Fazendo ecoar o Dia Mundial da Justiça Social, partilhamos o capítulo III do livro PNV “Pessoas em situação de rua e a leitura popular da Bíblia”, escrito pela biblista popular Regina Nagy. Adquira o livro pelo link: https://cebi.org.br/produto/pessoas-em-situacao-de-rua-e-a-leitura-popular-da-biblia/
Iluminando a realidade com a Palavra libertadora
Diante desse contexto tão duro e excludente (das pessoas em situação de rua), como a Bíblia pode ajudar na superação dos desafios enfrentados na rua? O que ela fala sobre os pobres e as causas do empobrecimento?
Antes, é preciso ajustar os óculos…
3.1 Quem lê interpreta a partir do chão que pisa
Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é coautor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita. (Boff, 1999, p. 9).
Todos os dias, desde a hora em que acordamos até quando vamos dormir, precisamos fazer escolhas. E fazemos isso a partir da visão de mundo que temos, dos valores que assumimos e das condições de vida possíveis naquele momento.
Nosso olhar é influenciado pelas interações e contradições envolvendo nossa etnia, nosso gênero, nosso local de origem, nosso poder aquisitivo, religião, idade, situação pessoal e do país.
Não existe visão imparcial e global. E o olho que lê-interpreta as Sagradas Escrituras também lê-interpreta os acontecimentos da vida, a realidade.
Os mesmos critérios servem para quem escreveu a Bíblia. As mui- tas mãos que construíram os textos misturaram a Palavra de Deus com as visões de mundo que possuíam, o chão que pisavam. Há uma ligação estreita entre contexto e pretexto.
O mesmo mendigo, diferentes olhares
Então, o que se enxerga quando se vê alguém deitado na rua, pedindo esmola ou todo sujo e maltrapilho? Um coitado? Vagabundo? Oprimido?… A resposta vai depender do olho que vê, que em grande parte é moldado pelo chão que pisa.
E isso também inclui a pergunta de como essas pessoas em situação de rua se enxergam. Moralmente fracos? Doentes? Excluídos? Por exemplo, em um encontro em que meditamos Gn 4, Caim e Abel, a maioria identificou-se com Caim, por ser violento com o irmão. Alguns até citaram que a marca de Caim protegia gente como eles da violência, pois eram caminhantes errantes. Para alargar o assunto, conversamos sobre os grupos que esses personagens representam, sobre o poder que os opressores utilizam para calar seus oponentes, com muita violência ocorrendo no campo,
onde Abel foi assassinado, o que continua até hoje. Eles concordaram, deram exemplos… Viram que também poderiam ser o Abel da história.
O olho que vê o mendigo é o mesmo que lê a Bíblia. E vice-versa. Assim, um caminho para influenciar a forma como se vê a pessoa em situação de rua, ou qualquer outro excluído, é utilizar a Bíblia como ferramenta de libertação e inclusão.
3.2 Os pobres na Bíblia
Compartilhamos agora um brevíssimo resumo da presença dos pobres na Bíblia, que convido cada um a enriquecer com a própria pes- quisa, pois não se entende as Escrituras sem esse olhar.
Visão geral
No mundo antigo, havia muita gente na base da pirâmide social, trabalhando para sustentar a si e enriquecer alguns poucos, como o rei, sua corte, generais e altos sacerdotes.
As teologias ligadas à elite dominante apresentavam a pobreza como algo natural. Vemos isso no Egito, em Canaã e na região mesopotâmica. Talvez só a teologia do Êxodo destoe dessa visão, com a exigência de se viver a Aliança com Deus em uma sociedade igualitária. Nos demais lugares, o máximo que o pobre podia esperar era que o rico não tirasse vantagem de sua condição.
Na Mesopotâmia, temos o Código de Hamurabi, um dos mais anti- gos compêndios encontrados pela arqueologia contendo normas de conduta social (escrito aproximadamente em 1700 aEC): “A justiça deve prevalecer na terra, para destruir o mal e o perverso, para que o forte não oprima o fraco.” (ANET 164).
No Egito, a instrução de Merikare vai advertir o rei para não selecionar alguém para um cargo sendo parcial contra o pobre (ANET 415). Já Amenemope afirma que o rico não deve ser ganancioso pela propriedade de quem é pobre, devendo perdoar 2/3 de sua dívida (ANET 423).
Na Acádia, aconselha-se ao rico dar esmola ao pobre (ANET 426).
Esse pensamento parece ter sido comum no Oriente Antigo, influenciando inclusive a legislação bíblica. Mas, séculos depois, com as invasões de Alexandre, o Grande, pelos anos 330 aEC, essa visão vai sendo deixada de lado, já que a lógica opressora dos gregos, e posteriormente dos romanos, demonstrava pouca humanidade para com os pobres. Os deuses greco-romanos não davam aos necessitados nenhuma proteção especial, como ocorria no Oriente Antigo. Sendo assim, as políticas públicas eram as mínimas, mais por motivação política (manter as massas dominadas, com “pão e circo”) que por exigência ética ou religiosa. Ao pobre restava vender a si e sua família como escravos. Isso explica porque mais da metade da população do império romano era escravizada. É o difícil contexto que Jesus e as primeiras comunidades cristãs vão enfrentar.
Sentido bíblico do pobre
Os termos que se referem ao pobre e oprimido aparecem aproximadamente 500 vezes na Bíblia, como indigente, fraco, encurvado, injustiçado, perseguido. É o empobrecido, fruto de um processo sistemático de espoliação.
- Ani – 80 vezes, principalmente nos Salmos = encurvado,
- Êbyôn – 61 vezes, sobretudo nos Profetas = mendigo, carente de
- Dal – 48 vezes, particularmente em Provérbios e Jó = fraco, débil.
- Anaw – 25 vezes, quase sempre no plural = resto obediente e fiel a Deus.
- Nagash – 20 vezes = oprimir, pressionar, explorar (2Rs 23,35).
- Anah – 80 vezes = oprimir, dobrar, forçar (Dt 26,6; Is 58,3; 2Sm 13,13).
- Lahas – 24 vezes = oprimir, acossar (Ex 3,9; Jz 10,12; Am 6,14).
- Ashaq – 60 vezes = oprimir, extorquir, pobreza, injustiça, violên- cia (Ez 18,18; Pr 28,3; Jr 22,3).
- Daká – 25 vezes = quebrantar, triturar (Is 53,10; 57,15).
- Tok – 4 vezes = opressão, tirania (Pr 29,13; Sl 55,12).
- Dak – 6 vezes = oprimir, vexar (Sl 74,21).
- Yanah – 20 vezes = oprimir, dominar, explorar, despojar (Lv 25,13; Ez 22,7).
- Rasas – 19 vezes = pisar, esmagar (Is 36,6; Jó 20,19).
- Ptochós – 28 vezes =
Essa infinidade de palavras e situações nos mostram que os pobres e oprimidos estão no coração das Escrituras.
3.3 Aliança: defesa da vida
“Eu vi e ouvi a aflição do meu povo e desci para libertá-lo.” (Ex 3,7-8)
Deus revela-se no episódio do Êxodo como um Deus que tem com- paixão por seu povo, e não tolera a opressão. O processo de Páscoa, de passagem da morte para a vida – desde a saída do Egito até a Terra Prome- tida, passando pelo deserto, onde se firma a Aliança –, continua hoje.
O Texto-Base da CF-23 apresenta-nos algumas reflexões sobre o cuidar, pressuposto para viver a Aliança, com destaque para a prática de saciar a fome, a sede e a necessidade de abrigo do outro.
O maná, na caminhada pelo deserto, representa a preocupação de Deus em alimentar seu povo. Todos foram contemplados porque não houve acúmulo. Só conseguiam pegar o que podiam comer (Ex 16).
