via Projeto Colabora*
Com sementes trazidas em cada navio negreiro, o preconceito em relação aos africanos permanece até hoje. Mas isso está mudando graças ao esforço de pesquisadores
Num vídeo do projeto TED Talks, a escritora nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie analisou, tão irônica quanto brilhante, a percepção de uma colega de quarto americana sobre o fato de ela ter vindo da África para cursar uma universidade nos EUA:
“O que me impressionou foi que ela sentiu pena de mim antes mesmo de ter me visto. (…) um tipo de arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma história única sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa história única não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, em hipótese alguma”.
No vídeo de 2009, assistido por mais de 15 milhões de pessoas, Chimamanda alerta para um dos maiores males contemporâneos: o perigo da história única. Que não é uma prática de hoje. O continente africano e todas as nações que se desenvolveram por lá foram – e continuam sendo – vítimas da construção dessa história única na qual a África é percebida como se fosse um país e sua população observada com olhos repletos de paternalismo e piedade. Fruto dos quase 400 anos de tráfico de cativos para as Américas, durante os quais a palavra “africano” se tornou sinônimo de “escravo”.
A construção do estereótipo do “africano” como selvagem, gutural, animalesco e, portanto, passível de escravização é antiga. Já no século V a.C., o grego Heródoto de Halicarnasso garantia que os habitantes da Líbia (região onde hoje estão a Líbia, o Egito e o Sudão), chamados de “etíopes”(homens de cara preta), eram negros por causa do calor, inferiores e bárbaros se comparados com outros povos, incluindo os antigos egípcios. O greco-egípcio Ptolomeu não ficou atrás. No século II d.C. somou um quê de “determinismo geográfico” às características dos povos africanos conhecidos até então. Para ele também o calor intenso causava deformações físicas e só os mais adaptados, ou seja, os mais pretos e disformes, eram capazes de sobreviver em regiões tão hostis.
Houve exceções. Os egípcios, reinando absolutos num passado longínquo entre o século XXXII a.C. e o século I a.C., são estudados e retratados até hoje como uma das civilizações mais complexas da história da humanidade. Além deles, os cartagineses, conhecidos também como púnicos, também tiveram seu lugar sob o sol da história sem serem taxados de trogloditas. Foram reconhecidos por estabelecerem uma organização social, política e militar sem precedentes no norte da África, entre os séculos IX a.C e II d.C. No caminho para se tornar império, Roma precisou, primeiro, derrotar civilização cartaginesa nas Guerras Púnicas.
Ao longo da Idade Média, à visão de Heródoto e Ptolomeu somou-se o mito camítico, ou seja a crença de que todos os habitantes do continente seriam descendentes de Cam, filho proscrito de Noé, que amaldiçoou toda a linhagem a ser serva dos servos dos outros irmãos. É fácil entender por que o mito camítico ganhou impulso a partir da virada do século XV para o século XVI, quando o comércio de escravizados africanos para as Américas se estabeleceu. Afinal, era preciso justificar uma escravização em massa, que não era fruto de guerras ou conflitos, aos olhos dos rígidos 10 mandamentos judaico-cristãos.
O escritor e poeta palestino Mourid Barghouti, um dos maiores combatentes do que ele chama chama de “asfixia social e moral” das minorias, defende que a indústria cultural tem o mesmo poder de criar narrativas que supervalorizem as características de determinados cidadãos ou povos, como também pode aprisioná-los dentro de estereótipos duradouros. Barghouti propõe um exercício bem simples de semiótica: imaginar a história das Américas começando com o movimento de sedentarização das sociedades indígenas por aqui e olhando o europeu como um invasor vindo do alto mar.
A história da África que aprendemos nos bancos escolares começa sempre com a escravização e a venda das populações negras no litoral das Américas. Assim como eu, muitas crianças entre os anos de 1970 e 2000, aprenderam que os “negros escravos” eram “preguiçosos” e “indolentes”. O que não aprendemos é que eles eram despejados no Brasil já despidos de qualquer identidade: perdiam suas famílias, davam voltas em torno das “árvores do esquecimento” para deixarem para trás seus passados como pessoas livres, tinham seus nomes e suas religiões “apagados” para serem batizados e ganharem nomes cristãos, tudo isso antes do embarque nos navios negreiros – os tumbeiros.
