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Comida para Cachorro

(*Alerta de gatilho – este texto apresenta relatos de violência contra mulheres trans)

Em se tratando de violência de gênero, sempre me impressionou o requinte de crueldade nos assassinatos de mulheres trans. Não basta que sejam mortas, mas a violência de suas mortes mostra que grande parte dos crimes contra essas mulheres são crimes de ódio. 

Segundo o “Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022” (1), produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA (Brasil), o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Os dados da ANTRA são coletados a partir do projeto de pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM). Segundo a pesquisa, entre 2008 e 2022, o Brasil acumula 37,5% de todas as mortes de pessoas trans do mundo. 

Acompanhando esses dados, a Rede Trans Brasil, em seu documento “Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022” (2), afirma que em relação aos assassinatos no mundo: 

“O ano de 2022 registrou 327 assassinatos de pessoas trans e de gênero diverso entre 1º de outubro de 2021 e 30 de setembro de 2022. Com 222 casos, a América Latina e o Caribe continuam sendo a região que mais registrou os assassinatos. Ou seja, 68% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América Latina e no Caribe; 29% do total acontecendo no Brasil.”

Se não bastasse o alto índice de assassinatos contra essa população, ainda temos de considerar como essas mortes são provocadas. Segundo o Dossiê da ANTRA 2022, 

“Dentre os assassinatos notificados em 2022, em 11 notícias (9%) não houve informações sobre o tipo de ferramenta/meio utilizado para cometer o assassinato. Dos 120 casos restantes, 41% foram cometidos por armas de fogo; 24% por arma branca; 16% por espancamento, apedrejamento, asfixia e/ou estrangulamento e; 10% de outros meios, como pauladas, degolamento e corpos carbonizados.”

Eu me lembro de ter sido atravessada por um texto bíblico que relatava extrema crueldade em um assassinato de uma mulher, não de uma mulher trans, mas de uma mulher que havia se levantado contra “o povo escolhido de Deus”. Narra assim II Reis 9, 30-37 sobre a morte de Jezabel (3): 

“Jeú fez a sua entrada em Jezrael. Jezabel, ao sabê-lo, pintou os olhos, adornou a cabeça e pôs-se a olhar, à janela. Quando Jeú entrou pela porta, ela disse-lhe: “Como vais, Zamri, assassino de seu amo?”. Jeú levantou os olhos para a janela e disse: “Quem está do meu lado? Quem?”. Dois ou três eunucos (inclinaram-se) e olharam para ele. “Atirai-a daí abaixo” – disse ele. Jogaram-na e seu sangue salpicou as paredes e os cavalos; estes esmagaram-na aos pés. Jeú entrou. Depois de ter comido e bebido, disse: “Ide ver aquela mulher maldita e sepultai-a, porque ela é de sangue real”. Foram para sepultá-la, mas só encontraram dela o crânio, os pés e as palmas das mãos. Quando voltaram para dizê-lo a Jeú, este disse: “Foi justamente este o oráculo que o Senhor pronunciou pela boca de seu servo Elias, o tesbita: “No solo de Jezrael, os cães devorarão a carne de Jezabel e seu cadáver estará sobre a terra como esterco derramado, de sorte que não se poderá dizer que era ela”.”

Jezabel foi morta de maneira cruel. Em seu assassinato, não queriam lhe tirar a vida, mas também a dignidade humana. Ela foi esmagada pelos cavalos e teve seu corpo comido por cães. É assim que tem sido feito com muitas mulheres trans. Em 2022, Jaqueline Fyoruti, 49 anos, uma mulher trans, foi morta dentro de sua casa em Três Lagoas, MS. Notícias sobre o assassinato relatam que: “Jaqueline foi morta com requintes de crueldade, teve o rosto desfigurado a facadas, foi degolada e golpeada em praticamente todas as partes do corpo o que demonstra uma violência extrema do criminoso, diante da transexualidade da vítima” (4). 

Menciono esse caso, mas o que me vem à mente de maneira latente é a história de Kelly, que foi morta em 2019, teve seu coração arrancado do tórax e seu assassino ainda colocou uma imagem de uma santa sobre o corpo. Notícias (5) narram que o assassino disse: “Ele (sic) era um demônio, eu arranquei o coração dele (sic)”. Muitas igrejas cristãs afirmam que o “espírito de Jezabel” é o próprio demônio. Eu confesso com muita vergonha que um grupo de pessoas da igreja neopentecosal da qual fiz parte certa vez jogou ração de cachorro em algumas ruas onde profissionais do sexo (em sua maioria travestis) costumavam trabalhar. 

Atualmente a Lei Maria da Penha é usada para enquadrar muitos desses crimes contra mulheres trans na categoria de feminicídio. Como afirma o site oficial do Supremo Tribunal de Justiça (6):

“No primeiro semestre de 2022, uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero. O relator do recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz, considerou que, por se tratar de vítima mulher, independentemente do seu sexo biológico, e tendo ocorrido a violência em ambiente familiar – no caso dos autos, o pai agrediu a própria filha trans –, deveria ser aplicada a legislação especial. Com base na doutrina jurídica, Schietti afirmou que o elemento diferenciador da abrangência da Lei Maria da Penha é o gênero feminino, o qual nem sempre coincide com o sexo biológico. O objetivo da lei, segundo ele, é prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar que se pratica contra a mulher por causa do gênero e não em virtude do sexo.” 

Esse é um ganho enorme, primeiramente porque reconhece mulheres trans como mulheres e, também, porque garante a elas medidas de proteção que podem evitar crimes tão cruéis, nos quais elas, à semelhança de Jezabel, acabem se tornando comida para cachorro. 

Ana Ester é teóloga queer, mestra e doutora em Ciências da Religião. É clériga ordenada pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana. @anaesterbh 


Referências

1 https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf 

2 ARAÚJO, Tathiane Aquino; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim; CABRAL, Euclides Afonso. Registro Nacional de Assassinatos e Violações de Direitos Humanos das Pessoas Trans no Brasil em 2022. Série Publicações Rede Trans Brasil, 7a. ed. Aracaju: Rede Trans Brasil, Uberlândia: IBTE, 2023. 

3 https://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/ii-reis/9/ 

4 https://primeirapagina.com.br/justica/policia-conclui-inquerito-e-aponta-feminicidio-em-caso-de-transexual-morta/

5 https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/01/21/homem-e-preso-em-campinas-apos-matar-e-guardar-coracao-da-vitima-em-casa.ghtml 

6 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/29012023-Sexta-Turma-estendeu-protecao-da-Lei-Maria-da-Penha-para-mulheres-trans.aspx


Ana Ester é teóloga queer, mestra e doutora em Ciências da Religião. É clériga ordenada pelas Igrejas da Comunidade Metropolitana.

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