O mundo acompanha com apreensão e ansiedade a guerra na Europa. O conflito está cercado por lentes de câmeras e registros fotográficos que, de forma frenética, reproduzem imagens, elaboram narrativas, constroem deliberadamente perfis para as lideranças políticas, tratando um conflito sangrento e devastador como se fosse uma produção cinematográfica de Hollywood, onde mocinhos e bandidos atuam em um roteiro com doses de compaixão, empatia, ódio, patriotismo, coragem e medo, muito medo!
Com o espetáculo da guerra no ar é fácil se deixar levar pelo roteiro apresentado todos os dias nos muitos noticiários que vemos. Mas não, este não é um roteiro cinematográfico, nem um episódio da teledramaturgia nacional!
O fato é que a guerra que hoje acompanhamos não começou no dia 24 de fevereiro de 2022, data que marcou o bombardeio inicial da Rússia sobre a Ucrânia. Olhar de forma honesta para este conflito exige o exercício de revisitar a história recente da guerra civil na Ucrânia desencadeada por um golpe de Estado em 2014.
Então, por que não vemos nas notícias, comentários jornalísticos e análises de especialistas internacionais nada a respeito da intromissão norte americana nos assuntos internos da Ucrânia, especialmente a partir de 2014, quando Joe Biden era vice-presidente dos Estados Unidos? O empréstimo de um bilhão de dólares que a Ucrânia precisava naquele momento para rolar a dívida pública deixou o país mais vulnerável às interferências dos Estados Unidos.
O que estava sendo negociado naquele período, especialmente em 2013? Um acordo de livre comércio, de investimentos, de cooperação econômica da Ucrânia com a União Europeia. Na América Latina e no Brasil conhecemos bem esse processo, quando fizemos uma ampla mobilização popular, em especial com o plebiscito contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e conseguindo impedir seu avanço na região.
No paradigma do desenvolvimento, os acordos de livre comércio prometem avanços econômicos, mas não mencionam as contradições inerentes a qualquer acordo que abra as portas de um país para a suposta cooperação econômica, que nada mais é do que a dependência. Neste momento, organizações da sociedade civil e coletivos de direitos humanos da América Latina estão unidos conta o Acordo União Europeia-Mercosul, investida que representa uma volta à Alca com outros interlocutores.
No Leste Europeu, desde antes de 2013 a população ucraniana já era cativada e fortemente influenciada pela propaganda fantástica do que seria o acordo com a União Europeia que, estrategicamente, excluía a Rússia. O acordo era negociado por um governo que não era exatamente aliado da Rússia, mas que também tinha desconfianças sobre os reais benefícios para a Ucrânia. A intensa propaganda ganhou corações e mentes do povo ucraniano, fazendo-os acreditar na possibilidade de rolagem e negociação da dívida e no desenvolvimento a partir de uma maior aproximação com a União Europeia, tornando-os parte do sistema econômico ocidental.
Em resposta a essa ameaça, a Rússia ofereceu uma contraproposta, um outro acordo de cooperação econômica, que poderia incluir a concretização dos elementos negociados com a União Europeia, o qual seria muito mais vantajoso para a Ucrânia, porque oferecia, dentre outras coisas, o perdão de dívidas, e possibilidades mais palatáveis do pagamento e rolagem das dívidas, além da redução do preço do gás – importante na geopolítica energética –, sem condicionalidades políticas ou doutrinárias no campo econômico.
Diante desse cenário, o parlamento ucraniano desiste do acordo com a União Europeia e assina o acordo com a Rússia, no qual o tema da dívida pública era crucial. O cancelamento com a União Europeia gera uma onda de protestos, especialmente a partir de setores da elite liberal ucraniana. Esses protestos tiveram apoio internacional, com destaque para senadores norte americanos como John McCain, que foi até a capital ucraniana, na emblemática manifestação em Maidan, a Praça da Independência, que ficou apelidada de Euromaidan.
Seguindo o fio da história, em 2014 o golpe de Estado foi concretizado com a deposição do presidente, invasão do parlamento e do palácio presidencial. Trocou-se o regime, não a partir de uma eleição, mas por um ato de força daqueles que não aceitavam que a Ucrânia não tivesse seguido o acordo com a União Europeia.