Mas e se começássemos a história dos povos e do continente africano a partir do Egito Antigo ou do surgimento da civilização cartaginesa? E se pudéssemos iniciar a história da África a partir das complexas organizações estatais, sociais e religiosas dos reinos Zulu, de Merina, do Gana ou do Congo? Ou mesmo começando pela ascensão e queda dos impérios de Axum, de Songhai, do Mali, Monomotapa ou Amorávida? Todos mais desenvolvidos do que boa parte da Europa feudal.
Como a história única do continente africano foi construída a partir da captura, escravização e venda de seus povos, todo e qualquer protagonismo foi reduzido às relações comerciais entre os africanos que escravizavam e vendiam seus vizinhos e os europeus e americanos que trocavam cativos por armas, munições, ferramentas, tecidos, tabaco e cachaça ou rum. O embaixador Alberto da Costa e Silva, integrante da Academia Brasileira de Letras e um dos mais importantes africanistas do país, afirma que “os historiadores brasileiros sempre viam a história das relações Brasil-África com o continente africano figurando como fornecedor de mão de obra escrava para o Brasil, como se o africano que era trazido à força nascesse num navio negreiro”.
A escravidão nas Américas teve um componente ainda mais cruel: a “racialização” do escravizado e de seus descendentes. Ao contrário do que acontecia no império grego, romano, axumita ou de Canem, os ex-cativos e seus descendentes tinham a possibilidade de esconder seu passado, pois não havia como distinguir apenas pela aparência quem era cativo, quem era liberto e quem era senhor. Isso dava a possibilidade de recomeçar a vida sem ser taxado de ex-escravo. Aqui nas Américas isso não foi possível. A palavra “escravo” se tornou sinônimo de “negro”. O componente racial se tornou ingrediente das práticas segregacionistas, discriminatórias e humilhantes da população afrodescendente brasileira. Fossem escravos ou libertos. Em qualquer das condições, nunca puderam se integrar plenamente por causa da cor da pele e por causa da história única que vinha agregada a ela.
Essa história única criou estereótipos em ambos os lados do oceano Atlântico e naturalizou imagens e percepções que não foram questionadas, entendidas em seu contexto e superadas. Os preconceitos e a segregação ficaram parados onde sempre estiveram durante quatro séculos.
Porém, a situação vem mudando. Alberto da Costa e Silva lembra que “poucas áreas do conhecimento histórico experimentaram, nos últimos cinquenta anos, avanços tão expressivos quanto as dedicadas à escravidão nas Américas e ao tráfico transatlântico de escravizados”. Essa afirmação está no prefácio do recém-lançado “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, que por si só já é prova disso com 50 verbetes e mais de 500 páginas. Um esforço que se une ao de Nei Lopes, Clóvis Moura, Mary Karasch e tantos outros “dicionaristas” da história africana e da escravidão brasileira em dar nome e contexto às populações que atravessaram o Atlântico, até então, vistas e percebidas como uma massa única de “mercadorias”.
Novas camadas vêm sendo acrescidas nesse mosaico histórico pelo simples resgate de fatos e situações. Como, por exemplo, a recente descoberta da pesquisadora Flora Thomson-Deveaux de que o famoso restaurante Calabouço, onde o estudante Edson Luis foi morto durante a ditadura militar, foi realmente um local de castigos e sevícias de escravos, bancada pelo Estado. Descoberta feita enquanto ela traduzia para o inglês o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, do escritor afrodescendente Machado de Assis. Uma citação fortuita no texto, discreta e nunca pesquisada com o devido cuidado, a fez destrinchar um novelo que revelou a existência dessa casa pública onde os escravos poderiam ser punidos “porém com reserva e humanidade”. Uma casa de terceirização dos açoites para manter leves e limpas as mãos e as consciências dos senhores de escravos do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX.
O que falar, então, de duas importantíssimas bases de dados, acessíveis a qualquer curioso ou pesquisador: a Trans-Atlantic Slave Trade e a Slave Biographies? A primeira, fruto da junção das pesquisas de David Richardson e David Eltis, é uma extensa compilação de informações e dados a respeito das etnias africanas escravizadas e vendidas para a Europa e para as Américas. A segunda, reúne informações sobre as identidades de pessoas escravizadas que desembarcaram no Maranhão e na Louisiana. Essa base de dados contém informações sobre os nomes, as etnias e as habilidades de cada escravizado desembarcado nessas cidades. É o trabalho de uma vida da pesquisadora octogenária Gwendolyn Midlo Hall, que só em 2017 teve o importante livro “Escravidão e Etnias Africanas nas Américas: Restaurando os Elos”, lançado no Brasil.
