“Eu até poderia ter tentado estudar alguma coisa por ali, mas seria complicado, porque o trabalho ia das sete da manhã às cinco da tarde, muitas vezes noite adentro.” Teria sido mestre de obras, talvez? Engenheiro? “Quem sabe, nunca tive muito tempo para pensar nisso”, responde ele, que ganha, em média, R$ 1.800 por mês.
Na casa ao lado do prédio em que Medeiros mora vive Elington Fernandes, que também trabalha há pouco mais de 40 anos. Aos 65, é engenheiro civil na empresa que abriu quase duas décadas atrás. Filho de fazendeiros da Zona da Mata mineira, saiu da casa dos pais na década de 1970 para estudar Engenharia na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Quando se formou, em 1976, veio para São Paulo para trabalhar em uma empresa que fazia obras para a Companhia Siderúrgica Paulista. “Eu sempre me esforcei muito, até hoje não são raros os dias em que trabalho mais de 16 horas”, conta Fernandes, que tem salário médio de R$ 15 mil. “Mas fui, sim, muito sortudo por ter nascido na família em que nasci, que sempre me deu tudo.”
Debater o abismo entre realidades tão distintas, como as de Medeiros e Fernandes, e o quanto dele pode ser atribuído às oportunidades — ou à sorte — encontradas ao longo das trajetórias é o objetivo do economista americano Robert H. Frank, professor da Universidade Cornell.
No livro Success and Luck: Good Fortune and the Myth of Meritocracy (“Sucesso e Sorte: A Boa Sorte e o Mito da Meritocracia”), lançado nos Estados Unidos em abril e em fase de tradução para o português, mas ainda sem previsão de lançamento no Brasil, ele conta uma história parecida com a de Medeiros.
Quando trabalhou como voluntário no Nepal, Frank contratou como cozinheiro um jovem de um vilarejo do Butão. “Ele continua sendo uma das pessoas mais trabalhadoras e talentosas que eu já conheci”, escreve Frank. Mesmo assim, continua, o pequeno salário que recebia como cozinheiro talvez tenha sido o mais alto em toda a sua carreira.
“Se ele tivesse crescido em outras condições ou em um país mais rico, teria alcançado maior prosperidade e sucesso material?”, reflete.
Há muita gente talentosa e trabalhadora no mundo que não chega lá simplesmente por não ter sorte" Robert H. Frank
É mais ou menos essa a provocação principal no livro de Frank, que defende que, para obter sucesso, tão fundamental quanto ter talento e se esforçar é ter sorte — e aí está incluso tudo o que foge ao nosso controle, como nascer em uma família rica, frequentar boas escolas ou simplesmente nascer em um país desenvolvido.
“Eu não defendo que as pessoas não sejam avaliadas e recompensadas por suas qualificações”, diz Frank. “Mas há muita gente talentosa e trabalhadora no mundo que não chega lá simplesmente por não ter sorte.”
Vantagem na largada
Na opinião de Frank, isso é particularmente evidente (e tem consequências piores) em países onde a desigualdade social é maior — caso do Brasil, que costuma aparecer entre os 20 piores colocados em listas que medem a concentração de renda.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o salário dos 10% mais ricos é quase 30 vezes maior que o dos 10% mais pobres.
Uma comparação que ajuda a entender o ponto de quem critica a meritocracia como sistema de seleção e também por que ela tem relação com a desigualdade é que o mercado de trabalho funciona como uma competição para a qual o participante começa a se preparar desde a infância.
As pessoas acumulam capital humano, termo usado por economistas para denominar o conjunto de capacidades, competências e atributos de personalidade que favorecem a produção de trabalho. Para isso, contam com três recursos: os privados, os públicos e seus próprios talentos — daí a importância da educação.
Como os recursos públicos e, principalmente, os privados não são os mesmos para todos, ao observar somente o final da corrida, o sistema privilegia poucos.