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A importância do envolvimento das religiões com o campo político

A política é a forma mais sublime de caridade 

(Papa Pio XI, 1857-1939)

Nesta reflexão, a aproximação ao tema do envolvimento das religiões com a política tem viés cristão. Isso não exclui religiões não-cristãs, pois os valores evangélicos, como o amor e a liberdade, a compaixão e a misericórdia, a justiça e a solidariedade, o perdão e o cuidado da vida, são valores comuns a todas as religiões. Nem exclui pessoas ateias, pois há não-crentes que militam na política, também lutando por um mundo novo.

Nas religiões místicas de raiz indiana, como o Hinduísmo, o Budismo e o Taoísmo, busca-se essencialmente a verdade, adequando a vida de fiéis à vontade divina. A ênfase está na busca da comunhão com o divino no profundo da alma humana com vista à liberdade plena. Nessas religiões, a conexão com o mundo político não é imediata.

Diferente é com as religiões proféticas de raiz semita, isto é, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Nelas, a ênfase está no anúncio do plano divino ao mundo com compromissos éticos por meio de profetas. Aqui, sim, religião e política estão intimamente conectadas. Nesses dois tipos de religião, há muitos pontos de contato, bem como ênfases diferentes. Há também profecia no misticismo, como há mística no profetismo.

A religião de Israel tem como sua narrativa fundante a revelação do projeto religioso-político de libertação por parte de Javé a seu profeta Moisés: Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores, pois eu conheço as suas angústias. Por isso, desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que emana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. Agora, o grito dos israelitas chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei ao faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os israelitas. (Ex 3,7-10)

Como vemos, a religião de Jesus já nasceu com o envolvimento político na libertação de pessoas escravas. Não é por acaso que a liberdade é tão central no projeto do Reino de Deus. Eu sou Javé e vos libertarei da escravidão (cf. Ex 6,6). O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me para proclamar a libertação aos presos e a recuperação da visão aos cegos, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor. (Lc 4,18-19) A verdade vos libertará. Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. (Jo 8,32.36) É para a liberdade que o Messias vos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão. (Gl 5,1)

Mas, desde muito tempo, essa continua uma questão polêmica, como pudemos perceber na resistência de fiéis conservadores contra o tema da fome na CF-2023. Consideram-se apolíticos. No entanto, essa postura legitima a injustiça e esconde os interesses políticos deles. Até manipulam um dito de Jesus para justificar sua tentativa de afastar a fé cristã do compromisso político: Devolvei a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. (Mt 22,21) Imaginam que a religião deve ocupar-se exclusivamente de Deus e não da política.

Jesus, porém, vive e proclama o projeto do Reino dos Céus/de Deus e a sua justiça. (Mt 4,17; 6,33) Essa expressão é 100% religiosa, pois é de “Deus”. No entanto, é também 100% política, pois é um “Reino de justiça”. Portanto, “Reino de Deus” é um modelo de organização social (política) em que se vive relações de acordo com Deus (fé).

Não é por acaso que o segundo pedido do Pai Nosso é venha a nós o teu Reino. (Mt 6,10) Definitivamente o profeta da Galileia colocou a política na teologia, na religião. Também não será por acaso que Jesus colocou o pedido do pão nosso de cada dia (Mt 6,11) como pedido do meio em sua oração. Situou, portanto, a economia no coração da religião. Sem falar que o pedido seguinte é o perdão das dívidas

Voltemos, agora, a Mt 22,15-22. E o que era de César na Palestina? Eram o interventor Pôncio Pilatos, o exército e suas armas, o denário… Assim, Jesus se declara pela autonomia política dos povos, autônomos e livres de qualquer projeto imperialista. 

E o que era de Deus? O povo (Ex 19,5-6; Dt 7,6) e a terra (Lv 25,23; Dt 10,14). Assim, Jesus assume os gritos do povo por libertação, pois povo e terra que são de Deus, são povo e terra livres. Para Jesus, portanto, a função básica de qualquer Estado é estar a serviço de vida digna para seu povo em terra livre. 

Dizer, portanto, devolvei o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus é atitude política anti-imperialista, como igualmente é a passeata liderada por Jesus desde Betfagé a Jerusalém. Ele vem da periferia e é aclamado messias pacifista e libertador dos pobres no projeto do Reino (Mt 2,1-11).

