Em presídios brasileiros, mulheres sofrem com picadas de baratas, falta de atendimento médico e restrição na oferta de absorventes.
O Brasil ocupa o 5° lugar no ranking dos países com maior população prisional feminina, atrás dos Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia. As mais de 37 mil presidiárias brasileiras parecem seguir um perfil: 67% são negras ou pardas; 68% têm entre 18 e 34 anos; 63% são condenadas a penas de até oito anos; e 99% não têm diploma universitário.
Sempre usando gírias e com resquícios do sotaque baiano, ela é rápida nas respostas. Não esconde nada, mas fala pouco, parece não querer perder tempo nos detalhes de sua história. “Aos 11 anos de idade fui para a rua. Eu era abusada pela companheira da minha mãe e pelo meu irmão, que era usuário de drogas. Eles também me obrigavam a vender acarajé nas praias. Cansei e fugi”, conta.
Um ano depois de perambular pelas ruas de sua cidade natal, Salvador (BA), Iara conheceu uma mulher que a convidou a morar em Brasília (DF) com a promessa de ajuda e trabalho. Ao chegar à capital do País, no entanto, a menina foi obrigada a pedir, roubar e dar tudo que conseguisse a tal mulher. “Até quando ela mandou eu me prostituir. Foi quando decidi fugir de novo.˜. Dessa vez a fuga foi para as ruas que cercam a rodoviária da cidade.
Nos dez anos seguintes, Iara morou na rua, onde, conta ela, viu, usou e roubou de tudo. Mas foi em 2009, por assalto à mão armada, que ela foi presa. Por ter sido autuada em flagrante, Iara foi enviada imediatamente para a única prisão feminina do DF, conhecida como Colmeia, onde ficou à espera de julgamento por um ano.
Esperar o julgamento em privação de liberdade é um dos maiores problemas do nosso sistema prisional, segundo especialistas. Atualmente, uma média de três em cada dez mulheres estão presas sem condenação. Em 2014, essa taxa chegou a 99% no estado de Sergipe.
A demora se dá pela grande quantidade de casos e pela indisponibilidade de juízes. A advogada Marina Lacerda, mestranda em criminologia pela UnB (Universidade de Brasília), explica que, de acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, após o flagrante, a pessoa deve ser apresentada com urgência a um juiz, que definirá se o acusado vai ser mantido em prisão preventiva ou liberado.
Em pesquisa realizada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2015, entre réus que cumpriam prisão provisória, 62,8% foram condenados à prisão, enquanto 17,3% foram absolvidos. Somando-se os casos de arquivamento, prescrição e medida de segurança, o número de absolvidos chega a 37%. “O fato de que praticamente quatro em cada dez presos provisórios não receberam pena privativa de liberdade revela o sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo sistema de justiça no País”, conclui o relatório.
Ao fim da espera, Iara recebeu a sentença de cinco anos e quatro meses. Ela cumpriu dois anos na Colmeia e o restante entre liberdade provisória e prisão domiciliar.
Superlotação em cárceres femininos
Em menos de 15 anos, a taxa de mulheres presas aumentou mais de 500%. Se no ano 2000 havia menos de seis mil mulheres atrás das grades, em 2014 essa população passou dos 37 mil. A média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%. Esse salto se deu, sobretudo, pela nova legislação de drogas, que entrou em vigor em 2006 e abrange atualmente 68% das mulheres presas no Brasil.
Em linhas gerais, a nova lei determina quem é traficante e quem é usuário. O traficante é submetido à transação penal, com pena mínima de cinco anos, e o usuário é encaminhado apenas ao juizado especial. A mudança, segundo a advogada Marina Lacerda, mesmo com um propósito válido, deixa a desejar. Ela explica que o problema está nos critérios de análise, aplicados durante flagrante. “Não existe crivo objetivo na lei para determinar tráfico ou uso pessoal. Não há previsão de, por exemplo, quantos gramas de droga separa o traficante do usuário. Após o primeiro filtro, que é feito pela polícia, cada juiz faz sua análise pessoal do caso, sem nenhum parâmetro definido”.
