Artigo de autoria do pastor Bob Luiz Botelho.
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” (João 8, 32; 36)
Comecemos com uma rápida história sobre a dor de não saber quem se é, para então percorrermos juntos algumas ideias e conceitos que vão ampliar nossa capacidade de relacionar o que a Bíblia nos ensina e o tema da diversidade sexual e de gênero.
Vinte anos atrás, em pleno inverno, Jang Yeong-jin atravessou nadando um rio gelado até a China, onde passou mais de um ano tentando conseguir uma forma de chegar legalmente à Coréia do Sul. No consulado desse país em Pequim se negavam a atendê-lo, diziam que fosse embora, que não iam ouvi-lo, que acabaria sendo preso. Quando servia no Exército, na Coréia do Norte, Jang estivera perto da fronteira e lá ouvia no rádio transmissões incentivando seus compatriotas a desertarem para desfrutar a liberdade no país vizinho do sul. Mas não ia se render: quando viu que era impossível chegar lá por bem, voltou para a Coréia do Norte e decidiu seguir o caminho mais difícil: cruzar a fronteira no sul da península, atravessando um bosque e um campo minado e muito vigiado de ambos os lados. Conseguiu chegar vivo e sua história saiu nos jornais e por isso o governo da Coréia do Norte mandou seus familiares para campos de trabalho forçado. Depois que chegou à Coréia do Sul, a polícia o interrogou durante cinco meses, até que o libertaram sem ter conseguido que Jang respondesse a uma pergunta que parecia simples: por que tinha arriscado a vida para atravessar a fronteira entre as duas Coréias, em conflito desde o fim da Segunda Guerra? Que segredo era aquele que não podia contar? Ele mesmo não sabia; não entendia por que tivera que fugir. Não era um perseguido político, nem um ativista, mas viver sob o regime como o da Coréia do Norte lhe parecia insuportável por outra razão, mais íntima, que ele mesmo não entendia bem: “Tinha muita vergonha de confessar que tinha vindo pra cá porque não sentia nenhum tipo de atração sexual pela minha esposa”, contou Jang numa entrevista ao New York Times em 2015. Yeong-jin não sabia que era gay. Ou melhor, ele nunca tinha escutado a palavra “homossexual”. “É uma tragédia passar a vida sem saber quem você é!”, disse ele.
O dilema de Jang pode parecer único porque ele vivia em uma sociedade muito fechada como a Coréia do Norte, mas muitos de nós vivemos numa sociedade aberta, com acesso a todo tipo de informação que se encontra facilmente na Internet, mas ainda assim conhecemos muito pouco da realidade que pessoas não heterossexuais vivem em seus corpos, desejos e experiências amorosas. Jang só se sentiu plenamente livre quando descobriu o que acontecia com ele e quais os nomes que ele poderia dar para o que sentia.
Cristo nos chama para uma vida em liberdade e a Bíblia nos ensina que só é possível ser verdadeiramente livre quando se conhece a verdade em toda a sua plenitude. O convite do Evangelho não é para a liberdade de apenas algumas pessoas. Todas as pessoas têm direito a se sentirem livres, conhecendo mais sobre si mesmas e conhecendo o amor de Cristo, que é irrestrito. Ele ama todas as pessoas incondicionalmente. Conhecer mais sobre a diversidade e sobre os conceitos que envolvem esse tema são formas de trazer libertação para cativeiros que nós e muitas pessoas vivem em seus contextos.
“Elas administravam alguns setores da igreja e começaram a me cercar, sabe? Diziam que estava acontecendo alguma coisa comigo, porque eu estava com 14 anos e, ao invés de eu estar parecendo com um menino, eu estava parecendo uma menina. O que estava acontecendo? Aquilo não podia, que Deus não ia permitir aquilo, sabe? E se quisesse elas me apresentariam uma psicóloga, que também ajudaria fazendo atendimento individual. Foi caçando a gente, foi expulsando um a um, e eu fui a primeira. Porque eu quebrava o padrão de gênero lá. Ele (padre) me expulsou no meio da missa. Ele falou que Deus não aceitava essas aberrações, olhando para mim. Aí, assim, eu saí.”