Em razão da sua fé militante, Jesus foi preso, torturado e assassinado por soldados romanos. E isso com o apoio de autoridades religiosas.

No Cristianismo, esse conflito entre quem segue a Boa Nova de Jesus e autoridades religiosas, a grosso modo, acontece desde a aliança de bispos com os poderosos do Império Romano. A partir do quarto século, a maioria não é mais cristã por conversão, como adesão ao projeto da justiça do Reino, mas por tradição. E, como sabemos, não basta nascer em família cristã. Faz-se necessário decidir seguir Jesus, converter-se.

Essa adesão ao projeto da justiça do Reino é o que Paulo chama de “fé em” Cristo Jesus. Nossa fé é a resposta à graça amorosa de Deus oferecida a nós por Deus na fidelidade, na “fé de” Jesus até a Cruz. Na imagem de Ap 3,20, podemos perceber a “fé de” Jesus na sua vinda até nosso ser: Eis que estou à porta e bato. É oferta gratuita de Deus. Não é imposição. É doação. Pode-se aceitá-la ou rejeitá-la. Essa atitude de acolhida da graça é a “fé em” Cristo (cf. Gl 2,16). Ap 3,20 assim descreve essa experiência: se alguém escutar a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo. Há quem até ouve, mas nem todos escutam. É preciso oração silenciosa para escutar. Jesus entra em nossa vida se lhe abrirmos a porta de nosso ser. Ele não força. Respeita nossa decisão. Mas se abrimos, ele se sente muito à vontade. Vai direto para a mesa da ceia. E ceia é comensalidade, é comunhão de vida. Além de acolhida, essa fé é entrega confiante como resposta de gratidão pela graça misericordiosa ofertada por Deus Pai em Jesus. É adesão ao projeto do Reino. Essa fé é alimento que anima a esperança nas lutas. É força que nos impulsiona a fazer a vontade de Deus no mundo, para vivermos como “novas criaturas e revestidas de Cristo.” (Gl 3,27; 6,15; 2Cor 5,17) 

Fazer política é participação no projeto humano de construção de uma sociedade melhor. Os direitos ao pão e ao trabalho digno, à saúde e à educação não dependem da vida de fé na comunidade, mas são fruto de decisões políticas. Porém, esses direitos também são parte constitutiva de nossa fé. Essa é a ponte que liga fé e a participação política.

Há quem faça política na luta pelo bem comum, mas não tem fé. Porém, sua ética está fundamentada na justiça, nos direitos cidadãos, nas causas do povo. As pessoas de fé fazem a mesma política, movidas pelos mesmos fundamentos, porém, a partir da religião, em nome de Deus. Para elas, fé e política  complementam-se.

Num Estado laico, nenhuma religião pode impor seu credo a toda a nação, usando as instituições estatais para isso. A divisão da sociedade não se dá entre religiões,  entre crentes e militantes não-crentes. Ela se dá entre opressores e oprimidos. Por isso, crentes e não-crentes  unem-se na política voltada para a maioria e que realiza, na sociedade, os frutos do Evangelho que, segundo a Carta aos Efésios (livro para o Mês da Bíblia/2023), são a bondade, a justiça e a verdade (Ef 5,9). E é missão cristã não reproduzir a política dos poderosos: Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor. (Mc 10,42-43)

Os valores do Evangelho orientam a prática política de quem crê. A fé dá sentido a seu engajamento político, a fim de que todos tenham vida em abundância (Jo 10,10). Ao mesmo tempo, a vivência da fé na comunidade alimenta a prática cidadã. A religião não dá receitas bíblicas para a política. A solução para os problemas sociais é tarefa da política. Pela fé, crentes vivem na comunidade como novas criaturas. Pelo engajamento político, buscam democraticamente, junto a mais cidadãos, políticas públicas nos espaços civis de participação e mobilização. Usando mediações analíticas próprias da política, buscam superar as causas estruturais da fome e da miséria.

Quando, porém, a religião é usada pelos mercadores da fé através de mentiras e preconceitos, de intolerâncias e violências, a fim de legitimar um estado de opressão, então ela se torna, como diria Marx, ópio do povo.

Autor: Ildo Bohn Gass, biblista e autor de livros pelo CEBI.

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