Em homenagem aos 93 anos do Frei Carlos Mesters, o CEBI publica este verbete que leva seu nome, retirado do Dicionário do Concílio Vaticano II. Elaborado por Rafael Rodrigues da Silva, diretor nacional do CEBI, o texto celebra a trajetória e o legado de Frei Carlos, uma figura marcante na caminhada bíblica e pastoral. Este verbete é uma homenagem à sua vida e contribuições, oferecida para inspirar novas gerações através de uma leitura bíblica engajada e transformadora.[1]
Carlos Mesters (Jacobus Gerardus Hubertus Mesters), frade carmelita, de origem holandesa, nasceu em Bunde no dia 20 de outubro de 1931. Chegou no Brasil com 17 anos, no dia 20 de janeiro, juntamente com seu amigo Vital Wilderink, para exercer atividade missionária. Concluiu o curso de Humanidades no Convento do Carmo da Rua Martiniano de Carvalho e em janeiro de 1951, recebeu o hábito carmelita e o nome de Frei Carlos. Em 1952 ingressou no curso de filosofia em São Paulo e em 1954 foi estudar teologia no Colégio Internacional Santo Alberto, em Roma. E no dia 07 de julho de 1957 foi consagrado presbítero. De 1958 a 1962 formou-se em teologia no Angelicum, Ciências Bíblicas no Institutum Biblicum de Roma e na École Biblique de Jerusalém.
De 1963 a 1978 exerceu várias atividades. Primeiro, foi nomeado professor no curso teológico dos Carmelitas em São Paulo e uma rápida passagem no Colégio Internacional Santo Alberto em Roma (em 1967). De volta ao Brasil em 1968 foi morar em Belo Horizonte, no Convento do Carmo, que era um importante ponto de referência naquele período de ditadura e de resistência ao regime militar.
Seus primeiros escritos foram um artigo para a Revista de Cultura Bíblica sobre o Êxodo na Bíblia e artigos para o jornal católico O Diário de Belo Horizonte. Mais tarde os artigos do jornal foram editados em dois volumes com o título: Palavra de Deus na História dos Homens. Em 1971 com a intenção de fornecer uma chave de leitura para as discussões ao redor de Gênesis 1-11 publica o livro Paraíso Terrestre, saudade ou esperança? Com o objetivo de trazer a Bíblia ao alcance do povo e respondendo a um pedido da Coordenação Pastoral de Belo Horizonte apresenta a proposta de roteiros de Círculos Bíblicos. Inicialmente mimeografados e distribuídos pelos grupos e depois publicado pela Editora Vozes. Entre 1971 e 1974, começa a publicar os seus cursos através dos livros: Deus, onde estás? e Por trás das palavras. Estes livros se tornaram ferramentas para uma visão geral da Bíblia e uma leitura acerca da Interpretação da Bíblia na Igreja e nas comunidades cristãs.
Dois eventos foram marcantes para o trabalho bíblico de Frei Carlos Mesters: o Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base e o Encontro de Petrópolis que reunia teólogos, agentes de pastoral, sociólogos e cientistas da religião, três vezes por ano e que teve o seu início em 1974. De certa maneira, estes eventos foram fundamentais para o surgimento do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) e Frei Carlos nos inícios da década de 70 abandona atividades acadêmicas e passa a viajar por todo o Brasil para assessorar cursos de Bíblia e encontros de pastoral. Desde o surgimento do CEBI até o momento presente, são 35 anos. E fato inconteste nestes anos é o trabalho dedicado e cuidadoso de Frei Carlos Mesters em devolver a Bíblia para o povo, o que mais tarde se denominou como “Leitura Popular da Bíblia”. Nesses anos qual a relação, influência e aplicações dos anseios do Concílio Vaticano II?
