Brasil Cristão: entre conversões e conversinhas a Bíblia perdeu-se

O Brasil, outrora chamado de Ilha de Vera Cruz pelos colonizadores portugueses, ostenta números impressionantes de cristãos em pesquisas e censos. No entanto, a simples quantidade de fiéis não traduz uma vivência autêntica do Evangelho. As estatísticas não refletem uma prática em sintonia com a proposta de Cristo e dos profetas e profetisas que anunciaram justiça, amor e libertação.

O fariseu da parábola de (Lc 18,10-14), que entra no templo para se exibir diante da comunidade, hoje se reinventa em versões digitais: suas orações e jejuns não são apenas proclamados em voz alta, mas compartilhados, curtidos e viralizados nas redes sociais. Enquanto isso, a essência da mensagem cristã perde-se entre conversões superficiais e discursos vazios, onde a Bíblia é mais citada do que vivida.

Servir a Deus é buscar a verdade, não se deixar cair nem perder a esperança. É procurar a justiça, construir alianças entre os povos e olhar por aqueles e aquelas que estão em situação de fragilidade. É necessário abrir os olhos de quem não consegue ver, retirar do cárcere quem está preso e trazer à luz quem está perdido nas trevas, esse é o dever de quem aceita a missão (Is 42, 1-7). A prática dessa missão em nossa realidade atual consiste em cessar todas as guerras, fazer o famoso trabalho de base nas periferias existenciais e geográficas e combater todas as estruturas de morte que sugam a vida da classe trabalhadora todos os dias.

Nosso egoísmo e nossa mesquinhez levam-nos a acreditar que é necessário fechar o caminho das outras pessoas para garantir o céu para nós mesmos (Mt 23, 13), principalmente se, de alguma forma, temos títulos de poder ou alguma influência em nossos espaços de fé, pois nos sentimos confortáveis para atirar o máximo de leis e regras que conseguimos decorar (ou até inventar regras de nossa cabeça), deixando nosso cristianismo esvaziado de Cristo e, ao mesmo tempo, tornando a religião o mais pesada e violenta possível (Mt 23, 1-7). Muitas vezes, não conseguimos nos enxergar como falhos ou, no mínimo, preferimos acreditar que nossos erros não são grandes o suficiente para nos afastar do tão desejado paraíso. Ao mesmo tempo,  preocupamo-nos obsessivamente com os mínimos detalhes da vida alheia, tendo a certeza de que o outro é tão pecador que, certamente, não terá a mesma sorte que nós (Mt 23, 24-28).

Esse cristianismo, centrado em hipocrisias e individualismo, leva uma grande rasteira quando Pedro provoca-nos ao dizer: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas.” (At 10, 34) Nesse momento, somos desafiados e desafiadas a abrir os olhos e agir como missionários e missionárias que se preocupam com a verdade ou a continuar nos enganando, achando que existe uma hierarquia entre as pessoas e que, curiosamente, estamos no grupo dos mais aptos diante das preferências de Deus. Jesus vai na contramão do senso comum, pois estamos envenenados por uma lógica que rotula as pessoas entre quem mereceria e quem não mereceria amor e acolhimento. No entanto, a ação divina mostra-nos que aqueles que são socialmente menosprezados recebem um olhar mais atencioso por parte de Deus (Mt 25, 40), por mais que isso ofenda nosso frágil coração cristão (risos).

Nossos preconceitos e ideologias podem ser obstáculos entre nós e Deus. Por mais convicção que uma pessoa tenha sobre sua fé, como pode ter total certeza de que está diante da mensagem de Deus e compreendeu a vontade d’Ele? (Mt 7, 1-5).

Principalmente neste momento histórico, em que caçamos curtidas nas redes sociais a todo custo, a mensagem bíblica perdeu espaço para a mensagem dos algoritmos. Ser cristão ou cristã, tentar copiar o Mestre Jesus, é separar nossos achismos daquilo que realmente está escrito. Nesse sentido, Deus nos ensina que todas as pessoas são igualmente importantes diante do Seu infinito amor.

