De costas para o povo, os gestores ignoram impactos nas economias locais e amedrontam os incautos com projeções nada confiáveis
Michel Temer e sua equipe não têm medido esforços e recursos públicos para convencer a população da necessidade de sua draconiana reforma da Previdência. Bancadas pelo Erário, as peças publicitárias alarmistas do governo federal, suspensas pela Justiça na quarta-feira 15 por não terem caráter educativo ou informativo, como exige a Constituição, parecem produzir um efeito contrário ao desejado. No mesmo dia, dezenas de milhares de manifestantes foram às ruas em 22 capitais para protestar contra o projeto do peemedebista.
Em São Paulo, a Avenida Paulista foi fechada por manifestantes, mais de 150 mil, segundo estimativas da Central Única dos Trabalhadores. Nem mesmo a paralisação do Metrô, com transtornos à mobilidade na capital paulista, diminuiu o apoio popular.
Na Estação Jabaquara, zona sul da cidade, os metroviários chegaram a ser aplaudidos. Entre os presentes nos protestos houve até quem trajasse camisas verde-amarelas, símbolos das manifestações contra Dilma Rousseff.
Ao contrário do congelamento dos gastos públicos por 20 anos, projeto aprovado sem muita resistência no fim do ano passado, a insatisfação com as mudanças nas regras da aposentadoria, demonstrada nas ruas, evidencia o distanciamento entre a classe política, aferrada a catastróficas (e suspeitas) projeções de déficit no setor, com os trabalhadores, cada vez mais cientes de que chegarão à velhice sem a devida proteção da Previdência.
Temer acusou o golpe. No dia das manifestações, admitiu que a reforma poderá passar por “uma ou outra adaptação”. Ameaçou, porém, sacrificar o salário dos trabalhadores. Sócio de uma distribuidora de combustíveis a figurar na lista de devedores do INSS, o relator da reforma da Previdência na Câmara, Arthur Maia (PPS), manteve-se inflexível: disse que os atos “não mudam absolutamente nada” na tramitação da proposta.
Desde que assumiu o Ministério da Fazenda, Henrique Meirelles prega o “colapso” da Previdência sem uma reforma drástica. A proposta do governo iguala as exigências para trabalhadores rurais e urbanos, homens e mulheres: mínimo de 65 anos de idade e 25 anos de contribuição. Ou 49 anos de trabalho contributivo para ter acesso à aposentadoria integral.
Em novembro de 2016, Meirelles disse que as despesas do setor atingiriam 17,5% do PIB em 2060. Não deu uma explicação plausível para o número mágico. Não é de hoje que o governo federal tem o hábito de subestimar as receitas e superestimar o déficit em suas projeções para o setor, como veremos adiante.
Embora os atos de resistência à reforma tenham se concentrado nas capitais, o impacto das mudanças propostas pelo governo promete ser ainda maior para a economia dos pequenos municípios.
Segundo dados levantados pelo site Compara Brasil a pedido de CartaCapital, em quase um terço das cidades brasileiras, o pagamento de aposentadorias, pensões e outros amparos assistenciais, como o Benefício de Prestação Continuada, supera a receita corrente das prefeituras.
Município de 12,4 mil habitantes, Santa Mariana, no Paraná, surge no topo da lista das cidades onde os repasses previdenciários têm maior peso que a arrecadação local. Em 2015, os pagamentos da Previdência superaram em mais de oito vezes a receita corrente do município paranaense. Na lista das dez cidades onde a dependência da Previdência se mostra mais radical, apenas uma delas possui mais de 50 mil habitantes.
O debate sobre o peso da Previdência na economia dos municípios reforça a distância entre as planilhas e os interesses da população. Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios, diz apoiar “incondicionalmente” a reforma de Temer pelo impacto positivo que ela gerará para o caixa das prefeituras. “Como cidadão, pode-se até ter outra opinião, mas para os gestores a reforma é muito importante.”
Segundo Ziulkoski, o beneficiário gasta em consumo, mas as prefeituras não recolhem Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. “Esse consumo não tem qualquer impacto sobre o Erário do município”, diz. “Quase um terço do caixa das cidades é destinado ao pagamento da Previdência. Se reduzirmos para 25%, haverá mais recursos para investimentos e para estimular a retomada da atividade econômica.”
Para diferentes especialistas consultados por CartaCapital, não faz sentido falar em volta do crescimento com diminuição do poder de compra da população. “O maior patrimônio do País são os 205 milhões de brasileiros. É um mercado interno poderoso, principalmente num momento de crise como o de agora, no qual há retração da economia mundial”, observa Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma. “Achatar o salário mínimo, cortar aposentadorias e benefícios do BPC significa destruir o mercado doméstico.”
Um estudo liderado pelo economista Marcelo Neri, ex-presidente do Ipea, divulgado em 2013, por ocasião do aniversário de dez anos do Bolsa Família, revelou os efeitos macroeconômicos das transferências da Previdência e Assistência Social.