A Constituição Dogmática Dei Verbum considerado um importante documento do Vaticano II acerca da Revelação, apontava para duas leituras que se descortinavam depois do Concílio: uma, ainda na esfera das disputas apologéticas onde se buscava apontar erros acerca da interpretação dos textos bíblicos e, outra, de cunho propositivo e pastoral que procurava incentivar os estudos das Escrituras. Certamente, a Congregação do Santo Ofício buscou o caminho da doutrina e da polêmica, enfatizando questões como inerrância dos textos, inspiração, a leitura de acordo com a Tradição e o Magistério da Igreja. Se olharmos os escritos de Frei Carlos Mesters na década de 70 veremos o quanto se buscou colocar em prática o estudo da Bíblia, o conhecimento do contexto histórico e a Revelação de Deus hoje. O livro Paraíso Terrestre, saudade ou esperança?, apresenta no todo uma leitura e análise acerca das questões doutrinais que aprisionam o texto de Gênesis 1-11. Não é à toa que este livro vai ser analisado pela Sagrada Congregação da Doutrina da Fé. Diga-se de passagem, quase vinte anos depois. Não teve repercussão porque Frei Carlos não optou pelo embate e preferiu continuar o seu trabalho junto com o povo. No entanto, em meio ao que se apresentou como indicativos da Dei Verbum, Frei Carlos em seus primeiros cursos em Belo Horizonte e que resultaram nos livros: Deus, onde estás? e Por trás das palavras. Um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia; apresenta uma visão geral sobre a Bíblia no tocante à Revelação de Deus e uma discussão sobre a aproximação do povo com a Bíblia. O Volume 1 do Por trás das palavras tem no primeiro capítulo a Parábola da porta ou a história da explicação da Bíblia ao povo e fecha o fecha o volume com a História da Flor sem defesa. Já o Volume 2 (livro que foi publicado e circulou como texto mimeografado) traz na introdução a Parábola da Construtora. Nestes livros pretende apresentar a leitura popular da Bíblia e a discussão com a exegese e o uso da Bíblia na Igreja. No tocante ao uso da Bíblia na Igreja, vale salientar toda a sutileza de Frei Carlos Mesters de apresentar a leitura da Bíblia realizada nas comunidades como uma leitura que procura ser fiel à Tradição e, sobretudo, que ela segue os encalços do vento novo que foi soprado pelo Vaticano II.
Para Frei Carlos Mesters, o pontificado de João XXIII não emitiu muitos decretos relativos à Bíblia. Num dos primeiros discursos, João XXIII referiu-se à Bíblia, dizendo que na mesa do cristão deve estar o cálice e o livro. Porém, o Concílio Vaticano II trouxe um novo conceito de Palavra de Deus, mais de acordo com o conceito bíblico; um novo conceito de Revelação, mais de acordo com a Bíblia e a Patrística; um novo conceito de inerrância, mais de acordo com as exigências da ciência e da realidade; um novo conceito de Tradição, mais de acordo com a Bíblia e mais perto dos protestantes; um novo conceito de fé, mais de acordo com as Cartas de Paulo e menos intelectualista; um novo conceito da função do Antigo Testamento, mais de acordo com a exegese neo-testamentária e com a exegese patrística. Nesta direção, nos anos em que assumiu aulas no Curso Teológico dos Carmelitas em São Paulo (de 1963 a 1967) circulou o texto mimeografado de seu curso de Introdução à leitura da Sagrada Escritura, com a seguinte divisão de assuntos: a) noções preliminares (o porquê dum curso de Introdução à leitura da Bíblia); b) Deus fala aos homens: explicação dogmática e teológica do mistério das Sagradas Escrituras que consiste no fato de que ela é Palavra de Deus em linguagem humana; c) A Bíblia como Palavra de Deus; a concepção bíblica da Palavra de Deus; d) Atitude do homem diante da Palavra de Deus e e) A Palavra de Deus na prática da vida (ressaltando a relação entre Bíblia e A Regra do Carmo e a Bíblia na vida carmelitana). De certa maneira os temas tão presentes na leitura da Bíblia e nas discussões ao redor das Escrituras no Concílio Vaticano II aparecem nesses cursos de Frei Carlos Mesters e nos seus artigos escritos na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) de 1970: A concepção bíblica da Palavra de Deus e O profeta Elias, inspiração para hoje.
A hermenêutica de Frei Carlos Mesters, que já foi objeto de dissertações e teses, apresenta cinco pontos importantes: a) quem lê a Bíblia é o povo e sempre apresenta em seus escritos como o povo lê a Bíblia. É o que encontramos nos livros Por trás das Palavras e Flor sem defesa e em seus artigos sobre os Encontros Intereclesiais de CEBs. b) Espelho da vida. Deus em meio à vida e a história. De forma crítica procura apresentar a leitura da Bíblia como uma forma de conhecer melhor a realidade presente e os apelos de Deus que aí existem. O importante é não tanto interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida que a vive. c) Livro escrito pelo povo (tradições e memórias populares), para o povo (essa é a consciência dos que leem a Bíblia na Igreja dos Pobres). Com isso, aponta a importância do ponto de vista social para ler a Bíblia. d) O povo lê a Bíblia com fé: Deus fala pelo livro e sem essa fé não há luz para penetrar no sentido de suas páginas. e) Leva a um engajamento com os oprimidos (a dimensão da práxis). f) Tem que provocar a transformação da vida (sentido de libertação).