Privar de alimentos é como escravizar, permanecer no Egito. Viver a Aliança pressupõe que ninguém passe fome. Não é à toa que a Terra Pro- metida é o lugar onde “corre leite e mel” (Ex 33,3). Por isso, no período do tribalismo (1200 a 1000 aEC), não havia grande diferença entre riqueza e pobreza. Os grupos estruturavam-se em clãs – famílias ampliadas – em que os membros cuidavam uns dos outros.
Os Dez Mandamentos (Ex 20; Dt 5) e outras leis do Pentateuco fazem memória dessa prática. Podemos destacar Lv 19,18: “Ame a seu próximo como a si mesmo”. Esse texto será retomado por Jesus: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” Jesus respondeu: “Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo como a si mesmo. Toda a Lei e os Profetas dependem desses dois mandamentos.” (Mt 22,36-40).
Profetas, guardiões da Aliança
Com a imposição da monarquia, no século X aEC, quebra-se a Aliança, pois a estrutura da sociedade torna-se multiplicadora de famintos. Deixa-se de lado o projeto de Deus e volta-se ao projeto dos poderosos, que persistia no Egito e nas nações vizinhas. Em 1Sm 8, temos o direito do rei e de sua corte, de seu exército e generais, com o confisco de terras e cobrança de tributos. Contra essa elite opressora, levantam-se várias vozes proféticas:
Isaías: “Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem os únicos moradores da terra” (5,8). “Ai dos que promulgam leis iníquas, e daqueles que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e despojar os órfãos.” (10,1-2).
Jeremias: “Como uma gaiola cheia de pássaros, assim as suas casas estão cheias de rapina. Por isso, tornaram-se grandes e ricos, gor- dos e reluzentes. Eles não respeitam o direito dos órfãos, não julgam a causa dos indigentes.” (5,27).
Ezequiel: “Os seus chefes são como lobos que despedaçam a presa, derramando sangue e destruindo vidas a fim de obter lucro.” (22,27).
Amós: “Oprimem o fraco, hostilizam o justo, aceitam suborno, e repelem o indigente à porta.” (5,11-12).
Miquéias: “Se cobiçam campos, eles o roubam. Se casas, eles a tomam.” (2,2). “O príncipe exige, o juiz julga por suborno, o grande expressa sua ambição.” (7,2).
Apocalipse: tira o véu dos projetos de morte e nos revela que só Jesus Cristo é o Senhor da história; por isso devemos resistir, pois a vida prevalecerá.
Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram! (21,3-4).
A imagem da tenda lembra o tribalismo igualitário, processo de Pás- coa. Assim, o Apocalipse convida-nos a viver um novo Êxodo, viver a Aliança sem terceirização do sagrado, tendo Deus presente diretamente nas famílias, tal como era no tempo dos clãs e das tribos. A sociedade igualitária ressurge por meio de uma cidade redimida, a Jerusalém celeste.
As referências ao Apocalipse são constantes nas rodas de conversa na Casa de Oração. O lago de fogo e enxofre, que aparece nos capítulos finais do livro, povoa o imaginário de muitos, levando a discursos moralis- tas, recheados de medo e culpa. O que acontece depois da morte? Muitos já passaram por situações limite, e há temor do juízo final. A prestação de contas diante de Deus pode não ser favorável.
É importante acalmar seus temores, trazer à memória textos que demonstrem a misericórdia de Deus, nos Evangelhos, no próprio livro do Apocalipse, e em outras passagens, como a de 1Jo 4,17-18:
É nisso que se dá a perfeição do amor entre nós, para que tenhamos con- fiança no dia do julgamento, porque assim como Jesus é, também nós somos neste mundo. No amor não existe medo. Pelo contrário, o amor per- feito lança fora o medo, porque o medo supõe punição; e quem sente medo, ainda não se encontra perfeito no amor.
A prática do amor é a nossa esperança, amor que acontece nas cal- çadas e praças. Há muitos exemplos de solidariedade entre eles, apesar dos contratempos. Sim, o amor é trecheiro também!
Podemos encontrar muitos outros gritos proféticos na Bíblia, que tentam ecoar vozes silenciadas e abafadas, o desespero dos pobres e opri- midos. Essas vozes perpassam toda a Escritura, irrompem na história e nos interpelam a lutar hoje. Jesus é o grande profeta da denúncia e da espe- rança, exemplo de testemunho e martírio. E a Igreja nascente continua com coragem as palavras e ações do Mestre. A seguir, alguns posicionamentos de profetas dos séculos IV e V:
Basílio de Cesareia: “Ao esfaimado pertence o pão que tu guardas. Ao homem nu o manto que tens no armário. Ao descalço, o calçado que se estraga contigo. Aos miseráveis, o dinheiro que tens no cofre.”
Gregório de Nissa: “Os pobres são os ecônomos da nossa espe- rança, os guardiães do Reino que abrem a porta aos justos e a fecham diante do mau e do egoísta. Acusadores terríveis, advogados veementes, ainda que sempre em silêncio!” – “Talvez dês esmolas. Mas donde tiras essas esmolas, senão das cruéis rapinas, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros dos pobres? Se o pobre soubesse donde vem a tua oferta, ele a recusaria, porque creria morder a carne dos seus irmãos e sugar o sangue dos seus próximos. Ele te dirigiria estas palavras corajosas: ‘Não sacie a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão amassado com os soluços de meus companheiros de miséria’. Devolve ao teu semelhante aquilo que lhe tiraste injustamente e eu te serei reconhe- cido. O que adianta consolar um pobre se tu mesmo fazes cem?”
Jerônimo: “A glória do bispo é ajudar a necessidade dos pobres; e a ignorância de todo sacerdote é afanar-se por suas próprias riquezas.”
João Crisóstomo: “Que proveito resulta de a mesa de Cristo estar coberta de taças de ouro se ele morre de fome na pessoa dos pobres? Sacia primeiro o faminto, e depois adornarás o seu altar com o que sobrar.”
Ambrósio de Milão – compara a pobreza de seu povo com Nabot, o pobre, que é morto para que o rei Acab possa apoderar-se de sua vinha (1Rs 21,1-16). Denuncia a ostentação dos ricos: “O pobre grita e tu tens como única preocupação saber com que tipo de mármore vais revestir seus pavimentos. O pobre pede pão e teu cavalo tem na boca freios de ouro. Infeliz! Tens o poder de arrancar tantos à morte, mas não tens a vontade.”
Os textos e testemunhos dos Pais e Mães da Igreja são uma verda- deira análise de conjuntura. Vale a pena debruçar-se sobre esses escritos, que continuam a teologia libertadora das Escrituras.
A esse grupo podemos acrescentar também São Francisco de Assis, Dom Bartolomeu de Las Casas… e os profetas atuais: Santo Oscar Romero, Dom Hélder Câmara, Santo Dias da Silva, Dom Paulo Evaristo Arns, Margarida Maria Alves, Dom Pedro Casaldáliga, Irmã Dorothy, Pe. Júlio Lancelotti e tantos outros.
Prática da hospitalidade = viver a Aliança
Voltando ao Texto-Base da CF-23, vemos que saudar, lavar os pés, partilhar alimentos, oferecer local digno para pernoite… é como acolher o próprio Deus. Abraão acolhe a Deus na figura de três peregrinos e Sara deixa de ser estéril (Gn 18). A viúva de Sarepta acolhe Elias e ganha a vasilha de alimentos que nunca se esvazia (1Rs 17,8ss). Jesus acolhe os discípulos com ceia e lava-pés, ensinando o que devem fazer em memória dele (Mc 14; Mt 26; Lc 22; Jo 13).
As promessas de Deus são comparadas, muitas vezes, com a fartura de alimentos (Is 55,1-3). Temos seis relatos da alimentação da multi- dão nos Evangelhos: dois em Marcos (6,30-44; 8,1-9), dois em Mateus (14,13-21; 15,32-39), um em Lucas (9,10-17) e um em João (6,5-15).
