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Caminhos de Esperança no Brasil

Fazendo ecoar o Dia da Democracia, partilhamos o artigo de Ildo Bohn Gass sobre os “Caminhos de Esperança no Brasil”.


Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário. (Paulo Freire)

Especialmente a partir da aliança com o Império Romano no início do séc. 4, o Cristianismo patriarcal hegemônico apresentava o céu como a esperança de uma vida eternamente feliz, uma vida livre desse “vale de lágrimas”.

Com essa forma limitada de entender a esperança, o Cristianismo, na prática, estimulava seus fiéis a aceitar os sofrimentos dessa vida de forma resignada e esperar pela felicidade celeste. A religiosidade servia como paliativo aos sofrimentos do povo. Localizando a realização da esperança no futuro, essa religiosidade não estimulava o engajamento na luta por uma sociedade justa.

No Brasil, desde a invasão das terras indígenas pelos colonizadores europeus, religião e política seguiram aliadas oficialmente até 1889, ano em que um golpe militar deu origem à República, aliás, pouco republicana. É que, em latim, re public significa coisa pública, assunto de todos. Contudo, desde o início da República, o Brasil é um Estado laico, de modo que nenhuma religião deveria legitimar qualquer governo.

Nos anos 40 e 50 do século passado, floresceu, em meio aos católicos romanos, um movimento de retorno às fontes do Evangelho. Esse movimento desembocou no Segundo Concílio do Vaticano (1962-1965), que trouxe um espírito de renovação na Igreja Católica Apostólica Romana.

Movidas por esse espírito, inúmeras pessoas cristãs engajaram-se nas lutas dos povos latino-americanos por dignidade. Essa fé ativa era fortalecida nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), cuja mística era movida pela Teologia da Libertação (TdL), a teologia da justiça do Reino.

Desse modo, a esperança não era somente a espera de uma vida feliz no céu. Não servia como um simples conforto diante da opressão, mas também dinamizava as pessoas nas lutas por igualdade de direitos. Não queremos ser felizes somente no céu. Como Jesus, queremos que a vontade do Pai seja feita na terra como é realizada nos céus.(Mt 6,10) 

Como religião profética, o Cristianismo está comprometido com a justiça, com a defesa dos direitos dos irmãos mais pequeninos, como diria Jesus. (cf. Mt 25,40) Mas esse engajamento político não se dá ocupando os espaços de poder do Estado em nome da religião. Como fermento na massa (cf. Mt 13,33), dá-se nas lutas dos movimentos sociais, como o Movimento de Trabalhadores Sem Terra e o Movimento de Trabalhadores Sem Teto. Acontece nas lutas pela superação da intolerância em relação às pessoas pobres, aos povos africanos e indígenas, às mulheres, às pessoas da diversidade quanto à sexualidade. A profecia cristã alimenta também a esperança de grupos organizados na economia solidária, na saúde alternativa e em tantos outros espaços de cuidado da vida.

Assim, o substantivo esperança passou a ser verbo, passou a ser ação. Agora é esperançar. Esperançar é o contrário de acomodar-se, de desanimar. Esperançar é ter ânimo e coragem, é superar o medo. É ter o dinamismo e a vitalidade que movem as lutas por transformação em êxodo permanente. Esperar contra toda esperança (cf. Rm 4,18) é esperançar como ato de resistência e rebeldia, de resiliência e perseverança. É renascer das cinzas. (cf. Ez 37,1-14)

É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. (Paulo Freire, em Pedagogia da Esperança, 1992)

Não é por acaso que Jesus estimulava as pessoas a saírem da situação de acomodação aos sistemas deste mundo, dizendo: tenham ânimo, não tenham medo. (cf. Mt 9,2.22; 14,27; Mc 6,50; 10,49; Jo 16,33) Assim, ele ajudava as pessoas a serem livres, a fazerem história com coragem, como sujeitos de sua própria caminhada, colaborando na construção de uma vida feliz em um mundo no qual há vida e vida em abundância. (Jo 10,10)

Nisso, Paulo seguiu seu mestre: Não vos acomodeis às estruturas desde mundo, mas vos transformai, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, agradável e perfeito. (Rm 12,2)

Quando as CEBs passaram da “esperança de esperar” para “esperança de esperançar”, imediatamente os capitalistas sentiram o impacto. E logo o império estadunidense reagiu, promovendo ditaduras militares e perseguindo quem lutava por justiça, movido pela esperança cristã. A estratégia dessa reação está nos Documentos de Santa Fé (1980-1988), como estratégia política estadunidense para a América Latina.

