Sermão de Stan Dotson, IBEM, 16 de novembro de 2025
Gênesis 4:1-17; Lucas 21:5-19
Às vezes lemos a Bíblia e não há dúvida de que estamos diante de um texto muito misterioso e estranho, pois tentamos decifrar passagens escritas há milhares de anos em um canto remoto do mundo. Mas, em outras ocasiões, lemos a palavra de Deus e parece que estamos lendo as notícias de hoje, em nosso próprio contexto. Assim acontece com o ensinamento de Jesus nesta passagem de Lucas. Ouçam novamente:
“Se levantará nação contra nação… Haverá desastres naturais… fome… pandemias… Acontecimentos terríveis.”
Parece familiar?
Este ensinamento se insere no contexto de um grande debate, uma diferença de perspectiva sobre o centro de poder daquele mundo: o Templo de Jerusalém. Enquanto Jesus e os discípulos estavam perto do Templo, alguns deles tomaram partido nesse antigo debate, admirando-se com a grandeza e magnificência da estrutura. “Vejam que pedras magníficas!”, exclamaram. Jesus, porém, adotou a posição contrária e refutou seu assombro: “Quanto ao que vocês estão vendo, chegará o momento em que tudo desabará. Não ficará pedra sobre pedra.”
Essa diferença de perspectiva não era nova; atravessa toda a história de Israel. De um lado, os defensores do Templo e de seu sistema. Nada menos que onze capítulos inteiros da Bíblia são dedicados às instruções sobre como construir, mobiliar e ornamentar o Templo, que seus arquitetos consideravam a morada de Deus. Por outro lado, nos livros proféticos, encontramos muitos trechos dedicados à destruição do próprio Templo, por causa do abuso de poder e de seu papel central na injustiça sofrida pelo povo. Jeremias, Ezequiel e Isaías escreveram extensamente sobre sua queda.
Essa diferença de perspectivas fazia parte de um debate ainda mais antigo, um conflito ancestral que, segundo a Bíblia, remonta às origens da humanidade, à primeira família, aos primeiros irmãos: Caim e Abel. A maioria conhece a história do primeiro assassinato. E muitos continuam intrigados com o motivo: Deus aceitou e abençoou a oferta do pastor Abel, mas rejeitou a oferta do agricultor Caim. Por quê?
Alguns rabinos e estudiosos bíblicos entendem hoje que não se trata apenas da história de uma família, do primeiro conflito entre irmãos. Agora se compreende que Caim e Abel representam dois grupos de seres humanos, e o conflito ilustra uma disputa entre eles, iniciada há cerca de 10 mil anos, quando a humanidade começou a abandonar a caça e a coleta para se fixar, desenvolvendo primeiro a agricultura e, posteriormente, cidades, estados, países e impérios.
Caim, segundo a Bíblia, foi o pai das cidades, da civilização. Abel, por sua vez, descende de uma longa tradição de pastores nômades. Duas formas de vida que sempre estiveram em profundo conflito. Assim, parte da intenção dos autores bíblicos ao narrar essa história era ilustrar esse conflito e mostrar de que lado Deus estava. Ao afirmar que Deus aceitou a oferta de Abel e rejeitou a de Caim, os narradores expressavam que Deus abençoava e aprovava a vida pastoril — e não via com bons olhos o surgimento das cidades e da civilização.
Os antropólogos nos dizem que, à medida que esse conflito evoluiu, o povo de Caim tomou a dianteira. Com o desenvolvimento da tecnologia da civilização, eles tinham melhores armas e começaram a matar grupos de pastores sempre que o uso da terra pelos nômades interferia no desenvolvimento urbano. O conflito continuou, e os descendentes de Caim saíram vitoriosos, tornando-se o paradigma dominante do que significa ser humano. Afinal, somos civilizados, não é verdade? Não duraríamos muito vivendo como Abel, na vida nômade, conduzindo rebanhos em busca de águas tranquilas e pastos verdejantes. Acostumamo-nos às comodidades da vida civilizada: sua tecnologia, engenharia e arquitetura.
