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A Violência Contra as Mulheres Tem Cor e Raça

Fazendo ecoar o dia da Mulher Afro-latino Ameríndia e Caribenha, 25 de julho, o CEBI partilha o artigo elaborado pelo Fórum Cearense de Mulheres, que compõe o PNV 389.


No dia 25 de julho celebramos a Mulher Afro-latino Ameríndia e Caribenha, no Brasil ecoamos a vida e a luta da Rainha quilombola Tereza de Benguela. Vida de mulher negra, tombada na luta por justiça.

Para ampliar nossa reflexão, vamos analisar um recorte da população de mulheres negras, desta feita o recorte nordestino, no estado do Ceará, no entanto, esta amostra, infelizmente, é válida para todo o Brasil e a latino-ameríndia e Caribe.

O crescimento contínuo do feminicídio no Brasil, assim como da violência doméstica e do estupro, resulta de uma cultura machista, que naturaliza a violência contra nós mulheres. Cultura que, no Brasil, se evidencia em discursos como: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, “mulher gosta de apanhar”, “mulher não sai de relacionamento abusivo porque não quer”, entre outros. Como consequência, temos que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o 5º país em que mais se mata mulheres no mundo. Uma realidade ainda mais grave para as mulheres negras que, além de serem penalizadas pelo machismo, são também vítimas do racismo que organiza e estrutura a sociedade brasileira.

Segundo o Atlas da Violência 2019 (IPEA/FBSP), entre 2007 e 2017, o número de mulheres negras assassinadas no Brasil cresceu 60,5%, enquanto o de mulheres não negras subiu apenas 1,7%. Chama a atenção o período entre 2012 e 2017, no qual o percentual de mulheres negras assassinadas no país teve um crescimento de 12,7%, enquanto entre as mulheres não negras, houve uma queda de -2,6%. Entre 2016 e 2017, tanto o assassinato de mulheres negras como não negras voltou a crescer. Porém, o assassinato de mulheres negras (9,4%) foi quase três vezes maior que o de mulheres não negras (3,8%).

No Ceará, a situação das mulheres negras é ainda mais grave. De acordo com o Atlas da Violência 2019, no estado, o percentual de mulheres negras assassinadas entre 2007 e 2017 foi de 286,9%, enquanto o percentual de mulheres não negras, no mesmo período, foi de 18,5% – ou seja, o percentual de mulheres negras assassinadas no estado é 14 vezes maior! Estes dados são uma pequena amostra do estrago que o racismo estrutural provoca na vida de mulheres e meninas negras no Brasil e, mais ainda, no Ceará.

De acordo com Sílvio Almeida (2018),

O racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida.

Compreender o racismo como “um processo histórico e político” e o seu poder estruturador das relações de poder na sociedade é também fundamental para se enfrentar o problema da violência contra as mulheres e o feminicídio. Neste sentido, entendemos que não basta ter o conceito de patriarcado como chave. É preciso também entender como ele se imbrica e interage com o racismo (e o capitalismo), construindo relações sociais marcadamente desiguais.

 

Nossas meninas estão sendo assassinadas

Como dito anteriormente, no monitoramento realizado pelo FCM/AMB, iniciado em 2018, um dado que chamou a atenção foi o número expressivo de assassinatos de meninas no Ceará. Dentre os 461 homicídios de mulheres registrados em 2018, nada menos que 118 foram de meninas de 0 a 19 anos, o que representa 25,6% do total de mulheres assassinadas durante o ano[1]. Em janeiro, este percentual chegou a ser de 36,5% – 19 dos 52 casos naquele mês.

Do total de meninas assassinadas, 115 estavam entre 10 e 19 anos, representando 25% do total de mulheres assassinadas no estado. O aumento do assassinato de meninas nessa faixa etária, no entanto, vem crescendo desde anos anteriores. Segundo dados do Comitê Cearense de Prevenção aos Homicídios na Adolescência (CCPHA, vinculado à Assembleia Legislativa do Ceará), entre 2016 e 2017, houve um aumento de 196% no número de meninas de 10 a 19 anos assassinadas no estado, indo de 27 em 2016 para 80 em 2017. Já em 2018 o número seguiu crescendo, chegando ao total de 115 meninas de 10 a 19 anos mortas de “maneira violenta”. Isto representa um aumento de 43,75% comparado a 2017 e de 326% se comparado a 2016. Em, Fortaleza, os dados são mais alarmantes: o aumento do assassinato de meninas, entre 2016 e 2017, chegou 417%, indo de 6 (seis) para 31 meninas assassinadas, respectivamente. Em 2018 este número seguiu crescendo, tendo sido registrados os assassinatos de 59 meninas de 10 a 19[2] – quase o dobro (90,3%) do ano anterior. Mais uma vez, considerando o período de dois anos, comparando-se 2016 a 2018, registra-se que houve um aumento de 883,3% no assassinato de meninas só na capital cearense.

Em 2019, como já foi colocado, este número mais uma vez diminuiu expressivamente, tendo sido registrados 41 homicídios de meninas. Por outro lado, em 2020 o número voltou a crescer, e em apensas seis meses ultrapassou os casos de 2019, chegando a 46 meninas assassinadas. Somente em fevereiro de 2020, 13 meninas foram mortas de forma violenta no estado.

Esses dados deveriam, por si só, ser alarmantes, não só para os movimentos feministas, mas para toda a sociedade e, especialmente, para o Estado, que tem a responsabilidade de implementar políticas públicas que protejam a vida de crianças e adolescentes. No entanto, a postura do governo estadual do Ceará, em especial, da Secretaria de Segurança Pública, é tratar o assassinato de meninas como consequência do envolvimento destas com facções criminosas e com o tráfico de drogas.