Para cada real investido na Previdência em 2009, 65 centavos retornavam à economia pelo consumo das famílias, e pouco mais de 50 centavos eram incorporados ao PIB. No caso do BPC, que contempla os idosos mais pobres, o efeito multiplicador era maior. Para cada real transferido, agregava-se 1,32 real no consumo final e 1,19 real ao PIB nacional.
O Mito da reforma
Uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, publicada em 2016, destaca o efeito redistributivo da Previdência no campo. “Mais de dois terços do valor total dos benefícios rurais foram destinados a municípios de até 50 mil habitantes, o que significou uma injeção de 5,6 bilhões de reais na economia dessas pequenas cidades em janeiro de 2016”, alertam os autores, Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza.
Nada disso parece sensibilizar os gestores das três esferas de poder, mais preocupados com os caixas que administram. As previsões do governo federal são, porém, alvo de fortes contestações. O livro A Previdência Social em 2060: As inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro, recém-lançado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip), expõe uma série de imprecisões nos cálculos feitos nos últimos 15 anos, além de revelar as falsas premissas utilizadas pela gestão Temer ao estimar o déficit do setor.
Na obra, organizada pelos economistas Claudio Castelo Branco Puty, da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Denise Lobato Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os autores fazem um estudo comparativo entre o resultado esperado nas projeções para a Previdência presentes nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) desde 2002 e o que foi efetivamente realizado. Em vários anos, as receitas são subestimadas e os déficits, superestimados.
A LDO de 2004, para citar um exemplo, projetou receita 146 bilhões de reais inferior para 2012. Da mesma forma, previu 170 bilhões a menos em 2013, 192 bilhões inferior para 2014 e 155 bilhões menor em 2015. Distorção semelhante verificou-se na projeção de despesas, mas em escala menor.
Ao cabo, o déficit projetado foi muito maior do que o verificado na realidade. Superestimou-se a necessidade de financiamento do Regime Geral da Previdência Social em 26,4 bilhões de reais para 2012, 22,1 bilhões para 2013 e 19,9 bilhões de reais para 2014. Apenas a previsão para 2015 ficou próxima da realidade.
De modo geral, as distorções persistiram até a LDO de 2012. Uma exceção à subestimação foram as projeções de receita para o ano de 2015 verificadas nas LDOs de 2013 em diante, quando ocorre superestimação, por conta da desaceleração econômica iniciada em fins de 2013.
“À parte o alto grau de erro estatístico gerado por projeções de longo prazo, agride-se frontalmente a boa-fé dos cidadãos brasileiros”, diz o economista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colaborador da obra.
Na LDO de 2017, com projeções para a Previdência até 2060, os autores identificam uma série de erros no tratamento das variáveis do mercado de trabalho. Elas foram consideradas constantes com base no cenário de 2009, ano de grave retração em razão dos impactos da crise internacional.
Reforma pra quem?
As manobras suspeitas não param por aí. De 2020 em diante, o modelo fixa o reajuste do salário mínimo em 6,09%, muito acima dos 3,5% previstos para a taxa anual de inflação (INPC) e da variação real do PIB – estimada em escala decrescente, de 3,86%, em 2020, para 1,07%, em 2060. Ao sobrevalorizar o salário mínimo, o déficit da Previdência dispara.
A CartaCapital, horas antes de apresentar o estudo à Comissão da Reforma da Previdência na Câmara, na quarta-feira 15, Puty criticou a falta de transparência e confiabilidade da metodologia usada para as projeções atuariais do governo.
“O resultado previdenciário depende muito das condições econômicas, mas o debate está sendo feito a partir de modelos que levam em conta quase exclusivamente elementos populacionais”, diz o especialista, Ph.D. em Economia pela New School for Social Research (EUA). “Eles preveem um aumento do número de idosos, uma diminuição da população ocupada e, a partir dessa projeção, extrapolam o resultado previdenciário, sem levar em conta a dinâmica monetária.”
Para Puty, deveria ser obrigatório indicar a probabilidade de erro de tais projeções. “Se for de 25 pontos porcentuais para cima e para baixo, é melhor admitir que a chance de acerto é a mesma de girar uma moeda para o alto e prever se vai dar cara ou coroa. Vende-se como científico algo que, no fundo, serve a um propósito político: promover uma reforma drástica.”
Para Fagnani, os problemas de financiamento não devem ser resolvidos unilateralmente pelo corte de benefícios. É preciso adotar medidas que estimulem o crescimento econômico, a formalização do trabalho, o crescimento da produtividade e o aumento das receitas da Previdência Social, explica.
Análise semelhante foi feita pelo ex-presidente Lula, em discurso durante o ato ocorrido na Avenida Paulista: “Quando a gente consegue incluir o pobre no Orçamento da União, ele passa a ser a solução ao invés do problema”.
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Fonte: Por Miguel Martins e Rodrigo Martins para Carta Capital, 20/03/2017. Reportagem publicada originalmente na edição 944 de CartaCapital.