por Amarílis Borges, publicado por Rede Angola*
O exercício começa com uma reflexão sobre si mesmo, passa-se a experiência para o papel e divulga-se o resultado num pequeno grupo em vez de fechá-lo em si. Em poesia ou em prosa, este é o desafio lançado pelo Djidiu – Herança de ouvido, uma iniciativa da Afrolis – Associação Cultural de afro-descendentes em Lisboa. A segunda fase é discutir essas ideias, melhorá-las, reescrevê-las e centrá-las num universo negro e afro-descendente.
No crioulo da Guiné-Bissau “Djidiu” significa “contador de histórias”. Não de qualquer história, o Djidiu é o responsável por passar as histórias de uma geração para outra, é um músico, um artista que só pode dizer a verdade. Em vários espaços de Lisboa – onde mensalmente se abre ao público para mostrar o trabalho feito – essas verdades já versaram temas como a família, os padrões de beleza e, no último domingo, chegava a vez do amor. A ideia era falar sobre o amor à comunidade, mas o que prevaleceu nessas duas horas de criação declamada foi o amor à mulher negra, havendo quem se aventurasse pelo amor à revolução.
“Há quanto tempo lutamos? Há quanto tempo protestamos? Há quanto tempo nas ruas marchámos. Longas faixas erguemos em comícios e gritámos: Não! Basta! Jamais! E, ainda assim, há quanto tempo temos sido espezinhados, marginalizados, segregados, crucificados, desumanizados, amordaçados e silenciados? Há quanto tempo temos sido ridicularizados, linchados e chacinados? Há quanto tempo sofremos, choramos e em vão lamentámos?”, declamava o fotógrafo angolano Dário Dallas. O autor, Apolo de Carvalho, observava desde o meio do público como o seu amigo dava entoação e gestos às suas palavras.
“O principal é partilhar um bocadinho esse conhecimento dentro da linha africana, partilhar o conhecimento sobre África”, afirmou Dallas mais tarde em declarações ao Rede Angola. “O que estamos a tentar fazer com o Djidiu é educarmo-nos, perceber a nossa história, conhecer quem somos, amarmos mais e partilhar esse amor. Essa é a minha grande ligação com o Djidiu, a partilha desse amor”.
O espaço pequeno deste último evento acabou por deixar o público mais aconchegado. A Tabacaria Tropical, na Cova da Moura, nos arredores de Lisboa, começou por receber 15 pessoas, para 45 minutos depois já serem 40, incluindo crianças, dividindo-se pelo espaço, nos sofás, bancos, nos degraus de uma escada e até no chão.
Foi a primeira vez que o Djidiu saiu do centro da capital portuguesa para a periferia com o objectivo de ir ao encontro da comunidade africana. O espaço, inaugurado há um ano, tem o espírito de uma casa simples da (também conhecida por) Kova M. Duas mesas promovem discos de músicos africanos, as paredes estão decoradas com cartazes do espectáculo do bailarino congolês Faustin Linyekula (que se apresentou este ano na Cova da Moura no âmbito da sua actividade como Artista na Cidade), de manifestações “vidas negras importam” e com um pedido de liberdade aos presos políticos angolanos, o grupo conhecido como 15+2.
A parte da frente da casa é, de facto, uma tabacaria – que se divide entre um “cantinho doce”, como descreveu o dono, Vítor Sanches, uma pequena biblioteca com obras de autores como Richard Wright, Margarida Brito, Agostinho Neto e paredes cheias de cabides para t-shirtsfeitas pela população que vive ali à volta, com a marca Bazofo.
“Tinha de criar um espaço com cultura e que ao mesmo tempo tivesse uma aceitação não só da comunidade mais velha mas, principalmente, das mulheres e das crianças”, diz. “A cena com mais importância foi adquirir os livros, principalmente porque aqui na zona o crioulo é muito forte. Às vezes nem chegas a falar português. Queria criar uma dinâmica de leitura de autores negros, africanos”, continua Vítor. “É um trabalho de amor, 100 por cento”.
Até o próprio dono do espaço se aventurou no Djidiu com um texto obedecendo ao tema. “Quando se tem amor, sacrifica-se tudo, é um acto extremamente revolucionário. Com amor nunca se perde, pelo contrário, ganha-se tudo: o respeito, o reconhecimento. Amor é humano”, declamou. “Amor é um sorriso das crianças negras que sobrevivem nesse nosso sistema. Amor negro são os jovens negros portugueses que dizem que são africanos. Amor é a força da mulher negra que carrega a sua comunidade e ainda trabalha duro”.