Embora a ideia do envolvimento das meninas assassinadas no Ceará com o tráfico e facções seja uma hipótese plausível (e que deve ser explorada), isto não retira as características de feminicídio que marcam os seus assassinatos. Pesquisas realizadas em outros países, em contextos de conflitos entre facções (semelhantes aos que vêm ocorrendo no Ceará), comprovaram que há sim um viés de gênero e de misoginia por trás de mortes violentas de mulheres. A estudiosa sobre violência, Rita Laura Segato, foi uma das primeiras vozes a se pronunciar sobre esta questão. Segundo Dillyane de Sousa Ribeiro, em artigo intitulado As meninas e a necropolítica no Ceará[3], Segato afirma “que a morte, muito mais que uma função instrumental, exerce uma função expressiva. Isto é, mais do que servir para obter algo, a morte na maioria das vezes quer dizer algo”. Ribeiro complementa que ao estudar o contexto de Ciudad Juarez, no México, onde na década de 1990 ocorreu “uma série de assassinatos de mulheres jovens com um modus operandi marcado pela crueldade”,

(…) Rita Segato interpreta a função expressiva das mortes dessas mulheres, sobretudo, no âmbito da interlocução horizontal com os outros homens da frátria, com o grupo de pares, e com seus antagonistas. Segundo Segato, em Ciudad Juarez, matam-se mulheres para provar o pertencimento a um grupo e atacar os homens que as protegeriam. Na lógica que mata as mulheres, seus corpos são meros dejetos do processo.

Concordando com a análise de Ribeiro, ainda não se sabe “se a mesma tese se aplica à morte de meninas no Ceará”, mas nos casos levantados pelo Fórum Cearense de Mulheres/AMB, foi possível identificar muitas semelhanças, como o ataque direto ao “corpo feminino”, à feminilidade: a raspagem do cabelo das mulheres/meninas, a extirpação dos seios, o estupro coletivo, dentre outras violências, filmadas e divulgadas para que cheguem aos “inimigos” das outras facções – supostos “donos” das jovens assassinadas.

Neste aspecto, é igualmente importante a perspectiva ampliada sobre a tipificação do feminicídio exposta na publicação “Feminicídio: #Invisibilidademata”, do Instituto Patrícia Galvão[4], onde especialistas advogam pela identificação do menosprezo à condição de mulher também entre desconhecidos e não só nas relações íntimas. É este menosprezo ao feminino, à condição de mulher que marca o assassinato dessas meninas. Por isso se faz necessário e urgente que o Estado reconheça o feminicídio nesses casos e implemente ações para o seu enfrentamento. Além disso, não podemos deixar que a violência perpetrada contra essas meninas seja simplesmente mais um elemento da “necropolítica brasileira”, que, como coloca Ribeiro, inibi o luto público pela morte matada de mulheres e, por consequência, a capacidade de indignação diante delas. Para a autora, numa sociedade como a brasileira,

(…) marcadamente adultocêntrica e profundamente racista e misógina, as respostas oficiais apressam-se em regular o luto por sua perda ao afirmar que a maioria das mortes das adolescentes se deve ao “envolvimento com o tráfico”. [Com isso], Põe-se em circulação uma vez mais uma narrativa que culpabiliza a vítima por sua morte.

Neste sentido, é inaceitável que a SSPDS-CE siga colocando o assassinato dessas meninas na conta de um suposto envolvimento com “o tráfico de drogas, o latrocínio e disputa entre grupos criminosos” e que para combatê-los bastaria aumentar o número de delegacias do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Conforme colocou Rose Marques, no Relatório Cada Vida Importa (CCPHA, 2018), sobre o aumento no número de homicídio de meninas no Ceará, apesar do aumento contínuo da violência e da nova conjuntura nas dinâmicas das facções e dos territórios (sobretudo nas cidades, mas também no campo), não podemos perder de vista que “o corpo das mulheres ainda é matável” e que se trata de “algo que simbolicamente está ligado ao exercício de um poder”. Diante disso, se faz necessário investigar a fundo e procurar conhecer as histórias dessas meninas, para que se possam traçar políticas públicas focalizadas, pois, embora não tenhamos ainda dados precisos, é fundamental reconhecer que “essas mortes não ocorrem pelas mesmas razões das mortes dos meninos. O lugar das mulheres nessa conjuntura é de objeto”. Para Rose Marques, a falta de um olhar mais acurado, tanto para o lugar que as mulheres (na sua maioria, extremamente jovens) vêm ocupando nas novas dinâmicas das facções e dos conflitos nos territórios, como também para o fato de que essas dinâmicas são também marcadas por uma ordem machista, patriarcal e racista, prejudica qualquer possível intervenção pública para enfrentar o problema. É necessário, portanto, que o Estado mude a forma de olhar e, sobretudo, de tratar este problema.

Trecho do PNV 389 – Feminicídio: ontem, hoje, sempre? NUNCA!!!

[1] Destaque-se que, entre os 461 assassinatos registrados em 2018, pelo menos 28 não tiveram a idade da vítima identificada pela SSPDS. Dessas, pelo menos duas a pesquisa realizada pelo FCM/AMB identificou (nas notícias) se tratar de adolescentes. O que significa que o número de meninas assassinadas pode ser bem maior.

[2] Excluindo-se, mais uma vez, os casos não identificados.

[3] Disponível em: http://www.justificando.com/2019/01/16/as-meninas-e-a-necropolitica-no-ceara/. Acesso em 16 de jan. de 2019.

[4] Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2017/03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.pdf

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