Isso demonstra a importância para as primeiras comunidades de conse- guir alimentos e saciar a fome. Uma pobreza certamente imposta pelo império romano.
Se há Eucaristia não pode haver fome
A oração do Pai-Nosso apresenta a necessidade do pão de cada dia (Mt 6,9-13). O próprio Jesus apresenta-se como o Pão da Vida (Jo 6). O livro de Atos evidencia a prática da comunhão no partir do pão, não só nas celebrações, mas no cotidiano da vida (At 2,42-46; 11,27-30).
O relato eucarístico mais antigo está em 1Cor 11,17-34, que nos mostra que a verdadeira partilha do pão e do vinho, da carne e do sangue de Jesus, pressupõe o amor mútuo. Assim, celebrar a Eucaristia não nos torna uma comunidade de eleitos, mas de missionários-transformadores do mundo. Essa celebração reforça o destino universal dos bens, pois o Deus Criador fez tudo para todos.
3.4 “Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te veem” (Jó 42,5)
Um texto que particularmente nos ajuda a entender os conflitos teo- lógicos presentes nas nossas conversas na Casa de Oração é o livro de Jó. Ele fala da dor de quem perdeu tudo, inclusive o direito de acreditar que Deus caminha com ele. Será possível que o Todo-poderoso ame alguém e não lhe cubra de “vitórias”?
O livro de Jó é cheio de particularidades. Lembra teatro, com pal- cos no céu e na terra. Ao contrário do que se diz sobre o protagonista da história, ele não é nada resignado. É impaciente até com Deus! E como todo enredo de teatro, filme ou novela, a gente acaba se identificando com algum personagem, com esta ou aquela situação. Na América Latina, cer- tamente, Jó tem um rosto coletivo. Esse livro faz pensar!
O(s) autor(es) querem isso mesmo, fazer as pessoas repensarem quem é Deus e quem é o justo, o temente a Deus… Será que pode ser o mendigo que vemos deitado na praça? Os “amigos” de Jó vão dizer que não, mas a mensagem central do livro nos surpreende e diz que sim!
Contexto do livro
Há um consenso em afirmar que o livro de Jó tem sua origem na comunidade judaica do pós-exílio, entre os anos 500 e 330 aEC. A data mais aproximada seria 400 aEC, momento em que os judeus estão pas- sando por uma forte crise econômica e religiosa. Há um empobrecimento/ exploração do povo (Ne 5), que leva a comunidade dos pobres (anawim) a questionar a teologia tradicional. Essa situação é descrita em Malaquias, que mostra o ambiente do final do século V, a luta do justo e do ímpio, e a necessidade de discernimento para permanecer fiel a Javé:
Vocês usaram palavras duras contra mim – diz Javé. Vocês perguntam: “O que é que foi que falamos contra ti?”. Vocês disseram: “É inútil ser- vir a Deus. Que proveito a gente tira em guardar os mandamentos dele ou andar vestindo luto frente a Javé dos exércitos? Vamos, então, felicitar os soberbos; eles progridem praticando o mal, desafiam a Deus e não são castigados”. E assim comentavam os que temem a Javé: “Javé ouviu com atenção, diante dele um livro foi escrito para lembrar todas as coisas que são a favor dos que o temem e honram o seu nome.” “Esses” – diz Javé dos exércitos – “quando eu resolver agir, serão a minha propriedade particular. Terei compaixão deles como um pai tem compaixão do filho que lhe presta serviço. Então vocês hão de se converter e verão a diferença que existe entre o justo e o ímpio, entre um que serve a Deus, e outro que não lhe serve.” (Ml 3,13-18).
Essa situação de crise é utilizada ideologicamente pela elite para justificar seus interesses. Serve-se da imagem de Deus-juiz e da doutrina da retribuição para manter um sistema de dominação que se concretiza nos sacrifícios no templo, na observância da lei e na pureza da raça. Questionar essa imagem de Deus é colocar em questão a própria ordem e estabilidade do sistema, e, por consequência, questionar o sistema é negar e desobede- cer a vontade de Deus. Em sua vida pública, Jesus vai ter inúmeros embates com a elite judaica por causa disso.
A tese da retribuição serve de cimento ideológico. Justo é aquele que obedece às leis que asseguram a continuidade da sua própria opressão, de forma submissa, subserviente. Se você faz o bem, será recompensado com o bem. Deus retribui de acordo com o que você faz. Se há sofrimento e pobreza, isso é uma questão moral (pecado) e individual, decorrente da sua desobediência à lei (ou de algum parente, como vemos na passagem do cego de nascença, em João 9). Essa ideologia da meritocracia não quer deixar brechas para o povo questionar sua exploração. Tanto que perdura até hoje…
Autoria e enredo
A autoria do livro de Jó é desconhecida. Provavelmente ligada aos círculos sapienciais e proféticos de resistência que se levantam contra a teologia excludente imposta pela elite no segundo Templo.
O(s) autor(es) serve(m)-se de uma antiga história sobre um homem não-israelita chamado Jó, um símbolo do justo sofredor (1-2; 42). Jó é um personagem tão famoso que assumiu aspectos mitológicos no Oriente Antigo (em Ez 14,14.20, ele é colocado ao lado de Noé).
O tema do justo que é provado e sofre, apesar de inocente, é um tema comum, e extrapola o tempo. Temos escritos sobre isso já pelo ano 2000 aEC, no antigo Egito, e também na Mesopotâmia. Com as invasões das grandes potências no Oriente Médio, a partir de meados do primeiro milênio aEC, uma onda de pessimismo e resignação adentrou a cultura dos povos, gerando narrativas e releituras como as de Jó.
O(s) autor(es) do livro, a partir dessa história, compõem discursos que questionam a meritocracia e a doutrina da retribuição, criando uma obra-prima da literatura sapiencial.
O livro quer levar a descobrir Deus para além das teologias tradicionais, e revelar que Deus também está na figura do pobre, do sofredor, retrato da maioria do povo, cada vez mais explorado e em crise, principal- mente após o Exílio, onde todos os pilares da fé ficaram abalados.
I Moldura: a história de Jó – como tudo começou (capítulos 1 e 2)
Retrato de Jó (1,1-5)
Homem justo, por isso tem prosperidade: família numerosa e posses, gadol. É visto como um agraciado por Deus. É da terra de Hus, um lugar da região da Arábia (Lm 4,21), que no mundo antigo é próximo ao território de Edom (Gn 10,23; 22,21; 36,28; 1Cr 1,42). Talvez essa história tenha vindo dos edomitas.
Primeira série de provações (1,6-22)
Certo dia, os anjos se apresentaram a Javé e, entre eles, foi também Satã. Então Javé perguntou a Satã: “De onde você vem?”. Satã respondeu: “Fui dar uma volta pela terra”. Javé lhe disse: “Você reparou no meu servo Jó? Na terra não existe nenhum outro como ele: é um homem íntegro e reto, que teme a Deus e evita o mal”. Satã respondeu a Javé: “E é a troco de nada que Jó teme a Deus? Tu mesmo puseste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens. Abençoaste os trabalhos dele e seus rebanhos cobrem toda a região. Estende, porém, a mão e mexe no que ele possui. Garanto que ele te amaldiçoará na cara!”. Então Javé disse a Satã: “Pois bem! Faça o que você quiser com o que ele possui, mas não estenda a mão contra ele”. E Satã saiu da presença de Javé. (Jó 1,6-12).
Questão de fundo: existe religião gratuita? Só há fé se vier acompa- nhada de benefícios?
Satã é um anjo de Deus, um tipo de fiscal. É um provocador. Alguns estudos apontam a presença de Satã e de anjos como acréscimo tardio, tra- zido pela cultura persa – zoroastrismo, onde é comum esses seres celestes influenciarem os eventos na terra.