Quando esteve presa, Iara chegou a dividir a cela com outras 56 mulheres. “Eram 12 camas de cimento para cerca de 40 presas. Dormíamos em colchões ou direto no chão. Também ficavam umas no banheiro, outras no corredor. E pelo que ouvi não mudou muita coisa”, diz ela.
Se tomarmos por base o boletim da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realmente, não há mudança. De acordo com o levantamento, 65% dos presídios brasileiros, tanto masculinos quanto femininos, não têm camas para todos os detentos. Atualmente, o País tem 622 mil pessoas presas ocupando 370 mil vagas.
Colmeia: “Os piores anos da minha vida”
Quando questionada sobre a prisão, Iara resume que foram “os piores anos da minha vida”. Vida, que até então não tinha chegado a três décadas. Além da falta de liberdade de ir e vir, ela critica o tratamento dispensado pelos agentes penitenciários às detentas.
A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos recebe milhares de denúncias de tortura anualmente. Só entre 2014 e 2015 foram registrados mais de 7.500 casos. Em seu balanço anual de 2015, apenas 5,9% dos casos encaminhados pelo órgão receberam alguma resposta da rede acionada, composta por Ministério Público, Conselho Tutelar, Delegacias de Polícia e Secretaria de Segurança Pública, Conselhos de Direitos e Corregedorias.
A Lei de Execução Penal, de 1984, determina que só mulheres trabalhem como agentes penitenciários em presídios femininos. Nesse aspecto a legislação ambém não é cumprida. Para Marina Lacerda, isso reflete o fato de que toda a estrutura do sistema prisional foi feita para homens e por homens.
De acordo com o Infopen Mulheres – primeiro relatório divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional voltado para o público feminino -, de junho de 2014, apenas 7% dos estabelecimentos prisionais são exclusivamente femininos, sendo 75% masculinos e 17% mistos, que, em geral, são unidades originalmente masculinas que passam a ter um prédio, ala ou até uma cela reservada especificamente para mulheres.
Além da falta de espaço para atividades laborais ou creches para filhos de detentas manterem convívio com as mães até os dois anos, assim como determina a Lei de Execução Penal, esse quadro facilita, por exemplo, atos de violência sexual.
Em junho de 2015, houve um motim no Presídio de Governador Valadares, no leste de Minas Gerais, que funciona como uma unidade mista. De acordo com a Pastoral Carcerária, várias detentas afirmaram que foram estupradas por outros presos que ficaram soltos dentro do presídio durante a rebelião. “Não há muita preocupação com as demandas e denúncias do público feminino e a falta de agentes mulheres acaba sendo parte dessa grande falta de gestão específica”, pontua a advogada.
Na Constituição Federal, os agentes penitenciários não estão no rol da segurança pública. “Em tese eles são atores da ressocialização dos presos como uma espécie de ‘monitor’, que observa o funcionamento das celas ou conduz os presos ao médico, por exemplo. No caso de uma situação mais grave, a polícia que deve intervir por ser, de fato, uma força de segurança pública”, esclarece a advogada.
Essa lacuna fornece componentes para crescentes discussões, uma vez que os agentes são constantemente desafiados e desacatados pelos presos, que questionam sua autoridade. “É um barril de pólvora”, diz Marina Lacerda.
Apesar de não haver atualmente nenhuma mulher nos oito presídios de segurança máxima do Brasil, e de não existirem, por exemplo, relatos de rebeliões em presídios femininos, Iara conta que as presas se envolvem frequentemente em brigas, sobretudo referentes a relacionamentos.
Mas conflitos em prisões, seja com agentes ou outras presidiárias, não eram exatamente um problema para ela. “Eu vim da rua e na rua a gente aprende logo tudo que tem que aprender para sobreviver. Eu ficava na minha e pronto.”
