-classe-trabalhadora

[5] KOROL, Claudia, Feministas: Diversas pero no dispersas, in: https://www.awid.org/es/noticias-y-an%C3%A1lisis/feministas-diversas-pero-no-dispersas  (acesso 18/02/2025)

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