Segundo o texto, é Deus quem permite a desgraça, mas nota-se o início da transição de uma concepção de Deus todo poderoso, presente no Êxodo, para a ideia do diabo com poder para atormentar e persuadir os seres humanos, que terá seu ápice no livro do Apocalipse.
Então, de repente, Jó perde seus bois, mulas, ovelhas, camelos (pela ação de saqueadores e um raio que caiu do céu), a maioria de seus empregados é assassinada (1,15.17) e ocorre a morte dos filhos e filhas por causa de um furacão (1,18-19). Ele perdeu tudo! De luto, Jó responde: “Nu eu saí do ventre de minha mãe, e nu para ele voltarei. Javé me deu tudo e Javé tudo me tirou. Bendito seja o nome de Javé!” (1,21).
Jó é o perfeito adepto da teologia da retribuição (resignado diante da dor). Ele personifica todos os pobres que não se revoltam diante de Deus e da situação em que vivem.
Nas nossas rodas de conversa, na Casa de Oração, muitos parecem resignados assim. Nosso desafio é auxiliar na articulação e no desenvolvi- mento do senso crítico, de novos olhares.
Segunda série de provações (2,1-10)
Satã afirma que Jó continua fiel porque tem saúde (“enquanto Deus der saúde, a gente vai se virando”, diz o povo). Deus, então, permite que Satã lhe tire a saúde, mas deve deixá-lo vivo.
Satã feriu Jó com feridas graves, desde a planta do pé até a cabeça. Então Jó pegou um caco de telha para se coçar, sentado no meio da cinza. Sua mulher lhe disse: “E você ainda continua em sua integridade? Amaldiçoe a Deus e morra de uma vez!”. Jó respondeu: “Você está falando como louca! Se aceitamos de Deus os bens, não devemos também aceitar os males?” (Jó 2,7b-10).
A doença de Jó assemelha-se à lepra. Nesses casos, a lei previa o afastamento do convívio social (Lv 13,45-46). Jó é o retrato fiel da miséria humana: empobrecido, doente e marginalizado. Temos ainda o grito da esposa. Mas, apesar de tudo, Jó permanece obediente, passivo e resignado.
Chegada dos três amigos (2,11-13)
Nesse meio tempo, três amigos de Jó ficaram sabendo de todas as desgraças que o tinham atingido. Eram eles: Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat. Cada um partiu de sua terra e se encontraram para com- partilhar a dor de Jó e o consolar. Quando o viram de longe, não o reconheceram, e começaram a chorar. Rasgaram a roupa e jogaram pó sobre a
cabeça. Depois sentaram-se no chão ao lado dele, por sete dias e sete noites. Vendo o enorme sofrimento de Jó, não lhe disseram nenhuma palavra. (Jó 2,11-13).
Nesta primeira parte, os amigos solidarizam-se com a situação de Jó. São eles: Elifaz de Temã (Gn 36,11.15; Jr 49,7; Ez 25,13), Baldad de Suás (Gn 25,2-3) e Sofar de Naamat, cidades da região da Idumeia e de Edom, conhecidas como cidades da sabedoria (1Rs 5,10-11; 10,1-3; Pr 30,1; Jr 49,7; Ab 8; Br 3,22-23).
II A queixa de Jó na presença dos três “amigos” (3,1 a 31,40)
Desabafo de Jó (3,1-26)
Então Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento, dizendo: “Morra o dia em que nasci e a noite em que se disse: ‘Um menino foi concebido’.” (Jó 3,1-3).
“Os soluços são meu alimento, e meus gemidos transbordam como água. O que eu mais temia aconteceu para mim, e o que mais me apavorava me atingiu. Vivo sem paz, sem tranquilidade e sem descanso, em contínuo sobressalto.” (Jó 3,24-26).
Aqui o ensinamento sapiencial do(s) autor(es) tem início. Jó sai da fábula e torna-se alguém real, com um contexto de sofrimento tão comum à maioria do povo pobre. E quem sofre indigência certamente vive aos sobressaltos, com medo da violência de desconhecidos, da polícia, de outras pessoas na mesma situação, medo das enxurradas, do frio, de perder os documentos, de roubarem seus poucos pertences, medo do veneno nos marmitex doados, de ser queimado nos bancos da praça, medo da over- dose, das doenças, de estar enlouquecendo… E muitas vezes o álcool e as drogas vêm para anestesiar esses receios.
Jó não amaldiçoa a Deus, mas a si mesmo. Chega à conclusão de que a única saída para o sofrimento é a morte. Um dos objetivos da Casa de Oração é a prevenção de suicídios, por isso, nos nossos encontros, buscamos sempre trazer esperança e fé na mudança que eles tanto almejam.
Debates entre Jó e seus “amigos” (4-27)
Os “amigos” de Jó permaneceram calados até ele reclamar da sorte. Depois que ele grita e torna-se impaciente, acham que Jó não tinha ainda aprendido a lição que a situação impunha, segundo a doutrina da retribuição. Então, afirmam que ele deve aceitar e aguentar o sofrimento como lição e correção de Deus. Alguma coisa injusta ele fez para merecer aquilo.
Elifaz de Temã tomou a palavra e disse: “Não sei se você aguentaria se alguém falasse com você. Contudo, quem poderia permanecer calado? Veja! Você instruiu pessoas e fortaleceu braços enfraquecidos. Com suas palavras, você levantou quem vacilava, e sustentou joelhos que se dobra- vam. Pois bem! Hoje é a sua vez. Você não aguenta? Você se perturba hoje, quando tudo desaba sobre você? O temor de Deus não era a sua confiança, e a sua esperança não era um comportamento íntegro? Lembre-se bem: quando é que um inocente pereceu, e quando é que os homens retos foram destruídos? Pelo que eu sei, os que cultivam injustiça e semeiam miséria, são esses que as colhem. Deus sopra, e eles perecem; o sopro de sua ira os consome.” (Jó 4,1-9).
“E o homem gera seu próprio sofrimento, como as faíscas voam para cima. Em seu lugar, eu recorreria a Deus, e poria a minha causa nas mãos dele.” (Jó 5,8).
“Feliz o homem a quem Deus corrige. Portanto, não despreze a lição do Todo-poderoso.” (Jó 5,17).
Jó não aceita a explicação da teologia tradicional para o seu sofri- mento. Questiona a amizade dos amigos, que agora o veem como um impuro, fonte de desgraça e mau agouro.
A pessoa desesperada tem direito à solidariedade do amigo, mesmo que tivesse abandonado o temor do Todo-poderoso. Mas os meus irmãos me desiludiram como rios temporários, como ribeiros que desaparecem do seu leito. […] Assim são vocês. Tornaram-se um nada para mim, pois estão vendo algo terrível, e sentem medo. (Jó 6,14-15.21).
Vocês me expliquem, e eu ficarei em silêncio. Façam-me ver em que foi que errei. Como seria bom ouvir palavras justas! (Jó 6,24-25a).
Jó vê dificuldade em argumentar com Deus, mesmo tendo razão. À luz da profecia e da sabedoria, entoa um hino ao Deus criador, todo-pode- roso e inacessível (9,1-14). Lança questionamentos em todos os lados. Não acredita mais no que foi passado pela teologia tradicional. Enquanto os injustos prosperam, ele é penalizado. Onde está a justiça de Deus?
Recorrer à força? Ele é o mais forte! Recorrer ao tribunal? Quem o convo- cará? Mesmo que eu fosse inocente, sua boca me condenaria; mesmo que eu fosse inocente, ele me declararia culpado. Será que sou inocente? Já nem sei mais! Desprezo a vida. Garanto a vocês que tudo é a mesma coisa: ele extermina tanto o inocente como o injusto. Se uma catástrofe semeia morte repentina, ele zomba da desgraça do inocente. Ele entrega o país na mão do injusto e fecha os olhos de seus juízes: se não for ele, quem é que faz isso? (Jó 9,19-24).
