Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas

Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas

Celebrando o dia 25 de julho, das Mulheres Negras Latino-americanas e Caribenhas, o Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, através de Sílvia Souza (PE) , recebe para uma entrevista a professora Bernadete Silva, Mestra em Culturas Africanas da Diáspora e dos povos indígenas, Especialista em Políticas de Promoção da igualdade racial na escola. Contadora de História com ênfase nas literaturas afro, negro brasileira e indígenas, criadora da personagem Afroberna, através da qual conta histórias voltadas para o letramento racial.

Sílvia Souza (CEBI) – O dia 25 de julho foi definido como Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha no 1° Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, em 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana, ocasião em que também foi criada a Rede de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenhas, desde a sua criação até os nossos dias, qual caminho tem sido feito pelos movimentos negros, antirracista e de letramento racial? Quais os enfrentamentos?

Bernadete Silva – O provérbio africano diz que enquanto os leões[1] não contarem suas histórias, os caçadores serão sempre os vencedores, e foi nessa perspectiva que nos fizerem acreditar que a população negra nasceu fadada a escravidão, ao fracasso. A historiografia oficial nos omitiu as histórias dos nossos heróis e heroínas, a exemplo da rainha Tereza de Benguela. Rainha, assim ela era chamada por seus liderados, indígenas e negros do Quilombo do Quariterê. Não se informa o local de nascimento de Tereza, se Brasil ou continente africano, hoje sabemos que ela era uma rainha. Este fato comprova que nós, pessoas negras brasileiras, somos também descendentes de reis e rainhas, não nascemos escravos nem escravas, fortalecendo nossa identidade e autoestima

Este quilombo estava localizado no Vale do Guaporé, na região que hoje corresponde ao estado de Mato Grosso, e era um dos maiores da região, abrigando tanto pessoas negras quanto indígenas. Tereza assume a liderança do quilombo, após o assassinato do seu marido José Piolho, ela criou um parlamento para governar o seu Quilombo. Uma mulher de luta e resistência. Isso não foi passado, até que alguém vai descobrindo e faz os repasses da verdadeira história da nossa rainha. No dia 25 de julho, quando comemoramos  o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, fazemos uma homenagem a Teresa de Benguela. Mas tem um apagamento intencional, então é importante sim, porque Teresa tombou, mas Teresa tem uma história de luta muito representativa para nós. Teresa não morreu, Teresa hoje está bem viva em nós que damos continuidade a nossa luta. Não se sabe ao certo se ela se suicidou ou se ela foi assassinada, provavelmente a segunda hipótese. Assim como aconteceu com o zumbi dos Palmares, não interessa a historiografia oficial passar esses detalhes, esse é o apagamento da história do povo negro, que não chega nas escolas.

Teresa vive em cada uma de nós, que lutamos e resistimos por uma sociedade antirracista, por uma sociedade igualitária. Viva Teresa de Benguela.

Sílvia Souza (CEBI) – Muito bem lembrado por você, esse título de rainha. Uma das memórias que me marcaram na infância foi que todas as vezes que se olhava no livro da escola uma pessoa negra era sempre escravizada, com um objeto na cabeça, trabalhando na cozinha, nunca mostravam uma rainha e um rei. Na verdade as pessoas que vieram em diáspora à força para o Brasil, foram raptadas e escravizadas, muitas delas eram das cortes reais. Aqui  faço um paralelo com a Bíblia, quando o povo foi levado para a Babilônia,  prioritariamente se levou o  Rei e altos funcionários da corte, profissionais altamente qualificados como ourives, escribas, professores, porque é tradicional essa estratégia, é isso que se faz, desarticula a liderança para enfraquecer um povo. Então quem vem para o Brasil, você diz muito bem, são reis, rainhas, cortes, grandes artesãos, estudiosos, Quando o colonizador escraviza e tenta desarticular uma população, ele traz, prioritariamente,  suas lideranças, logo quem vem para o Brasil é a elite do povo negro,   somos descendentes de reis, rainhas, e  pessoas trabalhadoras altamente qualificas. Quem sabe por isso somos um povo  tão inteligente, capaz de produzir estratégias de resistência.

O dia 25  de julho, no Brasil,  já consegue atingir as expectativas,  consegue promover consciência? Você que gosta e luta tanto por letramento racial percebe esta evolução? Ou nós ainda estamos patinando nisso? Outro ponto é:  como nós do CEBI, que caminhamos  com educação popular numa perspectiva de leitura popular da Bíblia, podemos nos engajar nessa busca pelo letramento racial?

Bernadete Silva: O 25 de julho também,  chamado JULHO DAS PRETAS,  eu não  como está no Brasil, sei que aqui de Pernambuco é forte e bem vivenciado. Eu acho que começa a se fortalecer,  porque se  algum tempo atrás me perguntassem quem é Teresa de Benguela, eu não saberia. Como eu já disse antes,  a escola não nos falou sobre a história das pessoas negras. Através do Moviments Negro,  dos sindicatos,  das associações populares, notadamente de mulheres, muitas delas negras, que vem se ampliando e fortalecendo o julho das pretas. Neste mês tivemos um sarau com a temática aqui em Recife/PE,  nas escolas, de forma mais tímida, porém vem chegando através de  educadoras e educadores que estão mais engajadas.

