via Portal das CEBs*
Ronilso Pacheco faz uma análise sobre a violência racial a partir da proposta da CF 2018
Talvez o que podemos realmente fazer enquanto igreja, para contribuir com a construção de uma cultura onde a violência não tenha mais lugar central, seja onde exatamente nossa posição nos cabe: nós podemos inviabilizar a sacralização da violência, que passa pela divinização do sangue.
Uma contribuição importante da chamada Teologia Negra nos Estados Unidos foi denunciar o lugar central que a crucificação de Jesus tinha para o cristianismo. Neste lugar central, a cruz sempre teve um papel de relevância como um símbolo de sacrifício máximo, ao qual Jesus se submete (quase) voluntariamente. A compreensão equivocada da narrativa do “esvaziamento” de Jesus contida em Filipenses 2, transformou a crucificação em um auge do ministério de Jesus. O sacrifício foi necessário, e, como tal, perde a força de sentido como um instrumento de tortura e morte usado pelo poder, pelo Império, pelo estado, pelas autoridades, políticas, militares e religiosas para punir, constranger, eliminar, intimidar, executar e (consequentemente) fazer sangrar sujeitos considerados “ameaças”, corpos e presenças que eram um risco para a “ordem social”.
A Teologia Negra comparou a crucificação de Jesus ao linchamento de negros na sociedade racista e segregacionista dos Estados Unidos dos anos finais do século XIX e primeira metade do XX. Se, em algum momento da narrativa bíblica, o Deus de “perfil guerreiro” desaparece, condena o derramamento do sangue inocente e desagua na pessoa de Jesus de Nazaré como o Deus que é todo amor, com profunda ênfase na misericórdia e no perdão, deveria desaparecer nossa linguagem violenta sobre Deus (o “general”, o “Senhor dos Exércitos”, aquele a quem “a vingança pertence”, que recorre “a vara” para a correção, o Deus da “ira implacável”, aquele cuja ira “devorará os ímpios), dando lugar a compreensão plena do Deus que escolhe ser definido como amor.
No entanto, o sangue continua tendo lugar central na nossa cultura cristã, e, muito por isso, a compreensão da violência como recurso possível não nos deixa em paz. Se o sangue é necessário, a violência que provoca o seu derramamento também passa a ser. Tudo o que temos visto no comportamento social de nossas cidades, como o Rio de Janeiro, é a violência ocupar o lugar central. Tão central que a ideia de segurança pública passou a se resumir única e exclusivamente a “gestão da violência”.
A segurança pública deixou de ser a oportunidade que o público (a população, todas e todos) deveria ter de ter acesso a paz, aos bons tratos, aos serviços que funcionam para si e para os outros, de não ser coagido pelas necessidades extremas e nem pela pressão de ter mais e mais numa cultura social que prioriza o consumo e o privilégio. A segurança pública resume-se agora a “gestão da violência”.
Com efeito, espera-se que a violência sirva para punir violentos e ameaçadores de violência. Vai do linchamento do infrator que furtou o celular até as operações policiais que precisam dar como “saldo positivo” para a sensação de insegurança (seja lá o que for isso) a apresentação dos corpos pretos e pobres, devidamente incriminados, para que todos possam saber que acabamos de ter um criminoso a menos, um traficante a menos, um vagabundo a menos. A cultura do sangue derramado se espalha mesmo onde sangue (ainda) não foi derramado. Ter uma comunidade ocupada pela presença ostensiva de militares do Exército não é apenas a militarização da vida cotidiana, é o recurso da violência das armas que indicam que, a qualquer movimento estranho, o sangue será derramado.
Não há (e nem pode haver) poder no sangue. Nossa política pública de segurança, a resposta do poder para a violência, a ocupação dos territórios precarizados e desassistidos; a criminalização prévia dos corpos pretos e pobres; a militarização da vida cotidiana; as estratégias de auto defesa que clamam pelo porte de armas; a espetacularização midiática da violência que espalha mais medo e influencia nas respostas de soluções fáceis das autoridades visando calar a opinião pública; a circulação de armas nas favelas; o inacabável comércio de drogas ilícitas rodeado de violência e crueldade; as crianças que pulam corpos a caminho da escola.
Tudo está manchado de sangue. Tudo na sociedade está atravessado pelo sangue, e a igreja é uma voz que poderia desmistificar o sangue deste lugar simbólico sacrifical que é capaz de produzir algo de valor. Não pode.
Se continuar afirmando que há poder “no sangue de Jesus”, continuaremos abrindo margem suficiente para que os métodos usados para fazer Jesus sangrar até a morte tenha tido alguma utilidade para os planos de Deus. O que é o mesmo que dizer que Deus usa as mesmas armas da estrutura da morte, para vencer a morte. E até onde sabemos, na narrativa dos Evangelhos, a morte é vencida com a ressurreição. A cruz é arma do Império. A ressurreição é resposta de Deus, para dizer que a vida deve sempre vencer.
E, sejamos sinceros, com quem o corpo de Jesus se parecia na hora da morte. Sua pele escura, sua condição social precária, seu território pobre e militarmente ocupado, sua ascendência de um povo marcado pela escravidão, punido, sem oportunidade, sem justiça, vítima do medo e do desprezo. Isto mostra que, na cultura do sangue derramado e da violência (socializada e institucionalizada), raça, classe e gênero continuarão sendo sempre os fatores decisivos para definir aqueles e aquelas cujo sangue continuarão a jorrar. E é por isso que precisamos denunciar este ciclo, desmistifica-lo. Não há poder no sangue.
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Fonte: Texto de Ronilso Pacheco para o Portal das CEBs, 07/03/2018.