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Entre as Terras e as Águas

via Marcos Monteiro*

O culto da manhã é o programa de auditório dominical que não gosto de perder. Uma mistura de espetáculo e liturgia, de apresentação e interação, de homilia e conversa, em que oração, Bíblia, cânticos evangélicos, ou ecumênicos ou populares, podem se encontrar em uma proposta de evangelho que subverte lógicas e limites.

O local é o templo da Igreja Batista do Pinheiro. Wellington e Odja, pastor e pastora, têm carisma pessoal, conhecimento bíblico-teológico, compromisso pastoral e habilidade comunicativa suficientes para um projeto de enriquecimento familiar, em uma sociedade onde a religião é mercadoria cada vez mais lucrativa.

Mas optaram por um compromisso radical, visão teológica em que as vítimas de um sistema capitalista perverso são as prioridades da ação evangelizadora. Desse modo, o acolhimento a homossexuais, a solidariedade com a população de rua, a aproximação com o movimento dos sem-terra, uma pastoral feminista e uma pastoral da negritude, direcionam sua agenda, presença solicitada nas diversas lutas por direito da cidade de Maceió, Alagoas.

E o direito premente é a sobrevivência, direito elementar a chão, problema que ameaça todo um bairro, fissuras e rachaduras distribuídas por ruas, casas e apartamentos, sinal de fendas geológicas dispostas a abalar solo e subsolo. A extração sistemática de blocos de sal-gema, por cerca de quarenta anos, é apresentada como a possível causa maior dessa ameaça. Os sentimentos vão da insegurança ao pânico, e o êxodo aconselhado dos moradores já começou, até porque a temporada de chuvas já foi iniciada, provocando alagamentos na superfície e danos presumidos na estrutura geológica mais profunda.

Os moradores se sentem sem chão debaixo dos pés e as fissuras geológicas causam abalos psicológicos e rachaduras existenciais severas. Novamente, a força devastadora do Capital transforma em mercadoria de consumo solo, subsolo e vidas, mas os cultos precisam acontecer em meio a todo esse caos.

O de domingo passado evitou a tentação de vender amuletos e bênçãos de proteção e se tornou preparação pessoal e coletiva para a mobilização para uma luta que é de todas. Passeata de fiéis de todas as religiões, conclamação para a presença nas reivindicações junto ao poder constituído, regularização de propriedades visando reparações públicas e privadas, foram anunciadas. E houve as orações, os cânticos, as prédicas, em animada e fortalecedora celebração.

No meio à crise em que todas nos encontramos, demissões, doenças, depressão, causadas pelas fissuras políticas e econômicas provocadas pelo Capital, não mercadejar a fé significa participar solidariamente dos sofrimentos das vítimas e, no caso do pastor e pastora, ter seus salários atrasados. Salário de trabalhador, desses que não conseguem enriquecer ninguém.

Participei do culto com as imagens de solo, subsolo e chuvas na cabeça, terra e água, essa mistura de que é formada a estrutura do nosso planeta. Estava encantado pela música, conduzida com técnica e sentimento. E lembrei de repente do filme “Titanic”. O templo da Igreja Batista é muito belo e pode afundar com o bairro, como o famoso navio.

O que fazer? No filme, em meio ao pânico provocado pela colisão com o iceberg, a orquestra resolveu continuar tocando, até o fim. Outros lutaram para salvar os mais vulneráveis, alguns abriram as grades que separavam viajantes de terceira classe, dando-lhes oportunidade de resistir e o protagonista do filme, o mocinho, segurou a mão da amada em um bote salva-vidas até morrer congelado. Ela sobreviveu. E muitas e muitos outros.

Então, se a terra ameaça desabar e as águas avançam sobre o nosso barco, cantaremos. E oraremos, e estudaremos os nossos mais preciosos textos bíblicos, e lutaremos de mãos dadas. E amaremos até o fim, e o amor vai sobreviver para que outras embarcações continuem singrando os mares, desmoralizando tempestades e icebergs.

Publicado originalmente no blog do autor.

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