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Sobre a Fome e a Produção de Alimentos no Brasil

Fazendo ecoar o Dia Mundial da Alimentação, partilhamos o artigo de Edmilson Schinelo “Sobre a Fome e a Produção de Alimentos no Brasil”.


Uma viúva, acompanhada de uma criança. Enquanto, à porta da cidade, ela ajunta lenha, um viajante estrangeiro vem pedir-lhe água e comida (1Rs 17,7-16). Do viajante, sabemos seu nome e o nome de seu Deus: Elias, seguidor de YHWH. Da mulher, não sabemos o nome, nem o de seu filho, nem o nome da Divindade a quem cultua. Aqui vamos chamá-la de Dona Ligória.

Assim como outras milhões de mulheres em diferentes cantos do mundo, Ligória é uma Mulher da Terra, gera e garante a vida a partir da Agricultura Familiar. “O que eu produzo eu vendo, troco, até faço doação. Todo mundo quer porque é puro, não tem veneno!”, afirma a agricultora paraibana. Como a Viúva de Sarepta, milhões de Ligórias subvivem e convivem com fome e com escassez de água. Ao mesmo tempo, não só sobrevivem, mas também acolhem, repartem pão e hospitalidade. Se para a religião oficial do capital “agro é pop”, as Ligórias seguem denunciando: “agro é morte”, não só porque destrói a natureza de forma abusiva, não só porque espalha venenos no solo, nos ares e nos rios, mas também porque não produz alimentos para matar a fome do povo.

Para a Leitura Popular da Bíblia, a conversa sobre fome e produção de alimentos não pode partir da perspectiva de Elias: a religião oficial, normatizada a partir do poder patriarcal, pode falsear as soluções. “A vasilha de farinha não se esvaziou e a jarra de azeite não acabou” (1Rs 17,16), porque Ligória dividiu com Elias o que ela tinha! Não tivesse feito isso, o próprio Elias não teria sobrevivido. O gravíssimo problema da fome tem solução, mas a solução vem das pessoas pequeninas, que precisam ser ouvidas pelas diferentes esferas do poder. Precisam elas mesmas exercer o poder.

As causas da fome no Brasil

Em 2021, mesmo em meio à pandemia da COVID-19, o Brasil alcançou uma produção de alimentos suficiente para alimentar cerca de sete vezes a sua população. Produzimos comida para 1,6 bilhão de pessoas! Nesse mesmo ano, os lucros da indústria alimentícia cresceram 16,9% em relação ao ano anterior. Em proporção inversa, no entanto, um dado estarrecedor: mais de 33 milhões de pessoas (15,5% da população) estão em situação de “insegurança alimentar grave”, forma mais técnica, e ao mesmo tempo mais sutil, para o que chamamos de fome diária e permanente. Como isso é possível?

Dois motivos normalmente apontados são explicação insuficiente e até mesmo falsa: a fome no mundo seria consequência da superpopulação e de fenômenos naturais (secas prolongadas, enchentes, terremotos, pandemia, etc.). Ainda que esses aspectos possam agravar o quadro, não são a causa da fome. Na sequência, apontaremos seis causas da fome no Brasil, o que se pode aplicar, de maneira geral, para boa parte dos países da América Latina e do mundo.