Entre outros, foram objetivos dessa estratégia fortalecer o movimento carismático e infiltrar igrejas neopentecostais nos países latino-americanos. O principal propósito era enfraquecer as CEBs e a TdL. Os resultados dessa estratégia imperialista, no Brasil dos últimos anos, são visíveis no envolvimento com o fascismo de setores conservadores de igrejas históricas e especialmente de igrejas neopentecostais. Assim, foi possível a tomada dos espaços de poder do Estado em nome do lema usado pelo fascismo: O Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos. Isso se chama teocracia, em que o poder é exercido por um suposto messias enviado de Deus e apoiado por líderes religiosos. Um poder capaz de matar em nome de Deus.

Duas ênfases sobressaem nessa religiosidade que mantém seus fiéis reféns de seus líderes.

Um destaque é o fundamentalismo religioso, reafirmando valores conservadores. Lê-se a Bíblia ao pé da letra. No entanto, os fundamentalistas pinçam textos de forma descontextualizada e que concordem com suas teorias. Em vez de se amoldarem à raiz teológica da Bíblia, isto é, à fé no Deus libertador que defende a vida livre, o direito à terra e à justiça (Ex 3,7-10), buscam textos que legitimam suas intolerâncias e seus interesses políticos e econômicos. 

Fiéis dessas igrejas são usados por suas lideranças para fazer lavagem cerebral, de modo que não pensem mais por si próprios, perdendo a capacidade de refletir, de ser livres. A religião é usada para manipular, para controlar as pessoas. Nesse caso, são o pastor ou o padre quem define o que o fiel deve pensar ou em quem deve votar. De um lado, os fiéis, em sua maioria pessoas simples, entregam o dízimo aos mercadores da fé. De outro, suas consciências são capturadas, permanecendo reféns de seus líderes. Suas mentes ficam bloqueadas a qualquer questionamento de outrem e que não esteja de acordo com a ideologia de quem os manipula. Destrói-se qualquer possibilidade de diálogo. A isso, o profeta de Nazaré chamaria de possessão demoníaca.

Uma segunda ênfase nessa religiosidade neopentecostal é a Teologia da Prosperidade (TdP). A esperança dessa teologia não aponta mais para o céu, mas para a prosperidade nesta vida. Na TdL, esperançar acentua o “nós”, o bem-viver coletivo em uma sociedade justa. Ali, a comunidade exerce um papel importante como espaço de novas relações de solidariedade. A TdP, porém, promete, em troca do dízimo, o bem-estar individual ou, no máximo, da família. Prioriza, portanto, o “eu”, promovendo o individualismo, mesmo que isso se dê em grandes aglomerações ou em cultos televisivos.

Um dos caminhos de esperança no Brasil é lutar para que a República volte a ser laica, em que nenhuma religião ocupe as instituições do Estado. Somente um Estado laico pode garantir a democracia que promova cidadania para todo o seu povo, bem como assegurar a própria liberdade religiosa.

Saber esperar sabendo ao mesmo tempo forçar
a hora daquela urgência, que não permite esperar. 
(Pedro Casaldáliga)


Autor: Ildo Bohn Gass é ministro da Palavra, leigo, de tradição católica, com formação em Teologia e especialização em Bíblia. Organizou a coleção “Uma Introdução à Bíblia”, publicada por CEBI/Paulus. Participa do CEBI e colabora em Movimentos Populares. Mora em São Leopoldo/RS.

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