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CEBI na Minha Vida – Mercedes de Budallés Diez

Ontem, indo de Táxi para o aeroporto de Salvador, me chamou muito a atenção uma placa, relativamente grande, num prédio onde estava escrito: “Casa do agronegócio de mentira”. Eu, que morei muitos anos no Goiás e Tocantins, sofrendo com o povo expulso das suas terras, conhecia bem a ambição dos ruralistas, depois chamados fazendeiros no tempo da fundação da UDR em Goiás, e hoje, mais conhecido como povo do agronegócio. O que significava para quem escreveu “Casa do agronegócio de mentira”?  A frase escrita naquela placa era uma ironia e uma crítica? Quem escreveu concordava ou não com o Agrotóxico? Logicamente, isso me trouxe muitas memórias concretas.

Foram muitos anos de caminhada com o povo sofrido do interior do Tocantins, Mato Grosso e Goiás. Não posso definir ainda o que estou pensando sobre essa “Casa do agronegócio de mentira”, mas posso, sim, fazer memória do que foi viver o sofrimento do povo e aprofundar com eles uma reflexão bíblica.

Nos primeiros meses que eu estava morando numa cidadezinha chamada Conceição do Norte, hoje Conceição do Tocantins, fomos convidadas pelo bispo Dom Celso Pereira, para participar num encontro em Dianópolis. Fomos os 160 Km de estrada de chão numa camionete “pau de arara”. Em Dianópolis refletimos Êxodo, capítulo 3. Repetidamente fizemos a leitura em grupos, nos perguntando, celebrando o que poderia significar isso para nós. Foi muito forte e bom assimilar e entender um Deus Javé próximo que disse:

Estou vendo muito bem a situação do povo que está no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, tomei conhecimento dos seus sofrimentos. O clamor do seu povo chegou até mim”… E aí o pedido de Deus a Moisés: “Vai libertar este povo. Eu estarei com você. Esse será o sinal que eu te enviei. Quando você tirar o povo do Egito, vocês servirão a Deus nesta montanha”. (Ex 3,7-10)

Foi uma surpresa para muitas das pessoas que estávamos refletindo juntas este texto. A Bíblia, naquela região, era `ouvida’ apenas na leitura dos Evangelhos, ou nos Salmos e Cartas, nas celebrações das Missas, uma vez por mês ou cada três meses quando chegava o Padre. A mudança chegou quando duas irmãs as que colocamos o pé naquela missão onde o povo, tinha uma profunda fé, uma fé encarnada no sofrimento. Na memória ficou um Padre, que depois casou, deixou filhos e um fecundo trabalho de evangelização. De fato, passaram mais de 200 anos, e o povo manteve a fé rezando, com cantos, alguns em latim (!) e os benditos, que eram orações com letras e músicas inventadas por eles. Era e é muito bom perceber que o terço (com uma das sete ladainhas cantadas em latim) e benditos rezados em todas as festas dos Santos alimentaram sua fé e vida para os momentos de alegria e de dor.

As missioneiras aprendemos a realidade e aos poucos organizamos o que seriam Comunidades Eclesiais de Base, mesmo que não as chamamos assim. Partindo de nossas vidas, liamos e refletíamos a Bíblia, procurando o que podia nos ajudar na situação de sofrimento que vivíamos. Foi como um milagre. Foi muito de Deus!

Eu tinha estudado Teologia na Espanha em uma faculdade muito tradicional. Sempre gostei de estudar a Bíblia. Mas, de repente, diante do grito do povo sofrido da Região Norte, engajada na Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia/Tocantins eu reaprendi a ler a Bíblia para a vida. Não foi fácil essa mudança, principalmente para o povo. Os padres que apareciam lá falavam tínhamos que sofrer como Jesus sofreu para chegar a vitória da ressurreição… Nunca davam conselho ou respondiam ao sofrimento do povo que contava como os fazendeiros traziam papeis falsos para expulsar o povo, até os indígenas. Muitas vezes tinham que se esconder pelo medo e ameaças dos fazendeiros.

Nesse tempo já liamos a Bíblia dizendo que Deus escuta o clamor do seu povo. Eu falo isso de uma forma muito emotiva para mim e dando muitas graças a Deus de ter vivido todo esse processo e ter mudado meu jeito de acreditar no Deus que liberta seu povo, de uma forma real. Poderia contar muitas mudanças em nós, porem o importante foi perceber como o povo descobria outra forma de ler a Bíblia. Uma catequista me pediu substitui-la n a catequese, pois ela não estava passando bem. Peguei a Bíblia e corri. O texto que seria lido, encenado, desenhado pelas crianças era conhecido como Filho pródigo, no Evangelho de Lucas.  Depois de ter encenado, refletido, desenhado, na roda final quando já estávamos agradecendo a Deus pela manhã de catequese, uma menina me perguntou: “Mercedes, cadê a mãe do rapaz malandro?” Olhei para as crianças e disse: “O que vocês acham?” Este rapaz tinha mãe ou não tinha?” Discutiram que não, porque no texto não aparecia. Mas, outra menina levantou a mão e disse: “Tem sim. E está aí na Bíblia. Lá em casa é assim. Sempre que meu pai perdoa ao meu irmão malandro, a minha mãe está ao lado, está perto”…  Eu aprendi naquele instante, graças a uma criança: usar as palavras adequadas. Em casa, na realidade cotidiana, filho pródigo, é filho malandro. Casa, lugar de vida. Aprendi a escutar mais e confirmei que as mães, as mulheres sempre estamos presentes dando valor a vida, ao perdão.

A situação das mulheres lá era triste: escravas dos seus maridos, dos seus filhos… começamos a fazer grupos nas casas, nos reuníamos semanalmente, porque as pessoas tinham tempo. Tivemos problemas sim. Lembro que duas mulheres deixaram de vir. Uma delas era muito viva, muito falante, disse que o marido tinha proibido. O que fazer? Dona Chiquinha teve uma ideia feliz: Gente, podemos combinar de fazer pão, bolos, juntas. Lá em casa tem um forno bem grande… Vamos trazer os ingredientes que pudermos e preparamos. Enquanto cresce a massa lemos a Bíblia. Quando chegarmos em casa com a merenda pronta os maridos e as crianças vão gostar.” Dito e feito. Conseguimos ir juntando grupos com essa e outras dinâmicas, sempre na procura de entender e encontrar este Deus libertador que diz ao seu povo: vai!

E aqui está, nosso começo faz uns 45 anos agradecendo a Deus pela Bíblia, pela comunidade, pela partilha, pela vida. Continuamos firmes na estrada de Jesus que até hoje nos ensina ser CAMINHO, VERDADE, VIDA (Jo 14,6).

Mercedes de Budallés Diez e Comunidades de Conceição do Tocantins

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