Depois de todo esse debate, Jó resolve discutir diretamente com Deus, pois não acredita nas palavras de seus “amigos” (13,3). Quer des- mascará-los (13,7-10): “Vocês pretendem defender a Deus usando mentiras e injustiças?” (13,7).
Para Jó, o importante é manter a honra e a dignidade (sonho de todo aquele que é injustiçado e excluído, fio condutor de todo o livro), mesmo que isso lhe custe a vida: “Vou arriscar tudo, vou jogar com minha própria vida.” (13,14).
Em um segundo ciclo de debates, Jó é acusado de pretender ser mais sábio do que a tradição dos antepassados, de questionar a figura do temente a Deus, suas orações e toda a teologia tradicional.
Elifaz de Temã tomou a palavra e disse: “Por acaso um sábio responde com doutrinas falsas, ou se incha com o vento leste, argumentando com razões inconsistentes ou palavras sem sentido? Você está destruindo a religião e eliminando a oração! Suas culpas inspiram suas palavras, e você usa a lin- guagem dos astutos. Quem condena você é sua própria boca, e não eu; são suas palavras que testemunham contra você.” (Jó 15,1-6).
Jó ironiza os amigos, chamando-os de “consoladores inoportunos” (16,2). É fácil falar e acusar quando a dor é do outro. Ele não pode contar com os amigos nem com Deus. Pede à terra que não deixe sua história de injustiça ser esquecida. Jó não tem mais esperança (17,1-4).
Costurei um pano de saco, a fim de cobrir a minha pele, e mergulhei o meu rosto no pó. A minha face está vermelha de tanto chorar, e a sombra rodeia as minhas pálpebras, embora não haja violência em minhas mãos, e minha oração seja sincera. Terra, não cubra o meu sangue, nem o meu clamor seja abafado. (Jó 16,15-18).
Baldad sente-se provocado pela ousadia de Jó e retoma o dogma da retribuição para apresentar o destino do injusto: perda dos bens, da saúde e da descendência (18,1-21). Ou seja, se tudo isso ocorreu com Jó, então ele é injusto!
Jó não rejeita o que Baldad fala sobre o destino do injusto, mas não aceita que esse seja o seu caso. Ainda há nele a esperança de que sua honra seja resgatada. Seu grande desejo é o de experimentar Deus, porque até isso a teologia da época estava tirando dele:
Tenham piedade, meus amigos, tenham piedade de mim, porque a mão de Deus me feriu. Por que vocês me perseguem como Deus, e não se cansam de me torturar? Oxalá escrevessem estas minhas palavras e as gravassem numa placa, e com cinzel de ferro e estilete fossem escritas para sempre na rocha: “Eu sei que o meu redentor está vivo e que no fim se levantará acima do pó. Mesmo com a pele aos pedaços e em carne viva, eu verei a Deus.
Eu mesmo o verei, e não outro; eu o verei com os meus próprios olhos.” (Jó 19,21-27).
O terceiro ciclo de debates (22,1-27,33) diferencia-se dos diálogos anteriores, o que pode apontar para um acréscimo posterior.
Elifaz apresenta-se como o representante de Deus. Percebe que os critérios que utiliza para acusar Jó não o intimidam. Então, resolve mudar a tática: utiliza as leis do tribalismo para confrontá-lo, já que Jó usa esses critérios para se defender (22,1-11). Acusa-o de explorar os pobres.
Jó então insiste em querer falar pessoalmente com Deus e expor-lhe sua defesa, mas não vê jeito de encontrá-lo. Ao mesmo tempo, a decisão de Deus apavora Jó, que preferia esconder-se (23,1-17).
O(s) autor(es) apresenta(m), através de Jó, um retrato da explora- ção que o povo está vivendo. Onde está Deus, que não ouve o grito dos injustiçados?
Por que o Todo-poderoso não marca tempos de julgamento, para que os seus fiéis possam presenciar as suas intervenções? Os injustos mudam as fronteiras, roubam rebanhos e os levam a pastar. Apoderam-se do jumento que pertence ao órfão, e penhoram o boi que é da viúva. Empurram os indigentes para fora do caminho, e os pobres da terra têm que se esconder. Como asnos do deserto, saem para trabalhar: desde a madrugada vão em busca de alimentos, e até a tarde procuram o pão para seus filhos. Fazem colheita em campo alheio, e catam os restos na vinha do injusto. Passam a noite nus, sem roupa para se protegerem do frio. Ensopados com as chuvas das montanhas, sem abrigo, eles se apertam entre as rochas. Os injustos arrancam o órfão do peito materno, e penhoram a roupa do pobre. Estes andam nus por falta de roupa, e famintos carregam feixes. Espremem azeite no moinho e, sedentos, pisam a uva nos tanques. Na cidade os moribundos gemem, e os feridos pedem socorro. E Deus não faz caso da súplica deles. (Jó 22,1-11).
Esse é o retrato do indigente, do explorado. Dói muito perceber que essa condição continua hoje…
A visão de Jó começa a se alargar, saindo de sua experiência individual de miséria para perceber um contexto de empobrecimento coletivo. Sabe que o injusto explora o trabalhador indefeso, e que riqueza não é algo que nasce de geração espontânea, do nada. Ela é o acúmulo de vidas rou- badas em sua dignidade.
Acho que um dos pontos mais centrais do trabalho que o CEBI realiza é esse abrir os olhos para a conjuntura social. Sair do “eu” para o “nós”, um “nós” que explica melhor a situação de indigência que se vive e abre um panorama possível de retomada da vida, em mutirão. Sem isso é difícil conquistar a dignidade, a sobriedade, ser sujeito da própria história.
Baldad apresenta um contraste entre a grandeza de Deus e a pequenez do homem (25,1-6). Quem Jó/pobre pensa que é para ter uma audiência direta com Deus, sem passar pelas mediações oficiais de escribas e sacerdotes?
Mas Jó não se deixa ludibriar: “Longe de mim dar razões a vocês! Vou me declarar inocente até o meu último suspiro. Vou me agarrar à minha justiça, e não vou ceder. Minha consciência não reprova nenhum dos meus dias.” (27,5-6).
Sem argumentos, Sofar somente repete o destino trágico do injusto (24,18-24). Ignora o grito do pobre e a incoerência da teologia tradicional.
Jó questiona, mas ainda está preso à doutrina da retribuição (29,1-31,30)
Como toda pessoa que cai no infortúnio, Jó faz memória dos tempos em que se sentia abençoado por Deus (29,1-10). Quase todos os encontros que participo na Casa de Oração têm momentos de nostalgia. Alguns falam de quando tinham família, um lugar para ficar, emprego, carro…
Para Jó, a fonte dessa bênção de outrora é sua dedicação aos necessitados:
Todos os que ouviam, me elogiavam, e com os olhos me aprovavam, por- que eu libertava o pobre que pedia socorro e o órfão indefeso. Eu recebia a bênção do moribundo, e alegrava o coração da viúva. Eu vestia a justiça como túnica, e o direito era o meu manto e o meu turbante. Eu era os olhos do cego e os pés do coxo. Eu era o pai dos pobres, e me empenhava pela causa de um desconhecido. Eu quebrava o queixo do injusto e arrancava a presa dos seus dentes. Eu imaginava então: “Morrerei dentro do meu ninho, e como a fênix multiplicarei os meus dias. As minhas raízes chegarão até a água, e o orvalho pousará nos meus ramos.” (Jó 29,11-19).
Agora, porém, todos fogem dele, que passa a ser objeto de zombaria e desprezo, e essa perda de dignidade o incomoda. Esperava a luz, mas veio a escuridão (30,1-31).
Se fizermos um levantamento na Bíblia e na história, podemos ver que quem faz essa opção pelos pobres, primeiro, não fica tão rico assim; segundo, provavelmente será perseguido, torturado e até morto. Aconteceu com os profetas, com Jesus, com os mártires de ontem e de hoje. Então, por que não aconteceria com Jó? Lógico que a maneira como ele perde tudo é digna de novela. E o diabo, ao personificar as estruturas de morte, é utilizado ideologicamente para camuflar onde está de verdade a fonte do empobrecimento, que é o sistema tributário e excludente imposto pela elite judaica e pelo império estrangeiro.