E, à medida que os descendentes de Caim construíam cidades e civilizações pelo mundo, onde quer que fossem, tentavam desfazer a mensagem do relato do Gênesis — a história de Deus abençoando o modo de vida oposto ao deles. Para combater essa narrativa, cada civilização, ao construir suas cidades, erguia no centro um templo magnífico, como ápice e coroamento de seu desenvolvimento, para demonstrar ao mundo que Deus os abençoava, que respaldava seu projeto e habitava entre eles.
Podemos encontrar exemplos disso em todo o mundo: o Grande Templo de Ramsés II, no Egito; o Templo do Céu, em Pequim; a Acrópole de Atenas; a Basílica de São Pedro, em Roma; o Pavilhão Dourado, em Quioto; o Templo Maia de Chichén Itzá, no México. Todas as estruturas majestosas!
Mas, como nos conta o relato do Gênesis, embora a história de Caim domine a história humana, embora a civilização tenha se tornado o paradigma central do que constitui uma boa vida, a voz de Abel não pôde ser silenciada. A voz dos antigos pastores clama da terra repetidas vezes — especialmente na voz dos profetas.
Por quê? Por que os profetas favorecem sistematicamente essa forma de vida simples e nômade? Porque as civilizações não apenas projetam e constroem templos e edifícios, mas também constroem nossas mentes, nossas formas de pensar. E a civilização sempre carrega consigo um conjunto de valores opressivos que chocam com os valores mais humanos da antiga tradição, a vida pastoril. Não é coincidência nem surpresa que os grandes impérios dos séculos XVIII e XIX chamassem sua conquista de povos indígenas e seu genocídio cultural de “Leis da Civilização” ou “Missões Civilizatórias”.
A vida pastoril — assim como a de muitas comunidades indígenas — tinha como valores fundamentais o cuidado, especialmente com os mais vulneráveis; o compartilhamento; a confiança; e a acolhida. Já a arquitetura psicológica das civilizações constrói outros valores essenciais: o medo no lugar da confiança, o controle no lugar do cuidado, o acúmulo no lugar do compartilhamento, a suspeita no lugar da acolhida. O valor fundamental da cidade é a ordem social; o dos nômades é a liberdade.
Então, se você contasse uma história em que uma comunidade oferece a Deus sua forma de vida baseada no medo e no controle, e outra lhe oferece sua vida baseada na confiança e no cuidado — qual das duas ofertas você acha que Deus abençoaria? Se uma oferece um sistema de acúmulo e outra um sistema de compartilhar, qual você acha que Deus aceitaria?
Assim, enquanto as elites de Israel, ao longo da história, se dedicavam a construir a civilização, impondo seus valores de medo e controle ao povo, não deveria nos surpreender ouvir a voz de Abel na boca dos profetas. Isaías 32 traz um bom exemplo da voz do pastor. Escutem suas palavras:
“A cidade ruidosa será deserta; se transformará em pasto para os rebanhos, até que o Espírito seja derramado sobre nós do alto… A justiça do Senhor habitará no deserto, e sua retidão morará no campo fértil; o fruto dessa justiça será a paz… Ainda que a cidade seja completamente destruída, quão felizes serão vocês, que semeiam junto a cada ribeiro e deixam seu gado pastar livremente!”
Essas palavras não se aplicam apenas ao Templo de Jerusalém. Cada templo, cada cidade, cada civilização tem seu auge e sua queda, sua construção e sua desconstrução. Todo projeto humano começa com sonhos utópicos de grandeza e, inevitavelmente, termina em uma distopia, com a construção ruindo.
Assim aconteceu com todos os impérios da história: Egito, Babilônia, Pérsia, Roma. Na era moderna, o Terceiro Reich durou apenas 12 anos. O franquismo na Espanha surgiu e caiu em 36 anos. Outros têm vida mais longa. Muitos observadores afirmam que o experimento imperial da democracia capitalista nos Estados Unidos está à beira do colapso, ao aproximar-se de seu 250º aniversário.