  1. A concentração das terras: o modelo de latifúndio que impera em nosso país é um dos maiores empecilhos para que a população tenha acesso à terra para dela tirar seu sustento. Desde os tempos das capitanias hereditárias e das sesmarias, mantém-se o mesmo método de invasão das terras por grandes proprietários e empresas, que impedem a produção familiar e o consumo local ou regional do que é produzido.
  2. O agronegócio exportador: adotando e apoiando uma política agrícola perversa a serviço do lucro e do escoamento da produção nacional, o Estado brasileiro submete-se ao mercado e ao capital internacional, que dita as regras do que deve ou não ser plantado. Sabe-se, por exemplo, que o arroz, o feijão, o leite e a mandioca são muito mais importantes para a mesa do povo brasileiro do que a soja. No entanto, acesso ao recurso público para o financiamento do plantio de soja é simplesmente incomparável ao dos demais produtos. Nos últimos 40 anos, a área plantada em soja aumentou de 9 para 40 milhões de hectares. A degradação ambiental, a expulsão de comunidades tradicionais de suas terras, o uso abusivo de venenos e o assassinato de lideranças rurais são apenas alguns dos elementos que se agregam a esse modelo violento. Os mesmos malefícios podem ser apontados também em relação ao cultivo de outras monoculturas, como o eucalipto e a cana-de-açúcar.
  3. Ausência de apoio à agricultura familiar: o próprio IBGE reconhece que cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil vêm da agricultura familiar, que também é responsável por quase 75% da força de trabalho utilizada no campo. Mecanizado e visando o lucro, o agronegócio, em seu modelo de latifúndios, gera muito pouco emprego. O falso discurso da grande mídia (para quem o “agro é pop”) e o forte lobby das bancadas ruralistas em nível federal e estadual impedem que a agricultura familiar fortaleça-se para que, de forma agroecológica e sustentável, reduza a fome do Brasil.
  4. Desemprego, subemprego e precarização da legislação trabalhista: o mesmo capital, que concentra o lucro a partir da exploração da terra, também faz com que a fome aumente no campo e na cidade. Sem um trabalho fixo, minimamente remunerado e com relativa segurança institucional, milhões de pessoas no Brasil são forçadas a conviver com a fome e a violência psicoemocional. Por escolha política, nos últimos anos, o Governo Federal impediu, inclusive, que o país saiba o número de pessoas desempregadas, possivelmente, na casa dos 12 milhões. De acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), quase 10 milhões ainda seguirão nessa condição em 2023 e 2024. A chamada Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), aprovada após o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, deixou desprotegida a própria população empregada, além de facilitar que os números sejam camuflados com a institucionalização do trabalho informal. Acrescente-se o fato de que, nos últimos anos, o salário mínimo deixou de ser corrigido em relação ao aumento do custo de vida.
  5. Desmantelamento das políticas públicas: o desmonte do Estado brasileiro foi violento nos últimos anos. Milhões de estudantes ficaram sem bolsa de estudo (seja porque estas foram cortadas, seja porque o acesso à universidade voltou a ser dificultado); povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais ficaram desassistidos; o programa de merenda escolar foi desmantelado; importantes programas de transferência de renda às famílias carentes foram enfraquecidos e fraudados. Milhões de pessoas passaram a ter novamente negado o direito mínimo à alimentação. A extinção do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), o desmonte do SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) e o descuido proposital com os estoques reguladores da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) comprovaram que o aumento da fome em tão curto espaço de tempo fez parte de uma escolha deliberada das elites, em especial as do agronegócio. Estas não só aprovaram a derrubada da presidenta Dilma, como apoiaram diretamente, na posterior eleição, um capitão do exército obcecado pela violência e pelo extermínio dos povos indígenas.  Não por coincidência, foram as mesmas elites que, atreladas à corrupta estrutura militar, financiaram os atos terroristas de 8 de janeiro deste ano.
  6. Violência contra a mulher: normalmente não se relaciona o fenômeno do aumento da fome com as diferentes formas de violência contra a mulher. A fome em si já é uma violência maior para com as mulheres. São elas que, na maioria das vezes, têm que dar colo a crianças famintas, tirando, quando ainda é possível, algum alimento de sua boca para que seus filhos e filhas não morram. As matérias assustadoras falando de pessoas recorrendo a caminhões de ossos em Fortaleza, Cuiabá, no Rio de Janeiro e em outros lugares, nem sempre diziam que a maioria das pessoas eram mulheres. Além disso, a ausência de creches e o difícil acesso ao estudo e ao emprego formal são também violências utilizadas pelo patriarcado e que acentuam a situação de fome e de dor.

 

A religião contribui para o aumento da fome ou para seu fim?