Jó, então, prepara-se para o embate, com três protestos ou juramen- tos de integridade:
- Integridade pessoal (31,1-12): Jó é irrepreensível. Evitou a con- cupiscência, a mentira, a fraude, a avareza e o adultério.
- Integridade social (31,13-23): Jó afirma não ter violado o direito dos escravos, pobres, fracos e indefesos, como agrada a Javé.
- Integridade religiosa (31,24-40): não praticou a idolatria, inclu- sive quanto aos bens Foi hospitaleiro. Não descumpriu as leis sobre a terra.
Jó não tem mais nada a acrescentar. Sua fidelidade à Aliança é sua defesa.
III Intervenção de Eliú: o sofrimento legitimador da opressão (32,1 a 37,24)
Deus fala através do sofrimento (32-33)
Quem é Eliú? Não aparece em nenhum outro lugar do livro. Esses capítulos podem ser um acréscimo posterior, que muda o foco dos questionamentos. Em vez de: “por que há sofrimento?”, ele apresenta uma explicação: “para que soframos”. Talvez por ser um acréscimo, não há res- posta de Jó.
A situação de Jó, o justo que sofre, necessita de uma resposta nova, que os três “amigos”, representando a teologia tradicional, não conseguem dar. Com Eliú, esse problema não é resolvido, mas se tem uma consolação: a questão deixa de ser tanto moral e passa a ser pedagógica. Deus responde às perguntas de Jó de forma educativa (33,17-18). Segundo Eliú, o pro- blema é que as pessoas não entendem ou não aceitam o que Deus fala. Para ele, Deus sempre fala, através de sonhos, visões e também do sofrimento (33,14-22).
Deus é justo (34)
Depois de uma breve introdução, Eliú dirige-se aos amigos de Jó ou a um grupo de pessoas. Recorda os protestos de integridade que Jó fizera e refuta a ideia de que Deus é injusto. Retoma a doutrina da retribuição: “Deus paga ao homem conforme as suas obras e retribui a cada um con- forme a sua conduta.” (34,11).
Afirma que Deus é justo porque criou os seres humanos iguais (34,12-17), não usa de parcialidade em favor dos poderosos e ricos (34,18-22) e é soberano de todos e de tudo. Se poupa temporariamente os maus, é para conduzi-los ao arrependimento (34,30-33)… Será?
Deus não atende os orgulhosos (35)
Eliú tenta demonstrar que Deus não responde a Jó porque este se comporta com autossuficiência e orgulho. Não quer aprender a lição que Deus lhe concede.
O pobre, além de injustiçado, tem que ficar calado? Não pode gritar por justiça? Se ele não gritar, quem vai ouvir sua voz?
Justiça e grandeza de Deus (36-37)
Eliú volta a proclamar a justiça de Deus, que supera a compreensão humana e consiste principalmente em derrotar o injusto e salvar o pobre (36,1-25). Faz novo elogio ao sofrimento como meio educativo de Deus.
Lógico que a vida não é um mar de rosas, há desafios a serem supe- rados diariamente por todos, mas o fardo do pobre é maior. Então, vincular sofrimento com pedagogia divina é tirar da pessoa a possibilidade de denunciar a opressão, a falta de moradia, de saúde, de renda, a violência doméstica, o assédio moral e sexual no trabalho, nas igrejas…
Os discursos de Eliú terminam com uma grande contemplação de Deus como Senhor do universo (36,26-37,24), através das estações do ano. O poder divino que se manifesta na natureza para alimentar os homens é o mesmo que intervém na história para fazer justiça.
“Deus não oprime ninguém” (37,23). Essa afirmação de Eliú não dá conta de explicar a realidade. Então, de onde vem a opressão que esmaga os fracos e pobres?
IV Resposta de Deus e reação de Jó (38,1-42,6)
Primeiro desafio dado por Deus (38,1-39,30)
A última palavra de Jó foi um desafio: “Que o Todo-poderoso me responda” (31,35). Pois bem, depois dos debates, Deus mesmo intervém, mas em vez de trazer respostas, lança mais perguntas.
Então Javé, do meio da tempestade, respondeu a Jó e disse: “Quem é esse que escurece o meu projeto com palavras sem sentido? Se você é homem, esteja pronto: vou interrogá-lo, e você me responderá.” (Jó 38,1-3).
Deus é mistério que interpela, e quem deve procurar respostas é o próprio ser humano. Certamente não era isso que Jó esperava. Estava acos- tumado a uma relação com o sagrado onde tudo é previsível, ritualizado e didático. A religião abarcou todos os momentos da vida das pessoas com respostas, mesmo que sem sentido ou opressoras.
Deus desafia Jó ao mostrar que criou e organizou o universo sem precisar da ação humana. Relata diversas manifestações da natureza que demonstram seu poder, mistério e liberdade (38,4-39,30).
Interpelação de Deus e resposta de Jó (40,1-5)
Diante de tudo isso, Jó confessa sua ignorância sobre o mistério divino e percebe que precisa descobrir o seu lugar enquanto criatura ao lado de Deus. Se ele cuida de cada ser que criou, também cuidará dele e dos pobres e fracos.
Javé continuou falando a Jó, e perguntou: “O adversário vai querer discutir com o Todo-poderoso? Quem critica a Deus irá responder?”. Então Jó res- pondeu a Javé: “Eu me sinto arrasado. O que posso replicar? Vou tapar a boca com a mão. Falei uma vez e não insistirei; falei duas vezes, e não vou acrescentar mais nada.” (Jó 40,1-5).
Segundo desafio de Deus (40,6-41,26)
A tempestade, porém, continua, e o questionamento de Deus torna-se mais intenso.
Deus percebe a pretensão de Jó de querer ser igual a ele, senhor de sua própria vida, e questiona a Jó se ele é capaz de dominar o curso da história:
Se você é homem, esteja pronto: vou interrogá-lo, e você me responderá. Você se atreve a anular a minha justiça e condenar-me, para justificar a si mesmo? Você tem braço como o braço de Deus? Sua voz troveja como a voz de Deus? Então revista-se de majestade e grandeza, e cubra-se de esplendor e glória! Derrame o ardor de sua ira e, com um olhar só, rebaixe todos os orgulhosos. Humilhe com seu olhar o arrogante, e esmague os injustos onde quer que se encontrem. Enterre-os todos juntos no pó, e amarre-os todos juntos na prisão. Então também eu louvarei a você, porque conseguiu a vitória com sua própria mão direita. (Jó 40,7-14).
Podemos dizer que o centro de todo o livro está aqui. Os “amigos” acusavam Jó de falta moral ou violação da ética. Jó defende-se, afirmando sua própria justiça e inocência. Salva a si mesmo e condena a Deus.
A doutrina da retribuição cria esse impasse, pois as pessoas pensam ter o domínio do sagrado, e pedem contas a Deus quando “não faz a parte dele”.
Reconhecer que Deus é Deus e que o ser humano não é Deus é chegar ao temor de Javé, o princípio da sabedoria (Pr 1,7).
Jó descobre quem é Deus (42,1-6)
Então Jó respondeu a Javé: “Eu reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus projetos fica sem realização. Tu disseste: ‘Quem é esse que escurece os meus projetos com palavras sem sentido?’. Pois bem! Eu falei, sem entender, de maravilhas que superam a minha compreensão. Tu disseste:
‘Escute-me, porque vou falar. Vou interrogá-lo, e você me responderá’. Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te veem. Por isso, eu me retrato e me arrependo, sobre o pó e a cinza’.” (Jó 42,1-6).