Esta história serve, portanto, para nos alertar de que precisamos buscar entender este conjunto de ideias e expressões tão cheias de significados para tantas pessoas. O desafio que vamos enfrentar agora é aprender a navegar no mar de dúvidas, novas questões, palavras, conceitos. Vamos adentrar o portal de algumas dessas novas expressões utilizadas em conversas e nos meios de comunicação, que passaram rapidamente a fazer parte do vocabulário social sobre o tema da sexualidade. Sinta-se à vontade para consultar outros materiais e aprofundar suas descobertas.
Orientação Sexual refere-se à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas. Se você tem atração por pessoas do gênero oposto ao seu, você é HETEROssexual. Se você sente atração por pessoas do mesmo gênero, sua orientação sexual é HOMOssexual (gay ou lésbica). Em caso de identificação com os dois gêneros, a orientação é BIssexual. Existem outras possibilidades como Assexual (não sente nenhuma atração sexual) ou PANsexual (atração física, amor e desejo sexual por outras pessoas, independente de sua identidade de gênero ou sexo biológico).
LGBTI é a sigla que representa o conjunto de orientações sexuais e identidades de gênero. É uma sigla que agrega todas as pessoas não heterossexuais, na qual o “L” é para Lésbicas, o “G” para gays, o “B” para Bissexuais, o “T” representa Travestis, Transexuais e Transgênero e o “I”, a mais nova letra incluída, busca visibilizar as pessoas “intersexo”. Existem siglas com mais letras, mas essa uma das mais comuns que você vai ler ou ouvir.
Bandeira ou símbolo Arco-Íris foi criada por Gilbert Baker para o Dia da Liberdade Gay de São Francisco, na Califórnia, em 1978, a “bandeira LGBTI”, ou, como ela é mais comumente reconhecida, “bandeira gay”, originalmente com oito cores. Cada cor tinha um significado próprio: rosa – sexualidade; vermelho – vida; laranja – cura; amarelo – luz do sol; verde – natureza; turquesa – mágica/arte; anil – harmonia/serenidade; violeta – espírito humano. A bandeira ficou mundialmente conhecida e passou a ser usada como símbolo da comunidade LGBTI após o assassinato de Harvey Milk, o primeiro político abertamente gay da cidade de São Francisco, em 27 de novembro de 1978. Atualmente a bandeira mais comumente utilizada pelo Movimento LGBTI, desde 1979, é a bandeira com seis cores, com o azul substituindo o rosa e o azul claro.
Identidade de Gênero – Quando você nasce as pessoas geralmente designam o seu gênero de acordo com a genitália que você possui. Se você nasce com pênis, te atribuem o gênero masculino; e se você nasce com vagina, o gênero feminino. Sua identidade de gênero tem a ver com a maneira como você se relaciona com isso. Se você se entende e se aceita tal qual o gênero que lhe foi designado, você é uma pessoa CISgênero. No caso de você não se identificar com o gênero que te foi designado ao nascer, você é uma pessoa TRANSgênero ou TRANSexual.
Diversidade Sexual se refere a todo o espectro onde se encontram as várias orientações sexuais diferentes. Geralmente acompanhado da palavra gênero (Diversidade sexual e de gênero), refere-se a toda a pluralidade que envolve desde o padrão cisgênero e heterossexual até cada letrinha da sigla LGBTI.
Intersexualidade – Uma pessoa intersexo é uma pessoa que nasceu biologicamente com as duas genitálias, o pênis e a vagina. A pessoa intersexo nasce sem a especificidade da designação de gênero porque ela tem as duas composições biológicas. Elas passam por desafios muito específicos na descoberta do gênero e desenvolvimento de identidade e também de sexualidade. Antigamente as expressões comuns eram “hermafrodita” ou ainda “andrógino”, mas as próprias pessoas dessa comunidade reivindicaram essa palavra para defini-las.