Vivemos uma época em que a História vem sendo visivelmente questionada. Heróis antes esquecidos, ou relegados a segundo plano, estão sendo redescobertos, reconquistando seus lugares de direito. Mourid Barghouti diria que começar a história da abolição dos escravos no Brasil a partir da promulgação da lei Áurea – e alçando a princesa Isabel como protagonista inquestionável – é uma história única já caduca que está sendo deixada para trás. A verdade histórica da abolição começa com o resgate de vários heróis negros escondidos ou forçados ao esquecimento. Isso porque, com exceção do Haiti, liderado pelos escravizados Toussaint Louverture e Jean Jacques Dessalines, em nenhuma outra região do planeta os escravos ou ex-escravos conseguiram eles mesmos abolirem a escravidão. Aos poucos, nomes como os de Antônio Rebouças, André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio, Tobias Barreto, Francisco José do Nascimento (o Dragão do Mar), Francisco de Paula Brito (pai da imprensa negra brasileira, fundador do jornal “O Homem de Cor ou O Mulato”) e tantos outros estão saindo da sombra projetada pela princesa Isabel e ganhando notoriedade.
A própria circunstância em que a abolição foi assinada, justificada e divulgada vem sendo alvo de um “alargamento” de contexto. Na verdade foi uma libertação sem amparo, distribuindo carência e carestia. Como a vivida pelo o ex-escravo Sabino, personagem principal de “Banzo”, conto do caboclo Coelho Neto publicado em 1913. Nele, o liberto Sabino conta suas desventuras a partir do momento em que o antigo senhor, nhô Roberto, o expulsa da fazenda no dia da abolição: “Que fosse pro inferno! Estava livre! Os canalhas que o sustentassem”. A partir daí, o homem livre Sabino passa a viver de caridade sem qualquer amparo e mendigando à saída da estação de trem. Sabino, então reflete: “Liberdade… pois sim! Gente anda morrendo à toa! Urubu é que gosta!”
O preconceito e o racismo estruturais e sociais de hoje têm suas sementes trazidas dentro de cada navio negreiro, na alma de cada homem livre capturado, escravizado e enviado para as Américas. A naturalização da segregação e o desrespeito às manifestações culturais e religiosas dos afrodescendentes estão diretamente ligadas à maneira perversa com a qual a liberdade foi concedida aos escravos: sem garantias de poder exercê-la com dignidade. Também tem a ver com a ignorância seletiva a respeito do outro, um processo oposto ao da empatia. Afinal, o que explicaria a motivação do dono de um restaurante em São Paulo em batizar seu empreendimento, em pleno século XXI, de Senzala? Ou a iniciativa de uma empresária paraense em dar à filha uma festa de 15 anos na qual ela pudesse viver “um dia de sinhá”, sendo servida e pajeada por atores contratados para agir como escravos.
Resgatar os heróis abolicionistas, recuperar narrativas como a de Bonzo, revisar e revisitar criticamente nossa própria história são passos importantes para entender que o passado está intimamente ligado ao presente. Há pouco mais de 15 anos, as escolas brasileiras foram obrigadas a oferecer aulas sobre as culturas africanas e afro-brasileiras. A Lei 10639 vem sendo responsável por apresentar novas perspectivas e novos protagonistas negros a uma juventude sedenta de heróis que a represente.
Uma história única do passado gera os estereótipos do presente. Como no poema “Pobre Menino Preto” do escritor e ativista Oliveira Silveira, um dos idealizadores do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra.
Pobre menino preto
brincando com a turmaSe imagina mocinho
não colaOs mocinhos são brancos
como os outrosSe imagina tarzã
se pendura no galho
não colaPorque eles o imaginam
chita
macaco
chimpanzé
orangotangoNão pode brincar de Zumbi
ou Toussaint Louverture
porque são heróis de verdade
que ninguém conhece
nem ele mesmo nunca ouviu falar.
–
Texto de Alexandre dos Santos, Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter de jornal impresso e atualmente é jornalista de TV e professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. E-mail: [email protected]. Instagram: @alsantos72. Publicado pelo projeto Colabora, 10/07/2018.
Foto de capa: Gravura do século XIX mostra a posição dos escravos nos navios negreiros: despidos de qualquer identidade. Reprodução Costa/Leemage/AFP