Mas não creio que Jesus estivesse falando das estruturas políticas mundiais. Ele se dirigia às comunidades de fé, às comunidades religiosas sempre tentadas a sustentar os impérios com uma fachada de fé — uma estrutura espiritual que legitima projetos civilizatórios como divinamente inspirados. O Templo cumpria exatamente essa função.
Jesus reconheceu que o Templo não era apenas uma estrutura material. Ele existia na mente e no coração das pessoas. Os descendentes de Caim haviam construído e projetado uma forma de pensar e crer que confinava o povo à ordem imposta pelas elites, uma ordem que os beneficiava às custas dos pobres.
Assim, Jesus não profetizava tanto a destruição física do Templo — embora esta de fato acontecesse. Ele falava mais da destruição do templo mental das pessoas — das estruturas de pensamento que mantêm o povo oprimido. Falava da libertação das imposições civilizatórias de Caim. Jesus não veio para promover uma troca de regime, substituir um sistema de Caim por outro. Não veio erguer um grande templo, nem projetar melhor infraestrutura. Não: ele veio gerar algo muito mais radical — um movimento, e não um sistema estabelecido.
Jesus veio convidar o povo a percorrer o Caminho, a ser parte de um movimento — um movimento de amor, de confiança, de compartilhar. Jesus ecoava a antiga voz do pastor Abel, convidando as pessoas a se libertarem das imagens cativantes do Templo da cidade e, em vez disso, fixarem seus olhos no Caminho, caminhando juntos na luz de Deus, guiando o povo a águas tranquilas e pastos verdes.
O que tudo isso significa para nós hoje, em nosso contexto? Aqui estamos nós, vivendo na cidade, no mundo civilizado, como descendentes de Caim. Sem dúvida sua influência é dominante; não podemos evitar admirar as proezas arquitetônicas, tecnológicas e engenheiras de nossa época — e não conseguimos deixar de lamentar quando elas falham ou quando não conseguimos mantê-las. As maravilhas nos encantam; o que antes era luxo agora é necessidade. Mas mesmo agora, mesmo neste século XXI, o sangue de Abel clama da terra, porque aquela herança antiga da vida pastoril, aquela fé simples, também corre por nossas veias.
Mas não só o sangue de Abel clama; como igreja, também corre por nossas veias o sangue de Jesus, nosso bom pastor. Somos o Corpo de Cristo; e, como seguidores de Jesus, sabemos que fomos criados para o movimento, para sentir o movimento do Espírito. Como canta Alejandro no velho espiritual negro: “Every time I feel the Spirit moving in my heart” — “Cada vez que sinto o Espírito se movendo em meu coração”. Não fomos criados para ter nossas mentes e corações fixados, enrijecidos, presos e escravizados por estruturas de controle, medo, ameaça, fronteiras e posses. Fomos criados com mobilidade para cuidar, para compartilhar, para confiar, para acolher os vulneráveis.
Este, portanto, é o recado pastoral do Evangelho para nós hoje: Jesus quer que saibamos que, mesmo que os templos, as cidades e até as civilizações ao nosso redor desabem, mesmo que um dia não reste pedra sobre pedra, não devemos temer. Repito: não devemos temer. Os desastres, as pandemias e a escassez do mundo não nos paralisarão. Somos chamados, aqui e agora, a estar em movimento — no movimento do amor, do cuidado e do compartilhar. O Espírito de Deus se move neste lugar para nos libertar, consolar e guiar.
Move-te em mim! Move-te em nós!
E como diz um antigo hino:
Mova-se potente a Igreja de Deus,
sigamos os já gloriosos;
somos um só corpo, e um só é o Senhor,
uma é a esperança e um é nosso amor.
Firmes e avante!…
Sem temor algum…
Mova-se potente a Igreja Batista Ebenezer de Marianao… sem temor algum.
Amém.