Despido da teologia da retribuição, Jó finalmente encontra Deus. A confissão final de Jó é o ponto de chegada de todo o livro, transformando a vida do pobre em lugar da manifestação e experiência de Deus. Podemos dizer que o livro de Jó nos apresenta o pobre como o mais capacitado para anunciar a presença e a ação de Deus dentro da história.
Ser cumpridor de preceitos ou normas não é garantia para a prospe- ridade. Inclusive, Jesus vem quebrar essa ideia de que a bênção/salvação está vinculada a posses, família e prestígio. Deus está mais presente junto ao pobre e ao sofredor, pois é libertador e mantenedor da vida. Quer que todos seus filhos e filhas tenham vida em abundância. Para isso, se encarna e vive como pobre, anda em seu meio, anuncia que o Reino de Deus é para eles e morre como um deles.
Ao contrário do que a doutrina da retribuição afirma, aquele que é justo (= pratica a justiça) é perseguido e, por vezes, morto, porque inco- moda os projetos dos poderosos ou não resiste à sua opressão.
Aqui, o sábio reveste-se das marcas da profecia. Agora é possível conhecer o Deus vivo.
A teologia ligada ao povo pobre não se calou. Resistiu nos gritos de Jó. Resiste até hoje. E Deus, como no Êxodo, ouve seus gritos (Ex 3,7-10).
A libertação virá quando tivermos coragem para conquistar nossa Terra Prometida, quando tivermos um sonho coletivo e solidário que nos leve a superar a opressão e viver um novo Êxodo.
V Moldura – a história de Jó: final feliz (?) – 42,7-17
Há uma retomada da história folclórica do início (capítulos 1 e 2). Talvez faça parte da história original, como acontece nas novelas tradicionais, com o clássico “e viveram felizes para sempre”. O justo Jó é duplamente recompensado por sua fidelidade e paciência, mas, provavelmente, esse acréscimo tenha sido inserido mais tarde, com o propósito de enquadrar o texto na teologia tradicional, no dogma da retribuição, tentando tirar sua força profética.
3.5 “Vendo as multidões, Jesus teve compaixão” (Mt 9,36)
Jesus veste-se de Jó e arma sua tenda em um local e época deter- minados, o contexto da Palestina do século I da EC. A situação dos pobres nesse período é ainda mais dramática do que era no tempo do livro de Jó.
Vejamos um pouco desse contexto, para entender melhor porque as palavras e ações de Jesus foram Boa Notícia para aquela gente, e como ele nos ensina a viver a Aliança hoje.
A riqueza estava nas mãos de poucas pessoas (proprietários de ter- ras, saduceus, grandes comerciantes). A maioria do povo era mão de obra barata, em um tempo de crise e desemprego, com altos impostos cobrados tanto pelos romanos quanto pela aristocracia local e religiosa.
Em Nazaré, Jesus morava no campo; era carpinteiro e pagava impostos (Mc 12,13-17). Conhecia perfeitamente a situação econômica de seu povo (Mt 18,23-34; 13,54-55). A parábola dos trabalhadores da vinha elucida bem a situação difícil dos diaristas (Mt 20,1-16).
Toda a atividade comercial era controlada por um sistema de impos- tos, centralizado no templo de Jerusalém, que proporcionava à elite judaica e ao império romano o monopólio da circulação das mercadorias, com grandiosas arrecadações. Esses tributos eram cobrados pelos publicanos, cuja profissão tornara-se sinônimo de roubo e corrupção. No templo havia também um intenso comércio, que buscava atender às necessidades dos peregrinos (animais para sacrifícios, ofertas e lembrancinhas), além da administração do tesouro do Estado.
Temos nessa época alguns grupos religiosos e políticos: herodianos, saduceus, escribas/doutores da lei, fariseus, zelotes, essênios, batistas… Mas poucos pareciam se importar com a vida dos pobres:
Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doença e enfermi- dade. Vendo as multidões, Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor. (Mt 9,35-36).
O poder político está centralizado nas mãos dos romanos: a Judeia e a Samaria têm um procurador romano. A Galileia tem um rei, Herodes, amigo do imperador romano.
Nas aldeias, os problemas eram resolvidos por um conselho de anciãos. Nas cidades, os anciãos do conselho eram grandes fazendeiros e comerciantes ricos. Participavam também escribas e sacerdotes.
O centro do poder político interno da Judeia e da Samaria era a cidade de Jerusalém e o templo. Com efeito, é de lá que o sumo sacerdote governa (podendo ser destituído pelo procurador romano), assessorado por um conselho de 71 homens, chamado sinédrio: altos sacerdotes, anciãos, chefes de famílias importantes (grandes proprietários de terras e grandes comerciantes) e os escribas, membros da pequena burguesia ou da classe média. O sinédrio funcionava como tribunal criminal, político e religioso, não só em relação à Judeia, mas sobre toda a Palestina.
A hierarquia social e religiosa pode ser entendida a partir da estrutura do templo de Jerusalém. A pessoa mais santa, segundo as leis de pureza, é o sumo sacerdote, que pode entrar no Santo dos Santos, morada de Deus. Depois, temos o alto e o baixo clero, responsável pelos sacrifícios e demais serviços no templo. Há o pátio dos homens; mais longe, o das mulheres; mais longe ainda, o dos pagãos/gentios. Quanto mais longe do Santo dos Santos, menos relevância social a pessoa tinha. Jerusalém era o centro do mundo, depois vinha em importância o restante da Palestina. E, por fim, as outras nações.
Jesus caminha com os pobres, mendigos, pessoas em situação de rua
Toda a vida de Jesus se dá no meio dos excluídos: mulheres, crianças, doentes, escravos, trabalhadores, estrangeiros, samaritanos… E sua dedicação a esses empobrecidos é total (Mc 6,31). O Segundo Testamento utiliza 321 vezes as palavras “povo” e “multidão”, mostrando o quanto Jesus se identifica com os marginalizados – grande maioria em qualquer sociedade até os dias de hoje.
Esse tema é central no programa de trabalho de Jesus:
Jesus voltou para a Galileia com a força do Espírito, e sua fama se espa- lhou por toda a região. Ele ensinava nas sinagogas deles, e era elogiado por todos. Jesus foi para Nazaré, onde tinha sido criado. No sábado entrou na sinagoga, como era seu costume, e se levantou para fazer a lei- tura. Foi-lhe dado o livro do profeta Isaías. Abrindo o rolo, ele encontrou o lugar onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa Notícia aos pobres. Enviou-me para anunciar a libertação aos presos e a recuperação da vista aos cegos, para dar liberdade aos oprimidos, e para anunciar o ano da graça do Senhor”. Depois fechou o livro, o entregou ao ajudante, e sentou-se. E todos os olhos na sinagoga estavam fixos nele. Jesus então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura que vocês acabaram de ouvir.” (Lc 4,14-21).
O anúncio do Reino feito por Jesus mostra claramente que o tipo de relacionamento que tivermos com os pobres será decisivo na hora do julgamento final (Mt 25,31-46). Também as bem-aventuranças consagram os marginalizados (Mt 5,1-12; Lc 6,20-23).
Anúncio às crianças e às mulheres
Uma das atitudes mais proféticas de Jesus é sua total rejeição às práticas de discriminação. Possui uma grande independência em relação aos preconceitos e tabus da época. É aberto, compreensivo, acolhedor…
Assim, Jesus dá um lugar de destaque às crianças (Mc 10,4). Elas são consideradas incapazes pela sociedade da Palestina, mas em Jesus são vistas não só com dignidade, mas como modelo para se entrar no Reino (Mc 10,13-16).
Como a criança, a mulher não participava das decisões. Era consi- derada inferior ao homem. Normalmente ficava em casa, e só aparecia em público com o rosto coberto. No templo, ficava no pátio mais distante. Não podia ler no culto e estudar as Escrituras.
Jesus quebra esses preceitos. Os episódios com Marta e Maria (Lc 10,38-42) e com a samaritana (Jo 4) ilustram bem a visão igualitária de Jesus ao enxergar as pessoas.