Quando pensamos em “todas as pessoas”, precisamos incluir não só nossa família e amizades, mas também nossos inimigos ou desafetos, e aqueles que muitos religiosos apontam como “condenados” (Lc 23, 39-43). No entanto, preferimos apontar os dedos e jogar Jesus nas prisões e crucificações diariamente, lembrando que nem toda prisão é um prédio. Habilmente criamos prisões existenciais, onde massacramos as pessoas por sua raça, gênero, endereço, nacionalidade e tudo o mais que conseguirmos explorar – tudo isso sem deixar de frequentar cultos e missas (graças a Deus! Glória!).

Deus nos criou à sua imagem e semelhança (Gn 1, 26-28) e isso significa que todas as formas de existir são uma expressão do rosto divino. Ou seja, Deus não se importa, por exemplo, com a orientação sexual ou a identidade de gênero de uma pessoa, porque Ele sabe quão grandiosa, diversa e bela é toda a sua criação. Ninguém está excluído do Reino. O que Ele deseja é que as pessoas sejam amorosas e tenham o desejo de acolher e cuidar, independentemente de qual periferia existencial ou geográfica essa outra pessoa esteja incluída (Lc 10, 25-37). Se estou mais preocupado em decorar as regras, sem a amorosidade suficiente para as interpretar ou as colocar em prática, como orienta Jesus, acabarei por condenar alguém por ser LGBT, por sua nacionalidade/etnia, por sua condição de encarcerado ou por qualquer outra desculpa que possamos encontrar para julgar e excluir quem Jesus disse para abraçar. São meus preconceitos que estão falando – e não a condução do Espírito Santo.

O inferno que criamos em nossas igrejas — quem sabe até as transformamos em uma maquete do inferno (vai saber!) — para segregar e odiar é obra do ser humano, não a orientação de Jesus e muito menos um sopro do Espírito Santo. Pode uma pessoa LGBT ser justa? Pode um estrangeiro ser caridoso? Pode uma pessoa encarcerada amar e cuidar do próximo? Pode alguém que nossos preconceitos querem excluir da sociedade estar mais próximo da prática do Evangelho do que nós mesmos? Quantas vezes dedicamos nosso tempo ao que não tem relevância nenhuma para nossa fé? Deixo as respostas para essas perguntas para você, que chegou até aqui nesta reflexão.

O ouro e os aplausos chamam mais a nossa atenção e tiram nossa capacidade de refletir sobre o que as Escrituras têm a nos dizer hoje. É fácil demais se perder e não conseguir discernir a voz de Cristo em meio a tantas outras vozes (Jo 10, 7-10), por mais que a proposta d’Ele seja simples, pois precisamos amar a Deus com nossos corações e mentes ao mesmo tempo que amamos a humanidade, pois somos todos iguais (Mt 22, 36-40).

Fique bem à vontade para discordar de mim, mas gosto de diferenciar simplicidade de facilidade nesse caso. Temos apenas uma regra basilar: amar indiscriminadamente – algo simples de compreender, mas difícil de praticar, porque somos esse conjunto de vícios e virtudes, qualidades e defeitos.

Que bom que Deus é brasileiro e que nosso povo não desiste nunca! A fé por aqui move montanhas, mas não consegue ajudar as pessoas que mais precisam. Conseguimos consolidar um cristianismo que muito reza – muito joelho no chão, muitos cultos e missas –, mas as pessoas continuam em situação de vulnerabilidade social, reféns de nossas fés. No final, entre tantas conversões religiosas e conversinhas fiadas, a Bíblia perdeu-se — mas pelo menos garantiu eleições, ostentação, hipocrisia e arrecadação recorde no dízimo. Não podemos permitir que nossa fé seja apenas um discurso (Tg 2, 14-26); ela precisa se traduzir em ações coerentes com nossas crenças. Nossas ações devem transbordar os Evangelhos e ser um sinal do Reino de Deus na sociedade.

Carlos Nunes – Nasceu em Esplanada-BA; Professor de Filosofia; possui formação acadêmica (Graduação e Mestrado) em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS); youtubeiro no canal Não é Heresia (Youtube); católico e militante da Pastoral da Juventude; atualmente colabora com a articulação da juventude do CEBI Nordeste.

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