Dedico esta reflexão à Uday Abu Mohsen que tinha um dia de idade quando foi assassinado por uma bomba israelense. Ecoa a dor e o grito de tantas vidas humanas ceifadas pela ação genocida do Estado de Israel orquestrada por seu primeiro-ministro. A morte não é um tema fácil principalmente em se tratando de violências, opressões e atentado às vidas indefesas.
Todas as culturas e sociedades lidam com a morte e estabelecem seus costumes e ritos. Nesta direção, a morte nos remete para as lembranças e memórias. A história de vida das pessoas em seu círculo familiar, comunitário e social tem as suas marcas e lembranças afetivas. Nas narrativas que giram em torno de Sara, Abraão, Rebeca e Isaque, Hagar e Ismael, a experiência da morte e finitude se faz enquanto memória. Nas profecias são demonstrados a luta contra os projetos que produzem a morte dos pobres. Na sabedoria, deparamos com a oração cotidiana a respeito da presença das deusas e dos deuses acalentando carinhosamente a vida. A morte implica na responsabilidade com as outras pessoas. A construção de um outro mundo e sociedade possível, nos convida e convoca para resgatar as experiências de morte onde a vida é valorada e ao mesmo tempo, a condenar toda forma de destruição da vida.
As narrativas de Gênesis 12-36, encontramos três cenas e o tema da morte muitas vezes escapa de nossas atenções: Gn 21 onde Hagar não quer ver a morte de seu filho Ismael; Gn 22 a reflexão sobre o sacrifício e a ordem divina: “Não toque no menino!” e Gn 23 Abraão adquire uma terra para sepultar Sara.
Em Gn 21 Hagar e o seu filho Ismael são expulsos para o deserto. Experienciam a dor e o drama de não ter perspectiva de vida. É a experiência da perda das garantias de vida. Retrata a experiência de muitas mães e suas crianças sem eira nem beira, sem nada; sem-terra, sem garantias, sem futuro. De acordo com o relato, caminham pelo deserto com um punhado de pão e uma vasilha de água. A mãe chora porque não quer ver o menino morrer. O grito, lamento e prece diante da morte que não é natural. A morte da criança é o resultado de uma sociedade injusta. Lamento e crítica profética. No entanto, a grande marca teológica desta narrativa é que Deus ouviu o choro do menino (Ismael significa “Deus ouviu”). A experiência de luta contra a morte injusta está no poço. Teologia do poço. Lugar sagrado que garante a vida e o enfrentamento aos sinais de morte. A reza de Hagar é a reza do Deus do poço, o Deus que dá água, o Deus que devolve a vida. Poço de Laai Roí conforme Gn 16,14: “Para a Vida (Vivente) que me vê”. É a escuta do clamor diante dos sinais de morte. O grito de Hagar e o choro de sua criança nos faz refletir sobre a morte de inocentes na faixa de Gaza.
Em Gn 22 nos deparamos com a reflexão profética contra os sacrifícios humanos. Nestes ambientes de pastores e clãs apresenta a divindade da casa na defesa da criança. A teologia sacrificial exige sangue das crianças e a teologia da casa proíbe que se faça violência às crianças. Por isso a palavra de ordem contra a violência dos sacrifícios humanos: “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal!” (22,12). A morte sacrificial é combatida neste texto, pois não se trata de morte natural, mas de um projeto religioso e dominador que atenta contra a vida.
A narrativa de Gênesis 23 descreve busca de Abraão por uma terra para sepultar Sara. É preciso o espaço de sepultamento e memorial. Macpela é a terra do sepultamento da matriarca. Também se tornou o lugar onde Abraão foi enterrado (Gn 25,9-10. Também foram sepultados: Rebeca, Isaque, Lia e Jacó (Gn 35,27-29; 49,29-32 e 50,12-14). É a terra da memória dos antepassados. A finitude na vida das matriarcas e dos patriarcas está enraizada no chão, pois o antepassado está presente na terra e na vida, caminhada dos viventes. A experiência dos clãs de pastores é do Deus da cova e do memorial. O lugar para enterrar Sara é importantíssimo. É o espaço da lembrança. A perspectiva da morte enquanto continuidade da vida. Morte na Bíblia está relacionada com o conceito de permanência. A vida dos antepassados que continua presente nos viventes.
Na tradição profética e sapiencial o grito de dor e de lamento do povo representa protesto pelas injustiças praticadas contra os pobres. No livro das Lamentações encontramos os registros do choro e da dor do povo que perderam suas terras, a dignidade, a alegria, o encontro, a família, o espaço sagrado e a fé. Passam fome, medo, desespero, enfrentam violências, angústias, opressões e exploração. A morte está em todo canto, porém na resistência do povo a violência, a morte cruel e as desumanidades não têm a última palavra. Saber morrer é uma sabedoria que só se compreende a partir da vida e da construção de vida bem-aventurada para todas as vidas.
Jesus e o seguimentos de suas discípulas e discípulos transmitiram muitas lembranças em cada página dos ensinamentos que as comunidades registraram nos Evangelhos. A prática de Jesus na defesa da vida
Neste dia 02 de novembro, celebremos a memória das pessoas queridas em nossas vidas e caminhada. Bênçãos de vida em nossas vidas. Protestemos contra as mortes provocadas pelos podres poderes e interesses exploratórios, racistas, genocidas e desumanos. Lembremos as muitas mortes, que foram vítimas da pandemia da Covid-19, dos descasos e de políticas negacionistas. Em defesa da vida e da memória celebremos a boa morte. Experiências das pessoas que nos ensinam a viver e enxergar a vida com outros olhares.
Neste dia 02 rezemos pelas vidas que estão sendo eliminadas pela insanidade, pelo racismo, pelo fascismo, pela opressão e desejo de poder. Lutemos em defesa da vida contra o Estado genocida de Israel e contra a desumanidade de quem acha normal matar, guerrear, bombardear. Em nome das Deusas e Deuses da vida chega de morte de inocentes. Chega de morte de palestinos em Gaza.
Rafael Silva
CEBI-AL