Claudio de Oliveira Ribeiro[1]
Magali do Nascimento Cunha[2]
Para início de conversa…
A diversidade religiosa ganhou intensidade e maior visibilidade nas últimas décadas, tanto no Brasil quanto em outros países. Para alguns, este panorama é visto de forma positiva, especialmente por ser uma oportunidade significativa de aproximação, cooperação e diálogo entre os diferentes grupos religiosos. Ele tem valor também no reforço da democracia, dentro da noção de valorização do pluralismo e da laicidade do Estado.
Porém, visto que ao lado desse quadro também ganharam forma e força os conflitos de variadas naturezas, alguns de expressiva violência, as iniciativas de diálogo precisam conviver com formas autoritárias, exclusivistas e fundamentalistas. E este é um grande desafio!
Todas as expressões religiosas e formas mais diversas e livres de espiritualidade formam um cenário complexo e de tons os mais diferenciados, ainda mais se forem acrescentadas as formas religiosas seculares e culturais, como as terapêuticas, de autoajuda, econômicas, midiáticas e de entretenimento.
Não podemos esquecer o número crescente de pessoas que se declaram sem religião – no Brasil estão atrás apenas dos grupos católicos e evangélicos. Este quadro carece de crítica social e teológica, construída ecumenicamente, que pode revelar limites e potencialidades das diferentes experiências. Uma tarefa sublime, neste sentido, é compreendê-las e estarmos abertos para o diálogo!
Gratuidade e compromisso
A espiritualidade ecumênica, tanto na dimensão intercristã quanto na inter-religiosa, mesmo vivida em diferentes modos e expressões, converge para os ideais marcados pelo despojamento. Ela requer formas pessoais e coletivas que nos levam a aprender com as pessoas pobres o significado mais profundo da entrega, da disposição em partilhar, da solidariedade e do amor sem limites, mesmo que vivam tais dimensões da fé com contradições e ambiguidades.
Estas indicações nos levam a perguntar: é possível vivermos uma espiritualidade ecumênica nos dias de hoje, concretizada no diálogo e na cooperação entre diferentes segmentos cristãos e entre grupos religosos? Como realizar tal feito em meio a tantas tentações individualistas, sectárias e consumistas?
Conforme sabemos, a cultura firmada no lucro a qualquer preço, na exploração e na coisificação do ser humano, no individualismo e na indiferença é oposta à fé cristã e ao espírito ecumênico. Não há como esconder isso.
Por outro lado, a fé é fruto do amor. Ela é expressão da graça de Deus. E em nossa cultura – capitalista, no caso – não há nada “de graça”…
A gratuidade, como a compreendemos, é uma grandeza autônoma, importante em si, que dispensa instrumentalizações, sejam religiosas sejam políticas. Nas palavras bíblicas, “já não sou mais eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2.20). Assim, é possível, acima de tudo, viver a gratuidade gratuitamente, como um “clima” que envolve toda a vivência humana.
Ainda na fé cristã, temos no Novo Testamento o Sermão da Montanha, que indica nas bem-aventuranças (Mateus 5.1-12) que a pureza de coração é especialmente esvaziamento dos dogmatismos e imposições.
A humildade, como expressão da espiritualidade, é estar radicalmente envolvido nos processos políticos libertadores, todavia com um sentimento de “servo inútil” e pecador. Trabalhar pela paz, por exemplo, é não fazer da luta o fim último, compreendendo-a apenas como meio provisório, sem construir uma mística da luta, e sim da justiça, da paz e da reconciliação.
Espiritualidade inter-religiosa e direitos humanos
A espiritualidade, como sabemos, requer capacidade de diálogo e profunda sensibilidade para a afirmação da vida e para a promoção da paz. As religiões e a espiritualidade se destinam à vida, ou seja, representam a contribuição para que pessoas e comunidades vivam, de forma melhor e mais justa, a realidade atual.
Ao mesmo tempo que a religião se torna causa de divisão e conflito entre povos de todas as partes do mundo, ela também abre caminhos ao diálogo e à promoção da justiça e da paz. O diálogo é uma incumbência das religiões e precisa ir além da partilha de opiniões e experiências e chegar ao desafio mútuo e à cooperação conjunta tendo vista a reconstrução que vise a uma nova humanidade e a sustentabilidade da terra.
Do ponto de vista prático, as religiões em geral – e as igrejas cristãs em particular – são desafiadas ao protesto contra todas as formas de discriminação e ao incentivo à reconciliação e ao sentido de comunidade no mundo. Elas devem igualmente contribuir para consensos públicos e debates regionais e nacionais que podem formar a base de uma comunidade maior de liberdade, igualdade, fraternidade, sororidade e justiça.
É fato que o vínculo entre religiões e direitos humanos na atualidade é bastante ambíguo e complexo. As interfaces entre religião e cultura, por exemplo, não podem ser desprezadas nas reflexões. Não basta meramente condenar as formas fundamentalistas, pois elas têm raízes mais vigorosas e na maioria das vezes com significado social profundo.
No caso de movimentos fundamentalistas contemporâneos no Islã, muitos têm sido vistos como reação defensiva aos impactos da cultura ocidental, percebida como destruidora de valores sociais e religiosos.
Algo similar pode se dizer sobre o conversionismo exacerbado de grupos cristãos que gera uma identidade rígida, mas forma um sentimento de pertença em um mundo de despersonificação e anomia. Talvez uma comunicação mais dialógica entre as religiões possa contribuir para que todas identifiquem suas próprias limitações e se voltem à promoção dos valores humanos e ao bem-estar de todos.
Por fim, o diálogo mística de afirmação da vida
Sabemos que na tradição da prática de diálogos entre as religiões há implicações expressas de partilha de vida, experiência de comunhão e conhecimento mútuo, dentro de um horizonte de humanização, de busca da justiça e da paz e de valorização e afirmação da vida, considerando as exigências concretas que tais dimensões possuem.
Para a realização dessa aproximação ecumênica, Faustino Teixeira, no livro que escreveu em conjunto com o pastor Zwinglio Dias intitulado Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte do possível (Santuário, 2008), indica cinco elementos norteadores do diálogo: consciência de humildade, abertura ao valor da alteridade, fidelidade à própria tradição, busca comum da verdade e espírito de compaixão.
É importante ressaltar que há várias formas de diálogo inter-religioso, mas, independentemente delas, a prática dialogal requer um espírito de abertura, hospitalidade e cuidado. E entre as formas de diálogo se destacam a cooperação religiosa em favor da paz, os intercâmbios teológicos e a partilha da experiência religiosa, especialmente no âmbito da devocionalidade e da oração.
Uma espiritualidade ecumênica que emerge dos desafios e das bases da fé cristã, assim como do pluralismo religioso, terá como valores a dimensão mística e a alteridade, e isso incidirá nos processos religiosos e sociais, favorecendo perspectivas utópicas, democráticas e doadoras de sentido.
Ressaltamos o diálogo ecumênico como mística de afirmação da vida, com as respectivas e concretas implicações no tocante à solidariedade, à comunhão, ao conhecimento mútuo e às iniciativas e projetos de humanização e de justiça social. Há muitos desafios pela frente!
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[1] Pastor metodista e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
[2] Leiga metodista, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião.



