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A não-violência e o amor aos inimigos – José Comblin

A não-violência e o amor aos inimigos – José Comblin

 (Reflexões com base em Mt 5,38-48 e  Lc 6,27-37)

O presente artigo é desenvolvido de forma mais ampla no livro Ser é poder. Organizada por Luiz Dietrich, a obra inclui as contribuições de Sebastião Gameleira (Somos poder), Edênio Valle (Dimensões psicológicas nas relações de poder) e Selvino Hech (A cidadania e a questão de poder). Pedidos para [email protected]


“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam…”

 

A não violência e o amor ao inimigo são, com certeza, as maiores características dos discípulos de Jesus e, também, as mais discutidas. Foram, muitas vezes, entendidas de forma errada ou negadas, com força, não somente por não-cristãos, mas também por cristãos que querem tornar a mensagem de Jesus mais aceitável. Nietzsche considerava essa doutrina uma moral de escravos e a entendia como uma reação de rancor e ressentimento de derrotados que não querem enfrentar a situação. Seria a expressão da covardia. Claro está que ela pode ser invocada por pessoas que realmente são covardes e querem legitimar a covardia. No entanto, quando se tomam os textos no seu sentido original, não se trata de covardia. Cabe a cada um de nós e a cada comunidade examinar como essa doutrina se aplica nos conflitos da vida cotidiana.

 

O lugar social do amor ao inimigo e da renúncia à violência

 

No texto de Mateus (Mt 5,38-48), o contexto mostra que o texto convém no quadro das comunidades depois da guerra da Judéia (66-70). A derrota dos judeus foi completa. Estava tudo arrasado, as comunidades de Mateus, ligadas ao judaísmo, podiam sentir-se totalmente esmagadas. O que fazer, o que pensar ou sentir nessa oportunidade? O inimigo está triunfando, e desapareceu toda esperança de resistência. “Nessa situação de opressão, o texto de Mateus expressa a consciência da possibilidade de agüentar a situação com amor ao inimigo e renúncia à violência e, assim, estar em superioridade quanto aos adversários, os gentios. Olhar para eles torna-se compreensível no seguinte raciocínio: Há uma diferença entre olhar [para baixo] para aqueles aos quais, de qualquer modo, se é superior e entre o fato de a pessoa subjugada preservar a sua honra, sabendo-se interiormente superior ao vencedor. A idéia de um Deus que está acima do bem e do mal permite suspeitar que essa postura seja um ressentimento”.

Como textos que constituem esse contexto de um povo subjugado, citamos Mt 5,41 que se refere às prestações de serviço obrigatório impostas pelos soldados como serviço ao estado; também Mt 5,39 com os quatro exemplos de reações não-violentas, o que se explica diante do desastre do ano 70; também a comparação entre Mt 5,44 e 5,9.

Há duas particularidades no texto de Lucas (Lc 6,27-37). A primeira é a representação de uma sociedade urbana em que as relações de reciprocidade são comuns e respondem a uma ética tradicional. É preciso tratar os outros sem ódio se queremos ser tratados sem ódio. Essa regra de ouro, a regra da reciprocidade, já era comum entre os filósofos gregos. Não é novidade cristã.

A segunda particularidade é a grande insistência de Lucas no dinheiro. O princípio geral é : “Dá a todo o que te pede”. Perdoar é perdoar a dívida, não cobrar a dívida (Lc 6,37-38). Aqui o inimigo é o devedor. Amar o inimigo é perdoar a dívida.

Dessa maneira, tanto Mateus como Lucas aplicam as palavras de Jesus a casos particulares, dando-lhes sentidos bem específicos. Eles não inventaram as palavras de Jesus. Receberam-nas de uma tradição comum. Essa mesma tradição deriva de Jesus. Como saber o que havia na tradição comum e o que o próprio Jesus pensava?

 

 A tradição primitiva dos textos e o pensamento de Jesus

O estudo dos textos insinua que a tradição comum dos ditos vem da Palestina antes da guerra. O grupo que mais freqüentemente se refere aos ditos seriam os missionários itinerantes. Eles são os que vão encontrar ladrões no caminho. As alusões ao sol e aos lírios provêm  de pessoas que andam pelo campo. A falta de preocupação com comida e bebida também se refere a missionários itinerantes. O mesmo vale para a alusão às perseguições. Uma vez perseguidos, os missionários vão para outro povoado. Tudo se aplica muito bem às condições de vida dos missionários itinerantes.

Cabe-nos fazer a aplicação a nós mesmos, que, de modo geral, não somos missionários itinerantes (ainda que haja alguns).

A condição de missionário itinerante combina bastante bem com a condição do próprio Jesus. O amor ao inimigo deriva de Jesus e também a negação da violência. Os missionários itinerantes aprenderam esses temas de Jesus, da sua conduta e dos seus ditos.

A não-violência não é pura novidade de Jesus. Ele mesmo pôde inspirar-se em fatos da história de Israel. Por exemplo, no ano de 26/27, quando Jesus estava prestes a começar o seu ministério, houve um incidente esclarecedor na Judéia. Pilatos, assumindo o governo na Judéia, quis levar imagens de César para dentro de Jerusalém. Para os judeus, eram ídolos. Foi um alvoroço em Jerusalém. Milhares de judeus foram ao palácio de Pilatos em Cesaréia. Lá, de joelhos, ficaram cinco dias e cinco noites sem mover-se do lugar. Pilatos acabou permitindo que entrassem no palácio. Ele mandou cercar os judeus com três fileiras de soldados. Mesmo assim, os judeus negaram-se a aceitar as imagens. Pilatos descontrolou-se e os ameaçou de morte. Ordenou que os soldados sacassem suas espadas. Os judeus deitaram-se lado a lado no chão, ofereceram seus pescoços e gritavam que preferiam morrer a transgredir as leis dos pais. Profundamente impressionado, Pilatos ordenou que as imagens fossem retiradas de Jerusalém. Jesus devia conhecer esse fato ocorrido poucos meses antes que ele mesmo começasse a sua missão. Ali ele tinha um exemplo de não-violência, e, nesse caso, a não-violência tinha sido vitoriosa.

Jesus generalizou esse comportamento e definiu o amor aos inimigos em geral. O mandamento é geral. Não leva em conta as circunstâncias particulares, nem a eventual eficácia. Depois dele, os cristãos procuraram adaptar o mandamento às novas circunstâncias. Vieram os missionários itinerantes que tiveram um papel importante na transmissão dos ditos e fatos de Jesus. As comunidades de Mateus aplicaram os ditos à situação dos judeus esmagados pela guerra. As comunidades de Lucas relacionaram-nos com os problemas econômicos das cidades gregas, sobretudo com o problema fundamental das dívidas.

Agora o problema é nosso. Quais são os casos em que somos chamados a aplicar os mandamentos da não-violência e do amor aos inimigos? De que maneira se faz a aplicação?

Do mesmo autor: As cartas de Paulo 

 

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