Eu vejo o CEBI também neste engajamento, quando promove esse momento e outros como suas publicações, entre elas o livro Canto para Olorum, do qual participei como co-autora. Então acho que dá para levar esse material para as igrejas, que ainda caminham pelo embranquecimento, com os pés bem fincados nessa branquitude, ainda essas barreiras [como o racismo religioso], salvo algumas lideranças negras que [dentro e fora das igrejas] vão rompendo com essas barreiras. Sugiro ao CEBI continuar entrando nas Comunidades, se juntando com escolas, sindicatos…,  abrindo esse espaço de debate e de transformação também nas igrejas. O CEBI tem ricas contribuições,  por essa abertura para com as questões da negritude e por esse olhar atento.

Sílvia Souza (CEBI) –  Gratidão Bernadete, (a quem chamo carinhosamente de Bel), por sua fala  potente, que nos inspira tanto. Eu gostaria de terminar, e já pedir para você fazer as suas conclusões. Eu disse que você constrói suas atividades de forma lúdica com uma personagem, a Afroberna, através das contações de histórias. Então você faz um diálogo entre a academia, você é mestra, e o povo.  Construindo esta ponte linda entre a produção acadêmica e as pessoas do povo. Gostaria de saber qual a sua percepção, de que modo o conhecimento produzido na academia, hoje quase  todas as universidades, faculdades  tem um NEABI ou NEABIT – Núcleo de Estudos da cultura afro-brasileira, indígena e de povos tradicionais, então,  de que forma as instituições de ensino superior estão fazendo essa ponte com a sociedade?  Ou  ainda não conseguiram ? Qual o estágio destes intercâmbios?  Pergunto isso a você enquanto pessoa da academia e mulher que trabalha com a população, que tipos de apoios, incentivos, o que está acontecendo nesta área para fazer essa ponte accademia-povo.?

Bernadete Silva – No caso de Afroberna,  por exemplo,  Afroberna nasceu em  sala de aula,  na pós-graduação em Política de Promoção da Igualdade Racial da Escola,  mais precisamente na aula da professora Deise Moura, que veio a ser minha orientadora no mestrado, eu vim ter a consciência de que mesmo engajada, mesmo sendo mulher negra e que trabalhava com a literatura, eu não era tão enfática em relação a literatura negra e a indigena. Então foi a partir dessa aula que o meu olhar despertou para criar essa personagem. Eu já era professora aposentada e voltei para fazer esse trabalho.

A partir das leis que tornam obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escola ( Lei 10.639/2003), que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), e a Lei 11.645/2008, que amplia essa obrigatoriedade para incluir também a história e cultura indígena, vem chegando lentamente nas universidades. Recentemente eu fiz uma pós-graduação  em Literatura de Infantil e Juvenil Brasileira e pela primeira vez essas literatura chegaram, através de uma professora e um professor. Vale lembrar que a minha formação inicial é Licenciatura em Letras e eu não tive esse acesso para  trabalhar a minha identidade, a minha negritude. Também não tinha um trabalho mais empático em relação aos povos indígenas. Então a partir das leis 10.639/2003 e 11.645/2008,  vem chegando lentamente.  Na Universidade Federal de Pernambuco, por exemplo, a professora Deise Moura criou a disciplina que trata da educação antirracista. Recentemente eu fui para uma formação para educadoras e educadores quilombolas dentro dessa perspectiva de identidade racial. Então aos poucos vem num crescente. Porém, convém lembrar, que as leis são de  2003 e 2008, esse trabalho avança lentamente,  porque quem fazia antes era por consciência,  hoje,  apesar das leis, ainda falta muito, embora já tenham havido muitas mudanças.

Esta temática vem se espalhando pelos órgãos de classe,  sindicatos dos professores/ras, entre outros, exemplificando, recentemente houve, aqui em Recife/Pernambuco,  uma discussão nos sindicatos  municipal e estadual.  Concluo dizendo que, vem sim ganhando o campo,  falta muito,  mas vem ganhando os campo.

Sílvia Souza (CEBI) –  Quero agradecer muito a sua disponibilidade e dizer que nesse JULHO DAS PRETAS é extremamente importante que  se duas mulheres pretas se  encontrem para falar de preto e pretas.  Imaginar e lutar para que, cada vez mais, pretas e pretos possam se encontrar para contar as nossas histórias. Sim,  as leoas e leões já estão começando a contar suas histórias,  essa não vai ser mais uma história só de caçadores, será também uma história de pessoas pretas.

Bernadete Silva – História sem cortes, histórias verdadeiras, realmente podemos contar as nossas vidas. A gratidão é minha  por mais este momento, mais este espaço. Há tempos atrás, quem diria que um dia as pretas estariam assim, refletindo sobre a história de pretas e pretos e construindo  esta reparação histórica.

UBUNTU[2]

[1] O leão africano é frequentemente considerado um dos animais símbolos da África, devido à sua força, majestade e presença marcante no continente.

[2] Ubuntu é um conceito filosófico que africano, extraído da prática coletiva, que  significa “humanidade para os outros” ou “eu sou o que sou por causa de quem somos todos nós” ou “eu sou porque nós somos”. É uma visão de mundo que enfatiza a interconexão humana, a solidariedade e a importância da comunidade.

Carrinho de compras
Rolar para cima