A trajetória de Jesus com as mulheres foi muito intensa e avançada, apesar das limitações culturais da época. Por isso elas são presença importante nas primeiras comunidades cristãs.
Anúncio aos pecadores
Na época de Jesus, eram considerados pecadores os pagãos/gentios e o povo em geral, principalmente os analfabetos, camponeses, doentes e os mendigos das cidades (Jo 7,49). Também eram discriminados, por sua profissão, agiotas, pastores de ovelhas, pescadores, publicanos, tecelões, soldadores, curtidores de peles, médicos, armadores de navios, carreteiros, cameleiros, açougueiros entre outros.
Havia mais de 600 leis de pureza que os fariseus haviam acumulado para tentar colocar sob a vontade de Deus todas as situações da vida. Isso fazia da Lei um jugo que “nem nós nem os nossos pais podemos suportar”
(At 15,10).
A Lei, que nas origens de Israel significou a Aliança com Deus, sinal de reconforto e alegria (Sl 9,8-11; 118,92), que fazia com que a nação se sentisse povo de Deus (Dt 7,6), tornara-se sinônimo de angústia, e as pes- soas viviam atormentadas pelo medo de violá-la. Ela perdeu seu caráter profético e tornou-se opressora.
Jesus denuncia essa descaracterização da Lei. Quer revelá-la em seus pontos mais centrais, que é a prática do amor. Por isso ele tem um contato direto e constante com os pecadores (Mt 9,3; Mc 2,17; Lc 5,3…). Esses marginalizados da sociedade dos “puros” são mais abertos a Deus. Sinal desse apreço são as refeições com eles: Jesus faz Aliança, demonstra que são filhos de Deus e membros do povo eleito (Lc 19,9); chama, perdoa, liberta, caminha junto…
Jesus supera as prescrições de puro e impuro, escancara a hipocrisia de fariseus e doutores da lei, pois se perdem em pequenas coisas e não vivem o que é realmente importante: “coam um mosquito e engolem um camelo” (Mt 23,24).
Essas leis colocam um fardo pesado sobre o povo, fazendo com que se sinta distante da salvação, já que não consegue cumpri-las. Por isso os sacrifícios no templo e os dízimos, que levam a casta sacerdotal ao enri- quecimento. Realmente não interessava aos chefes religiosos acabar com a sensação constante de pecado em que o povo vivia.
Contrariando essa imagem do sagrado, Jesus revela Deus como ABBA, pai amoroso (Lc 15,11-32) e exalta os excluídos como herdeiros privilegiados do Reino (Lc 6,20). Essa inédita concepção de Deus torna todos irmãos, em uma sociedade de iguais em dignidade, destruindo a ideia do Deus legalista e legitimador da opressão e da exclusão, retomando a experiência do Deus da Vida, que caminha com seu povo, sustentando-o e libertando-o (Ex 3,7-10).
O anúncio do Reino (Mt 5-7) é seguido por ações concretas: Jesus acolhe leprosos (Mt 8,1-4), estrangeiros (Mt 8,5-13), mulheres (Mt 8,14-15), doentes (Mt 8,16-17), endemoninhados (Mt 8,28-34), para- líticos (Mt 9,1-8), publicanos (Mt 9,9-13), pessoas impuras (Mt 9,20-22)… Ele rompe com aquilo que excluía e dividia as pessoas: o medo e a falta de fé (Mt 8,23-27), escondidas nas leis de pureza (Mt 9,14-17). Demonstra que o Pai tem um amor universal por seus filhos. Essa também é a missão das comunidades cristãs.
Para Jesus, a misericórdia e a solidariedade são mais importantes do que as leis de pureza. O amor vale mais para Deus do que qualquer rito. O sentido da missão de Jesus é viver a justiça do Reino junto com a misericórdia. Quer reunir e salvar aqueles que a sociedade hipócrita rejeita como maus.
A elite judaica vai dizer que os pobres atrapalham a chegada do Reino porque são analfabetos e não seguem as leis de pureza; Jesus, ao contrário, exorta que eles são os preferidos de Deus, que o Reino é para eles (Lc 6). Ele identifica-se tanto com os pobres, que afirma: “Todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que fizeram.” (Mt 25,40).
Anúncio aos doentes
Os judeus, no tempo de Jesus, tinham a concepção de que a doença era um castigo por uma ofensa cometida, ou pelo doente ou por seus ante- passados (Jo 9,1-3). Nos evangelhos, essa temática é muito presente: o enfermo será liberto de sua doença quando seus pecados forem perdoados (Mc 2,1-12).
Como os estudos médicos eram precários, muitas enfermidades eram tidas como causadas pelo demônio (Mt 12,44; Lc 4,39; 13,11-16; Mc 5,1-43; 9,14.17…). Outro exemplo são os leprosos, brutalmente mar- ginalizados. Essa doença abarcava vários tipos de problemas de pele, e até as paredes ficavam doentes (mofo), conforme Lv 13-14. Jesus valo- riza-os em sua dignidade e reintegra-os à vida social (Mt 8,1-4; Mc 1,40-45; Lc 5,12-16).
Jesus operou curas e milagres. Também seus discípulos vão realizar tais prodígios (Mc 6,7-13). São atitudes que demonstram a chegada dos tempos messiânicos (Mc 1,11). Jesus é a ação de Deus, que liberta inte- gralmente o ser humano: da doença, da morte, da tristeza, da opressão. São sinais de vida que fazem o Reino já presente entre nós (Lc 17,21).
E como se dá o anúncio do Reino aos ricos?
Aos ricos, Jesus provoca: “Vai, vende seus bens, dá aos pobres, vem e segue-me”. Diante dessa provocação, há duas práticas: a do jovem rico e a de Zaqueu. O primeiro (Mc 10,17-27) fica triste, pois é muito rico. Apesar de seguir os mandamentos, ele não aceita viver a radicalidade do Reino, não aprende a viver em comunidade através da justiça e da partilha. Zaqueu (Lc 19,1-10), ao contrário, fica contente: converte-se no momento em que faz justiça – e por isso é salvo. Mas os discípulos não entendem a exigência de Jesus, de viver a partir do ideal comunitário (afinal, o jovem vivia os mandamentos!).
Jesus coloca em primeiro lugar a vida. Relativiza a Lei. O que salva é o tanto de amor que realizamos e não o cumprimento mecânico de normas.
Anúncio aos discípulos: “Vem e segue-me”
Jesus ensina fazendo junto. Não chamou para o seu seguimento representantes da teologia e do sacerdócio oficial. Chamou pescadores, um publicano, um zelote, isto é, gente simples. Também os pagãos/gentios são incluídos na nova concepção de Povo de Deus (Mc 7,26; 15,39; Lc 7,1-10; Mt 8,5-13).
A missão dos discípulos, conforme Mt 10,1-25, começa com o tra- balho em equipe. Não devem ter ganância por lucro, em um total abandono à providência divina, com uma vida profundamente sóbria. Afinal, não se pode servir a Deus e ao dinheiro (Lc 16,13). A forma como se enriquece é fonte do pecado. É injusta, como nos lembra o livro do Eclesiástico:
Muitos pecam por amor ao lucro, e quem busca ficar rico se faz de cego. Da mesma forma que entre as junções das pedras se finca a estaca, também entre a compra e a venda se infiltra o pecado. (Eclo 27,1-2).
Do Gênesis ao Apocalipse, a Bíblia coloca o cuidado com os mais necessitados como medida para saber se a Aliança com Deus está sendo cumprida. Se há pobreza extrema, estamos deixando de lado a Lei e os Profetas; estamos falhando enquanto seguidores de Jesus, enquanto anun- ciadores da Boa Nova do Reino.
Com essa inspiração, com esse arder o coração trazido pela Palavra libertadora, já caminhamos para o tema da ação.