Francisco: Além de Papa, irmão dos povos oprimidos e marginalizados

Izaías Torquato
teólogo e biblista, reverendo da Paróquia Anglicana São Felipe
Goiânia-GO

O tempo parou, a Criação toda celebra com alegria a vida do Papa. Sim, antes de fazer menção a sua Páscoa, percebe-se o riso e a satisfação de muitas pessoas em ser contemporâneas da história da vida de Francisco. Que coincidência feliz presenciar um momento tão importante do mundo. Bem para além de ser Bispo de Roma, Francisco desejou e buscou ser, com todas as pessoas, filho de Deus, discípulo e seguidor de Jesus. Conseguiu.  

As notícias todas, nas mídias e redes sociais, da metade do planeta, fazem menção ao Papa, irmão dos povos oprimidos, das gentes marginalizadas. E menciona sua grande colaboração ao enfrentar as estruturas injustas, na abertura de diálogos inter-religiosos e ecumênicos, do respeito às diferenças (LOC. P.122). 

Ele partiu sem negar as origens de quem veio “do fim do mundo” e se tornou companheiro de tantas pessoas nesse caminho comum que é a vida! Como Pedro Casaldáliga é tão sublime e poético, chamar Francisco, apenas, de Francisco, aquele que é irmão do sol, da lua e irmão da luz. As pessoas mais próximas a Casaldáliga chamavam-no de Pedro, apenas Pedro, Pedro de São Félix do Araguaia. Pedro incapaz de pegar numa espada mesmo que fosse para defender a quem mais amava. 

Ainda podemos lembrar sua primeira palavra quando feito Papa: “Buonasera!”. Palavra comum, de quem passa e se saúda com gentileza humana e com sorriso no rosto, como um sinal de aproximação imediata, de se fazer alguém palpável, que não necessitaria ser carregado nos ombros, nem vestir roupas caras, nem ter aneis de ouro. De pouca ou quase nenhuma ostentação, tão próximo de Sidarta Gautama, o Buda. 

Mais que líder de uma Igreja, foi presença viva entre os povos. Escolheu caminhar ao lado das pessoas empobrecidas, falar com simplicidade e viver a fé como diaconia cuidadora de toda Criação. E até quando se irritou foi engraçado e humano, demasiadamente humano.

Adotou, inspirado no outro Francisco, uma forma de viver alternativa: entre as crianças, com as pessoas comediantes, com quem rir e com mulheres, com as freiras. E, ao mesmo tempo, em contato com pessoas encarceradas, lavando e beijando os pés das pessoas marginalizadas e em situação de rua, sempre com o coração aberto. Bem próximo de Jesus e do coração sororio-fraterno de Maria. 

Foi voz firme diante das injustiças, denunciou sistemas de morte, defendeu a vida em todas as suas expressões. Andou com indígenas, com migrantes, com comunidades tradicionais, com quem sofre racismo religioso e exclusão. Gente que foi alvo da própria Igreja Romana. E como foi sublime ouvir de seus lábios, no tom de sua voz – em espanhol –, o seu pedido de perdão, pessoal e intransferível, como que seu próprio corpo estivesse sentindo as dores desse mundo. Como poesia, é comum trazer à lembrança suas palavras: “Orem por mim! Me perdoem!”. 

Foi um homem que errou e reconheceu seus erros. Foi homem que, assim como Dom Helder, se referia à Igreja Romana como “Igreja santa e pecadora. Santa porque é de Deus. Pecadora porque é feita de homens”. Sim, é bom lembrar a essência das palavras de  Dom Hélder, quando afirmava que a Igreja é santa porque nasceu do projeto de amor de Jesus, foi guiada pelo Espírito, e carrega em si a missão de anunciar o Reino de Deus com justiça e paz. Mas ao mesmo tempo é pecadora, porque é feita de gente — gente limitada, que muitas vezes se deixa seduzir pelo poder, pela riqueza, pela omissão diante das injustiças, negligenciando a própria vida de Jesus e as experiências das primeiras comunidades de fé. E, mais que isso, pratica crimes e pecados.

Vale ressaltar uma conversa que tive, dias atrás, com um apaixonado fiel católico romano, quando ele analisava os progressos, os limites e os desafios da “Igreja Cristã”, fazendo análise de conjuntura e apresentando quais seriam os cardeais capazes de substituir Francisco. Então, perguntei: “irmão, quando você se refere à Igreja – no singular –, você se refere a todas as vivências cristãs que compõem a Tradição e a História comum da nossa fé? Ou, apenas, coloca a Igreja Romana como a Única, a Santa, a Católica e a Apostólica?”.  

À parte todo poder da Igreja de Roma, é possível chegar à conclusão que Francisco não se fechou em muros doutrinários. Construiu pontes. Fez da fé um espaço de diálogo e não de imposição. Por isso foi ouvido, amado e seguido por tantas pessoas além das suas fronteiras institucionais. E assim, também se posicionou politicamente em tantos assuntos, dando firme exemplo em busca da transformação da mão capaz de matar em mão que se estende em busca de perdão, promovendo acolhida e paz. 

Ao mesmo tempo, como bom profeta, Francisco foi e continuará sendo – porque se tornou ancestral –, alvo de violências contra sua própria história, sua memória e sua prática, por ter sido capaz de incluir todas as pessoas, respeitar e cuidar de toda Criação e amar para além dos seus limites meramente humanos.  

Sua vida encarnou, das teologias populares e do Sul global, o jeito mais próximo das primeiras comunidades do seguimento de Jesus, pois se colocou como caminhante do mesmo Caminho de Jesus.

Francisco, Palavra vivida no chão das realidades, que anunciou esperança e denunciou opressão. Fez sua Páscoa, mas ressuscitou para além das paredes que queiram limitá-lo, controlar seu espírito livre. Tornou-se pastor da humanidade, irmão de todas as formas de vida, encarnado entre nós. 

Sua memória segue viva onde há gente lutando por dignidade, cuidando da Criação e buscando Justiça. Podemos então rezar, de maneira ecumênica: 

“Irmãs, irmãos, Francisco está aqui.

Seu espírito está conosco.

Elevemos os corações.

Com alegria os elevamos.

Demos graças a Deus.

Assim fazê-lo é digno e justo!”

Ou mesmo podemos dizer, em alto e bom som, como se diz nos ambientes de resistência:

“– Francisco!?

–  Presente, hoje e sempre!”

Por último, vi um meme que dizia: “Francisco foi tão cristão que os ateus lamentaram sua morte mais do que as pessoas que frequentam sua igreja e o perseguiram”. Então, reconheço que esse parágrafo foi colocado a propósito para provocar reflexão e risos. 

Que a Divindade Sagrada o bendiga e o faça presente em todos os lugares, em todas as memórias, e que todas as vivências cristãs o reconheçam como irmão, irmão próximo, companheiro e caminhante; que todas as vivências religiosas – se assim desejarem -, ao ter contato com sua história, ao longo do tempo, possam reconhecê-lo como irmão e fazer vênias, gasshō, namastê, atotô, saudá-lo com axé, Aguyjevete!

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