Dito isto, podemos entender que a sua hermenêutica seja apresentada de forma triangular. Vejamos o que o próprio Frei Carlos diz sobre os três ângulos: “Na interpretação da Bíblia não se trata de ler o texto e de explicá-lo. Não é só uma questão de saber o que o texto diz. Mas é uma questão de tornar real a fé que temos e que nos diz: Deus fala hoje! Lemos e interpretamos a Bíblia para discernir esta fala de Deus no coração da vida e na caminhada do povo. Por isso, para a reta interpretação da Bíblia não basta a Bíblia, nem basta uma boa inteligência capaz até de ler a Bíblia na sua língua original (hebraico, aramaico e grego). É necessário que a Bíblia seja lida dentro de uma comunidade, a partir dela e em função dela. Comunidade de fé, onde atua o Espírito, onde a leitura da Bíblia é envolvida por orações e celebrada com cânticos. Além disso, a leitura deve ser feita a partir da Realidade nossa, esta realidade humana que nos questiona, onde o povo vive, sofre, luta, apanha, reage, resiste, nasce, morre. Estes três elementos juntos (Realidade – Comunidade – Bíblia) ajudam a fazer a interpretação correta, cujo objetivo último não é interpretar a Bíblia, mas interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Por isso, o trabalho bíblico junto ao povo não pode ser reduzido a alguns “cursinhos” bíblicos que informam sobre a Bíblia. Deve ajudar a deslocar o eixo: “Deus fala misturado nas coisas”. A Bíblia confrontada com a Realidade, dentro da Comunidade, torna-se espelho e, por causa dela, o apelo de Deus começa a aparecer de dentro da Realidade de hoje, vivida pelo povo. Quando se diz “Realidade”, não se trata de uma análise teórica informativa, mas trata-se de refletir sobre a própria prática daqueles que querem ler a Bíblia. Quando se diz “Comunidade”, não se trata da Igreja Universal, mas do grupinho pequeno e fraco que se reúne em torno da Palavra, dois ou três ou mais, “aí estou no meio deles”. É para descobrir esta presença libertadora”.
A leitura popular da Bíblia produzida e difundida por Frei Carlos e pelo CEBI nem sempre foi uma leitura aceita em diferentes setores da Igreja dentro e fora do Brasil. Primeiro por ser uma leitura militante popular, comunitária e ecumênica. Uma das censuras foi ao Projeto Palavra-Vida da Conferência Latino-Americana de Religiosos em 1989 e que foi corajosamente assumido pela Conferência dos Religiosos do Brasil. Na época Frei Carlos apresentou um texto descrevendo o Projeto Palavra-Vida e a sua relação com a Igreja (Palavra-Vida: uma leitura fiel à Tradição e ao Magistério). O seu artigo tece os principais aspectos da leitura popular da Bíblia em resposta às acusações que foram feitas ao projeto, principalmente de fazer uma leitura reducionista da Bíblia e da História da Salvação; não respeitar devidamente a Tradição e o Magistério da Igreja; não dar o lugar central a Jesus Cristo, entre outros. Os aspectos da leitura Popular da Bíblia são fundamentados especialmente com a Constituição Dogmática Dei Verbum: 1. a Bíblia é Palavra de Deus e esta é a porta de entrada para o povo; 2. Palavra de Deus em linguagem humana (cf. DV 12); 3. Deus se revela na Sua Palavra (DV 4); 4. Jesus é a chave principal da Sagrada Escritura (DV 2.3.4.15.16.17); 5. a Bíblia é o livro da Igreja e as Comunidades dos pobres leem a Bíblia. O Magistério pode olhar com gratidão para o fenômeno mais marcante da história das Igrejas na América Latina: os pobres estão lendo a Bíblia em comunidade, a partir da sua fé e da sua realidade, encontram nela luz e força para a sua caminhada e luta e, baseando-se nela estão denunciando e corrigindo muita coisa errada na sociedade, na Igreja e na família; 6. é preciso levar em conta a situação do povo que hoje lê a Bíblia. São os critérios da realidade; 7. uma leitura orante e que coloca a exegese a serviço da evangelização (DV 23). Conclui dizendo: “são estas as normas elementares da interpretação cristã da Bíblia, exigidas pela Tradição e pelo Magistério, sobretudo pela Dei Verbum. Elas orientaram a elaboração do projeto Palavra-Vida e, agora, estão na sua raiz e a alimentam”.