O novo regime tratou de expurgar seus adversários da vida política nacional, produzindo um novo poder. Nesse cenário, ainda que não seja verdade a versão de que grupos nazistas tomaram o poder na Ucrânia naquele momento, é verdade sim que grupos de extrema direita passaram a ocupar espaços estratégicos que influenciaram o destino do país, com o banimento da oposição, dos partidos de esquerda e da autuação dos movimentos sociais.
A partir de então, conhecemos os episódios sangrentos que se sucederam na Ucrânia. O massacre de Odessa é o mais emblemático deles, mas houve outros massacres políticos, com forte repressão a quem ousou resistir ao novo regime golpista que contou com o apoio político e econômico dos Estados Unidos. É assim que o governo norte americano começa a organizar, sob o comando do então senador republicano, Joe Biden, os interesses norte-americanos na Ucrânia. É assim que começa a trágica guerra civil na Ucrânia, é assim que chegamos ao 24 de fevereiro de 2022.
Após revistar a história recente da Ucrânia e sua relação com a União Europeia/Estados Unidos, ainda achamos que é possível pensar na possibilidade da paz sem a verdade na mesa de negociação?
Temos total empatia e solidariedade com as populações da Ucrânia e da Rússia que sofrem as consequências da guerra, mas para tentar desatar os nós do conflito é preciso olhar para a nova ordem internacional pós-Guerra Fria sem romantismo, é preciso mudar o foco e admitir que o que está em jogo nesse momento é uma arquitetura de segurança internacional, não apenas da Europa, mas em escala internacional. Podemos estar entrando em um período de desordem, se não generalizada, porque ainda há tempo para reverter esse quadro, mas certamente este é um tempo de desordem crescente.
É muito preocupante, é de se lamentar que a Rússia agora tenha embarcado e arrogado para si o “direito” de também, quando lhe for de interesse vital, agir como os Estados Unidos, e de alguma forma, países da Europa, como Inglaterra e França, a partir da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e sua aliança militar, estão acostumados a agir, especialmente desde o fim da Guerra Fria. Agora temos mais atores dispostos a jogar o jogo da força e pagar para ver. Colocando em xeque a ordem unipolar dos Estados Unidos para uma ordem bipolar ou multipolar.
Atentemos também para a dimensão ideológica. Com o fim da Guerra Fria fomos induzidos a acreditar que entramos num período livre de ideologias. Ora, durante a Guerra Fria havia negociações entre Estados Unidos e União Soviética, para a redução de armamentos, havia até conversas de alto nível entre lideranças políticas num esforço para conter o arsenal nuclear com acordos internacionais nos anos 1970-1980. Alguém pensa que algo parecido hoje seja possível? Que tipo de ideologia está em cena impedindo qualquer esforço para barrar a corrida armamentista? Nesse cenário, como pensar caminhos para um acordo de paz? Quais são as garantias que os lados envolvidos precisam para viabilizar a paz?
É preciso lamentar essa e qualquer outra guerra, é preciso olhar para as milhares de pessoas, especialmente mulheres e crianças, que passaram a viver como refugiadas ou que se encontram em meio aos bombardeios, em abrigos subterrâneos, com escassez de alimento e em ambientes absolutamente precários.
O mundo ocidental fala do pacifismo enquanto arma os ucranianos para que eles lutem até que o último ser humano e morram pela honra do Ocidente. Um pacifismo que se recusa a falar em negociação de paz, mas que promove campanhas de doação nas redes socais no mundo inteiro, para subsidiar o exército ucraniano, romantizando uma suposta resistência heroica, onde na verdade o que se apresenta é uma guerra impossível de ser vencida pela Ucrânia e que está simplesmente tentando causar algum dano à Rússia, às custas de muitas vidas. É improvável um enfrentamento nuclear? Mas fica o alerta, não é impossível.
No tabuleiro do jogo geopolítico em curso não cabe defesas apaixonadas, ao contrário, o momento exige inteligência política e abertura para o fortalecimento da democracia, com a finalidade de viabilizar a soberania e autodeterminação dos povos e sua livre decisão sobre seus destinos políticos e econômicos.
Não devemos, não pagamos!
Somos os povos, os credores!
Não à militarização!
Pela autodeterminação dos povos!
Rede Jubileu Sul Brasil, 29 de março de 2022
Fonte: Site Rede Jubileu Sul