Marcelo Barros
No final deste mês de novembro, Leão XIV fez a sua primeira viagem como papa. Foi a Iznic, antiga Nicéia, a 130 km de Istambul. Ali, há 1700 anos, ocorreu o que se considerou o 1º concílio ecumênico da Igreja. Neste concílio, foi composto o Credo, comum a todo o Cristianismo. De fato, a recordação de Nicéia nos faz reviver tempos nos quais as Igrejas eram diversas, em cada local, mas ainda não se tinham dividido.
Ter um Credo comum a todas as Igrejas foi ótimo, mas, ao fazer isso, Nicéia levou à Igreja a definir a fé pela expressão dogmática. Não fez distinção entre a fé e uma expressão da fé. Além disso, privilegiou o dogma e não a prática, ou seja, a adesão ao projeto divino. Em artigo memorável, Eduardo Hoornaert descreve o momento histórico que a Igreja cristã viveu em Nicéia e o que representou aquele concílio para o futuro do Cristianismo[1].
De um lado, Nicéia deu à Igreja o direito de existir que, antes, lhe era negado. Possibilitou aos bispos dos diversos recantos do mundo greco-romano a se conhecerem e dialogarem. Teologias divergentes como a da escola de Antioquia e a de Alexandria puderam se encontrar e tentar uma síntese sobre o método de interpretação da Bíblia, mais histórico, ou mais alegórico e sobre quem é o Cristo para nós.
Nicéia representou a unidade do Cristianismo greco-romano da época, mas desconheceu as formas de ser cristãs das comunidades sírias, semitas ou africanas, embora já houvesse comunidades cristãs na Etiópia e em outros locais africanos colonizados pelo Império, mas ainda não romanizados, como já era a Tunísia, ou Hipona de Santo Agostinho.
Nada de estranho que os bispos, vindos de todos os recantos do mundo greco-romano se alegrassem com a acolhida e apoio de Constantino. Afinal, o concílio foi feito no palácio de verão do Imperador. Eusébio de Cesareia, um dos 300 bispos presentes no concílio, escreveu que eles tiveram tratamento de senadores, como o Império fazia antes com os sacerdotes da antiga religião imperial. Por isso, a partir de Nicéia, os bispos cristãos assumiram insígnias que antes eram dos sacerdotes romanos do culto imperial. Até hoje, a maioria dos padres acha normal celebrar com casula e há bispos que pensam que a mitra vem do evangelho, ou pode ajudar na sua missão de pastor. (Ver sobre isso: Crossan, J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994, p. 462, também citado por Eduardo Hoornaert).
Não há dúvida de que a principal herança de Nicéia não foi a doutrina. O povo simples e mesmo muitos eclesiásticos, precisariam estudar Filosofia grega para compreenderem o que significa dizer que o Filho é consubstancial ao Pai. Mais tarde as Igrejas do Ocidente se dividiriam das do Oriente, sobre se o Espírito Santo procede do Pai, pelo Filho, ou se procede do Pai e do Filho. A mais concreta herança de Nicéia foi organizar a Igreja no modelo das administrações regionais do Império Romano, que se chamavam dioceses e eram governadas por nobres, cujo título eram vigários. Até alguns séculos depois, os bispos eram eleitos e o Código de Graciano, um dos primeiros textos de Direito Canônico, diz claramente: “nenhum bispo imposto” (Cf. José Ignacio Faus. As eleições episcopais na História da Igreja. Paulus, 1996). Na época do Papa Gregório VII (1075), todos os bispos já eram nomeados pelo papa.
Não podemos culpar Nicéia por transformar o Papa em chefe da Igreja Universal e rei, até o século XIX, dos Estados Pontifícios e, hoje, do Vaticano. O modelo de Nicéia e a compreensão de Deus como poder e daí, a quase divinização dos ministérios eclesiais como representação do poder divino no mundo vigora até hoje. Outros pecados vieram depois de Nicéia.
Para nós da América Latina e do sul, fica o desafio de jogar fora a água do banho, sem perder junto a criança. É o que hoje, em todos os campos da cultura, se chama Decolonialidade. Além de descolonizar a expressão doutrinal e o estilo eclesial, através dos quais vivemos a fé, precisamos, em comunhão com a Igreja Universal, propor a nossa forma própria de viver a fé e sermos Igrejas locais, sem precisar sermos italianos, franceses ou alemães para sermos cristãos.
Qualquer pessoa de bom senso percebe que a organização de dioceses e paróquias não responde mais aos desafios dos nossos dias. O modelo territorial, iniciado em Nicéia, é o da Cristandade e continua organizado no modelo colonial. Atualmente, em quase todo o mundo, qualquer pessoa toma um carro e participa da comunidade que responde mais ao seu estilo de fé e não da paróquia ou diocese onde mora.
Já nos anos 1970, Pedro Casaldáliga e a equipe pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia não criaram paróquias e sim zonas pastorais, coordenadas coletivamente por padres, religiosas e leigos. Como pensar que, no modelo hierárquico de Igreja, vindo de Nicéia e não do evangelho, seja possível estabelecer a sinodalidade proposta pelo Papa Francisco? Quando Francisco instituiu a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), um cardeal brasileiro confidenciou a amigos: “Deveria ter feito uma conferência episcopal e não eclesial”. E este cardeal é dos mais abertos a uma Igreja dos pobres. Daí se vê que o modelo eclesial definido por Nicéia continua vivo e atual.
Tudo isso nos remete ao nosso modo de ver Jesus Cristo e compreender como o seguimos. Nicéia fez dele o Cristo Senhor e divino, ao qual devemos servir com o nosso culto. A decolonialidade da nossa fé não nega que ele é divino, mas como o Cristo Cósmico, do qual Paulo escreveu aos colossenses (Cl, 1, 15), partilha essa condição com todas as pessoas humanas e até com todos os seres do Universo.
O desafio atual para as nossas Igrejas não é crer no dogma definido há 1700 anos na Turquia e sim fazer um novo concilio ou fórum com participantes de todas as Igrejas Cristãs e em diálogo com irmãs e irmãos de outras religiões, principalmente das tradições dos povos originários e comunidades afrodescentes (em todo o mundo). Precisamos testemunhar que ele veio ao mundo, como pobre de Nazaré para nos fazer ver em toda pessoa humana, mas especialmente, nos povos crucificados, o que no Carnaval de 2020, a Escola de Samba da Mangueira chamou de “Jesus da Gente” e não o Cristo Rei. Este inspirou o Papa Pio XI a assinar com Mussolini o Tratado de Latrão (1925) e, assim voltar a ser chefe de Estado, na única monarquia absoluta do Ocidente. É o Jesus da Gente que com a Mangueira podemos continuar cantando:
“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil.
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
Eu tô que tô dependurado em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão
Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi pro cordão da liberdade
[1] – https://ihu.unisinos.br/660458-niceia-1700-anos-um-desafio-artigo-de-eduardo-hoornaert