Finalmente, podemos dizer que o caminho trilhado por Frei Carlos Mesters no seguimento do vento e da brisa do Vaticano II na Igreja, sobretudo na América Latina e Brasil, teve frutos e um grande seguimento e discipulado por esses anos. Como ele mesmo diz na história da flor sem defesa: “Senti o perfume de uma ideia ligeira que o povo soltou em minha frente, e fui atrás. Como cão mestre, tentei rastreá-la, até atingir, se fosse possível, a casa onde mora a flor que soltou esse perfume. Foi essa ideia ligeira que me guiou nos caminhos desta pesquisa, anos a fio, através do Brasil e da Bíblia. Iniciei a caminhada bem abastecido. Não faltavam ideias, cursos feitos, diplomas obtidos, leituras e conselhos recebidos. Tudo isso muito me ajudou. Mas na medida em que eu ia rastreando o perfume da ideia ligeira pelo fundo dos matos do sertão e da Bíblia, fui me sentindo como o sertanejo, cada vez mais pobre, muito pobre, “muito pobre coitado”. E quando cheguei no lugar onde mora a flor, tive que dizer a mim mesmo: “Eu quase que nada não sei” e comecei a “desconfiar de muita coisa” que sempre me ensinaram. Comecei a ver o outro lado das minhas ideias, o lado daqueles que as ouvem. (…) Histórias simples, que dá o que pensar. Foi escrita lá mesmo, na casa onde mora esta flor, nascida da semente da Palavra. Lá, ouvi ainda uma frase do Evangelho, como se fosse pronunciada pela primeira vez: “Pai, eu te agradeço, porque escondeste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos simples” (Mt 11,25)”.
Bibliografia
CAVALCANTI, Tereza Maria Pompéia. A teologia subjacente à obra de Carlos Mesters. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1984 (Dissertação de Mestrado)
CAVALCANTI, Tereza Maria Pompéia. O método de leitura popular da Bíblia na América Latina: a contribuição de Carlos Mesters. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1991 (Tese de Doutorado).
FELIX, Isabel Aparecida. Anseio por dançar diferente. Leitura popular da Bíblia na ótica da hermenêutica feminista crítica de libertação. São Bernardo do Campo: UMESP, 2010, p.13-164 (capítulos 1 e 2 tratam de Carlos Mesters e a leitura popular da Bíblia e o CEBI e o método da leitura popular da Bíblia).
LOPES, Eliseu Hugo. Os 60 anos de Frei Carlos. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, nº 10, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal, 1991, p.9-18.
MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia. 8ª. edição, Petrópolis: Vozes, 1998.
MESTERS, Carlos. Por trás das palavras. Um estudo sobre o uso da Bíblia na Igreja (texto mimeografado)
MESTERS, Carlos. Flor sem defesa: uma explicação da Bíblia a partir do povo. Petrópolis: Vozes, 1983.
MESTERS, Carlos. Como ler a Bíblia hoje. Belo Horizonte: Centro de Integração Psico-teológico, 1970 (texto mimeografado).
MESTERS, Carlos. Curso de Introdução à Leitura da Sagrada Escritura. São Paulo: Curso Teológico dos Carmelitas, 1964-1965 (texto mimeografado)
MESTERS, Carlos. Balanço de 20 anos. A Bíblia lida pelo povo na atual renovação da Igreja Católica no Brasil (1964-1984). São Leopoldo: CEBI, 1988.
MESTERS, Carlos. O Projeto Palavra-Vida e a leitura fiel da Bíblia de acordo com a tradição e o magistério da Igreja. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, nº 3, Petrópolis: Vozes, São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Imprensa Metodista, 1989, p.90-104.
REVISTA GRANDE SINAL. Eu me acuso. A Bíblia e a causa do pobre. Ano XLII, Petrópolis; Vozes, 1989.
[1] SILVA, Rafael Rodrigues da. Mesters, Carlos. In: PASSOS, João Décio e SANCHEZ, Wagner Lopes (coordenação). Dicionário do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2015, p.598-601.