Paradas do Orgulho LGBTI são eventos importantes para a comunidade LGBTI. São passeatas realizadas nas cidades onde se busca objetivos como visibilizar a comunidade, afirmar para a sociedade que pessoas diversas existem e também lutar pela defesa e pelo avanço dos direitos civis dessa população. Através da Parada do Orgulho a comunidade LGBTI ocupa as ruas e diz para sociedade: “Nós existimos e exigimos os mesmos direitos”. É a comunidade dizendo que apesar da ausência de direitos, do alto índice de vulnerabilidade e exposição à morte (principalmente a população Trans, que tem a menor expectativa de vida do mundo), tem orgulho de ser quem é.
Homofobia ou LGBTIfobia – Embora o termo “fobia” seja um termo utilizado para indicar um medo extremo de alguma coisa (o sufixo significa aversão, ódio e repulsa), é utilizada quando uma pessoa LGBTI sofre algum tipo de violência, preconceito ou discriminação justamente por ser LGBTI. Seja a piada que muita gente ainda dá risada, ou a recusa à participação na Eucaristia ou Comunhão. Ou ainda quando uma pessoa é demitida porque o chefe é religioso e não admite uma pessoa LGBTI trabalhando na sua empresa, ou quando os pais dizem ter “vergonha” de sua/seu filha/filho. LGBTIfobia é o termo que agrega todos os tipos de violência contra a comunidade LGBTI. Um termo muito utilizado também para tornar visível a violência específica contra a população TRANS é “transfobia”.
Famílias trans-homoafetivas são aquelas famílias compostas por quem não se enquadra no padrão (cisgênero e/ou heterossexual) e que mesmo assim continua afirmando os laços de afeto, de aceitação e amor incondicionais. Casais homossexuais, crianças trans, casais com identidades de gênero distintas (uma pessoa cisgênero e a outra pessoa trans) e todo o tipo de arranjo familiar onde uma ou mais pessoas não se identificam com o padrão cis-heteronormativo é uma família trans-homoafetiva. Isso vale pra quando a avó e o avô cuidam da LGBTI expulsa de casa, ou quando a tia recebe a sobrinha lésbica e sua companheira, por exemplo.
Ideologia de gênero é um jargão criado pela ala conservadora da Igreja Católica e fortemente apropriado por muitas igrejas evangélicas para tentar reunir todos esses conceitos, e atribuir a eles uma noção pejorativa. Quer tentar convencer as pessoas de que todos esses conceitos expressos aqui são parte de uma tentativa de “desvirtuar” as “pessoas de bem” e de influenciar as crianças e adolescentes a se desviarem do seu “instinto natural”.
O que fazer com isso?
“Eu sempre fui o filhinho perfeito deles, eles não precisavam ir para a escola resolver nada, sempre fazia tudo, sempre fazia tudo que eles pediam, filho obediente. Eu falei: ‘Eu sempre dei tudo que vocês queriam, tudo que vocês precisavam. Agora eu estou precisando de vocês, vocês estão me recusando.’ Falavam: ‘Isso não é de Deus, isso não é você, você não é assim, você não é essa coisa’.”
As pessoas são muito mais do que os rótulos que as designam. Na vida cotidiana e nos seus desafios, todos esses conceitos são muito limitados para definir com exatidão a grandeza e complexidade do que é ser e viver a humanidade em nosso tempo. O importante a ter em mente é que esses conceitos existem por dois motivos principais. O primeiro é ajudar as pessoas que se sentem angustiadas por não saberem dar nome a como se sentem e a se encontrarem no mundo de alguma forma (ainda que limitada), fazendo ela se sentir um pouco mais confortável com certas palavras utilizadas para tentar defini-las.
O segundo motivo é lutar pela garantia de direitos e políticas públicas e sociais, fazendo com que pessoas trans, por exemplo, tenham como adquirir alguns direitos fundamentais como o de utilização de nome social, e mais ainda, a possibilidade de retificação de seus documentos. Esses conceitos não têm o objetivo de delimitar as pessoas, pelo contrário, existem para ampliar as possibilidades de compreensão e de acesso a direitos que garantam a equidade entre todas as pessoas.