Entre as causas elencadas até aqui, algumas só vão desaparecer com mudanças estruturais. Depois de 14 anos de governos mais preocupados para as necessidades do povo, o Brasil voltou rapidamente para o “mapa da fome”. Isso aconteceu não em função da pandemia, nem mesmo por causa das crises internacionais. Apesar do apoio à agricultura familiar, da criação de empregos e de políticas públicas, não houve reforma agrária, terras indígenas não foram demarcadas, não houve tributação sobre grandes fortunas e não se enfrentou o machismo e o patriarcado. E como não fizemos educação popular como deveríamos ter feito, a direita (e a extrema-direita) voltou ao poder com apoio de parte expressiva da população, inclusive de membros de igrejas cristãs.

Há, portanto, mais um elemento a ser considerado: a religião. Ela também está entre as causas da fome, sendo responsável não só pelo aumento, como também pela legitimação da insegurança alimentar. Atreladas e a serviço do poder político-econômico, a religião e as igrejas, em grande parte, vêm servindo como instrumento de submissão e de cegueira do povo. As formas são as mais variadas: há quem sutilmente anestesie as consciências, dizendo que o sofrimento é vontade de Deus. Há quem insista em “anunciar” um deus violento, o mesmo deus de Elias, que teria “abençoado” o assassinato dos profetas de Baal e de Aserá (1Rs 18,19-40). A indústria armamentista, tal como o agronegócio e as milícias, agradece esse tipo de religião, a mesma que chegou às Américas com a cruz e a espada. Essa é a religião da des-graça (da ausência da Graça), a mesma que matou Jesus, dizendo que “bandido bom é bandido morto”. Tal religião criou raízes e soltou espinhos mais fortes nos últimos anos. Não foi capaz de aprender com Jesus, nem com Ligória, nem com Josué de Castro, para quem “a fome e a bomba atômica são as grandes descobertas do século XX”.

A religião também faz aumentar a fome quando não é capaz de questionar a lógica do desperdício. Jesus não se sentaria à mesa com quem tem para esbanjar e não está disposto a repartir com quem não tem (compare Mt 14,1-12 com Mt 14,13-21). Jesus jamais legitimou discursos de ódio, não aceitaria uma piada contra pessoas empobrecidas e muito menos atitudes de desprezo e aversão a elas (esse comportamento tem sido chamado de aporofobia). Jesus não entra em templo cristão, seja católico, protestante ou evangélico, de quem não é capaz de aprender com a partilha dos terreiros, com a experiência das religiões de matriz africana, cultos nos quais a fome não tem lugar.

Religião que mata a fome é a Religião das Ligórias… É simples, plural, defensora da agroecologia, da agricultura familiar, da soberania alimentar de cada cultura, de comida para o povo e não para o deus mercado. Religião das Ligórias é a religião de Jesus…

 

Fontes utilizadas:

CASTRO, Josué de. A geografia da fome. São Paulo: Brasiliense, 1959.

CASTRO, Josué de. Prefácio ao livro de Robert de Mantvalon. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/educacao-e-desenvolvimento/. Acesso em 29 jan. 2023.

MINAYO. Maria Cecília de Sousa. Raízes da fome. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Campanha da Fraternidade de 2023: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022.

PICCOLOTTO, Letícia. Brasil produziu comida para 1,6 bilhão, mas 33 milhões passam fome. Como? Disponível em: https://bityli.com/8S3QV. Acesso em: 29 jan.2023.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Análise da segurança alimentar no Brasil: 1 Nota técnica 01/2021. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101858.pdf. Acesso em 29 jan. 2023.

ASBRAER. Quem produz os alimentos que chegam à mesa do brasileiro? Disponível em: https://bityli.com/yI6Fsh. Acesso em 29 jan. 2023.

OBSERVATÓRIO DA CANA: https://observatoriodacana.com.br/listagem.php?idMn=4. Acesso em 29 jan. 2023.

EMPRAPA: https://www.embrapa.br/soja/cultivos/soja1/dados-economicos. Acesso em 29 jan. 2023.

MULHERES DA TERRA: https://bityli.com/a4vRP. Acesso em 29 jan. 2023.


Edmilson Schinelo, Campo Grande-MS

Biblista Popular e colaborador junto ao CEBI

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