Cotidiano na prisão: Baratas e ausência de médico
Com exceção de quatro presídios que recebem administração federal, a administração prisional é competência de cada estado; portanto, cada prisão tem suas regras. No caso de Iara, quando esteve presa na Colmeia, as regras eram, entre outras, não usar batom ou lápis de olho, só uniforme. Também não podia namorar outras presas. As visitas podiam levar apenas biscoito, doce e produtos de higiene. Tudo mais tinha que ser comprado lá, na cantina do presídio, que, segundo ela, era superfaturada. “O que custar dois reais fora da prisão lá dentro custa oito.”
Iara acordou com baratas dentro dos ouvidos por duas vezes. “Foram as presas que me ajudaram a tirar porque não tem médico. A gente já sabe, tem que botar óleo ou leite, aí elas saem. Na cadeia só tem paracetamol, quando tem.”
Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em abril deste ano, a coordenadora nacional para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária da CNBB, Petra Silvia, exibiu fotos que mostravam picadas de baratas em braços e pernas de presas no Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte e Maranhão. “As celas das mulheres são pintadas de cor-de-rosa, são enfeitadas e até bonitas em comparação com a dos homens. Mas é só por fora. Infelizmente, pelas fotos não dá para sentir o cheiro das prisões.”
Petra denunciou, além de falta de assistência jurídica, superlotação, ausência de energia elétrica e de material de higiene íntima: “São três absorventes íntimos por mês para cada presa. Apenas”.
Em São Paulo, por exemplo, há relatos de que presas usam miolo de pão amassado por falta de absorventes. No entanto, Petra Silvia pontua que ainda mais grave que as condições de higiene é a saúde. A complexidade do corpo feminino é um dos motivos:
Em Pelotas (RS) as presas, mesmo com nódulos nas mamas e hemorragias, esperaram meses para receber atendimento médico. Já em Campo Grande (MS), o atendimento que deveria ser feito por ginecologistas era feito por um ortopedista. Sem falar na falta de dermatologistas; são muitos os problemas de pele.
Petra Silvia visita presídios brasileiros há 22 anos e sabe que eles colecionam violações aos direitos humanos. “Nós não estamos aqui para discutir artigos penais, elas já pagam por seus delitos. Estamos aqui para se discutir o tratamento que é dado a essas mulheres. Torturar não é só bater”, defende.
Recomeço: oportunidades e futuro
Há quatro anos Iara está livre, da prisão e das drogas. Não mora mais nas ruas e mantém contato com a família, que ficou em Salvador. Por meio de um programa social, logo que deixou a Colmeia, ela terminou o ensino médio e, desde então, vem trabalhando como agente social. No currículo, experiência em projetos de ONGs e órgãos do governo, todos voltados para capacitação e resgate de moradores de ruas.
A coordenadora do Pop de Rua, projeto vinculado à Secretaria Nacional e Economia Solidária do Ministério do Trabalho, Daniele Pereira Braga, foi a primeira a empregar Iara. Ela acredita que para chegar às pessoas em situação de rua é preciso alguém que conheça bem a realidade em que elas estão inseridas e que inspire confiança.
“Se hoje eu sei lidar com esse público foi através dela [Iara], que trouxe um olhar diferenciado. Sem esse auxílio o projeto não teria acontecido”. Para Daniele, a reincidência no crime acontece em grande parte por falta de oportunidades. No entanto, ela esclarece que o processo de adaptação não é fácil. “Não é somente contratar, tem que ter sensibilidade e acompanhar, promover a inclusão. Eles têm que entender que se tornam parte de uma equipe, com funções e responsabilidades”.
Recentemente Iara estreou como atriz na peça Teto e Paz, da companhia de teatro La Casa Incierta na capital federal. Ela pretende estudar artes cênicas, mas continuando com os trabalhos sociais com a população em situação de rua.
“Tenho uma dívida com eles. Foi ali, nas ruas, que eu fui feliz a primeira vez”, conclui.
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