Essa celebração da cultura negra na capital portuguesa vai de encontro ao objectivo do Djidiu de “abrir horizontes”, descreve a coordenadora do projecto, Carla Fernandes, também ela nascida em Angola. “Uma das questões centrais na Afrolis é que a gente tenha noção da diversidade das nossas experiências. É essa junção de formas de estar ou de viver a negritude em Portugal, ou só em Lisboa, que tentamos sublinhar – sempre a pensar na diversidade do que é ser negro em Lisboa”.
Saindo da bolha
“O Djidiu é uma casa para nós, mas é uma casa que decidimos que iríamos abrir as portas. Todas as quartas-feiras [acontece] à porta fechada, depois, uma vez por mês, a gente abre as portas. Queremos saber dos outros e que os outros saibam de nós. O nosso foco são as pessoas negras a viver aqui mas também que outras pessoas saibam o que está a acontecer para haver esse encontro, para saírem das suas bolhas, como também queremos sair das nossas”, explicou Carla Fernandes.
O benguelense Anderson Lino, estudante de Engenharia e Produção Industrial em Lisboa, descreve o grupo do qual faz parte como “uma forma de mostrar ao mundo que em África existem escritores bons, a literatura é rica”, o que para si “é banalizado porque já existem padrões em termos literários que não permitem o acesso a novos. Esse acesso devia surgir como uma despadronização e de certa forma é necessário que movimentos como este existam, que é para ostentar essa nossa riqueza cultural e literária, porque há muita coisa a ser contada, muitas histórias, muitos contos que devem ser expostos ao mundo”.
Para Lino, é preciso colocar os autores africanos no mesmo patamar que escritores como, por exemplo, Machado de Assis. “Conseguiram com dificuldade também transpor barreiras. A partir disso estamos no bom caminho, temos algumas metas bem definidas para o futuro. Já passamos por um momento mais difícil que foi o lançamento e a divulgação. A adesão vem aumentando a cada Djidiu. Creio que futuramente poderemos ter um espaço mais abrangente, não só para negros, para que possam se encontrar e fazer um intercâmbio”.
“Iniciativas como essas: alguém chegar, escrever um texto e ter a possibilidade de mostrar e partilhar com o resto, sem ter medo de ser gozado ou vaiado, é esse espírito que estamos a criar e esperamos que futuramente possamos ter pernas próprias para andar”, argumenta.
À espera que o Djidiu inspire outros a replicarem a experiência
O Djidiu caminha, ou pelo menos há planos, para que seja repetido noutros centros. “Adoraria que houvesse um grupo de Djidiu na Amadora, outro noutro bairro qualquer e as pessoas tivessem uma dinâmica diferente desse que nasceu no centro de Lisboa: replicassem a experiência e depois, eventualmente, publicassem os poemas que estão a fazer, mas que esta experiência sirva de exemplo para outras poderem surgir e até terem temáticas mais focadas” – só para a mulher negra, ou para jovens com projectos específicos -, afirmou Carla Fernandes. “É uma coisa que está em aberto e acredito que possa vir a ser assim”.
Para quem esteve no Djidiu pela primeira vez os sentimentos são misturados. “Quem é que nunca batalhou com a questão do amor? Agora a reivindicação do amor negro é-me estranha, de certa forma. Não faz parte do meu quotidiano. Gostei de partilhar a experiência, dos olhares, do sítio pequeno, da proximidade”, declarou a cineasta e fotógrafa Mónica Batista.
“Gostei imenso dos corpos das pessoas e de como trazem o assunto de forma tão diferente, porque é amor mas é muitas coisas ao mesmo tempo. Gostei essencialmente de como os corpos manifestavam esta ideia e depois as diferentes visões”, referiu.
A arquiteta Catarina Sampaio, que já viveu em Cabo Verde, começa por dizer que “a poesia africana não é nova” para si, “mas nunca a tinha ouvido a ser dita. Eu falo dizer poesia, não uso declamar”, explica. “A forma como foi dita e sentida achei muito interessante. Se calhar o que não estava à espera foi da diversidade dos sentires, muito diferentes e, por vezes, contraditórios. Havia pessoas a falar do mesmo tempo, os seus sentidos eram contraditórios. Naturalmente, como indivíduos, cada um tinha a sua forma de sentir o mesmo tema”.
Questionada sobre a possibilidade de ter ouvido falar de realidades diferentes, a arquitecta criticou essa interpretação. “Acho mau quando se sente esse choque e fazer essa diferença de sentir também não me parece uma coisa muito positiva. Senti que era uma forma de falar de uma realidade que eu também conheço bastante bem. Achei mais interessante quando disseram poesias deles próprios. Sinto falta de ver alguns clássicos da poesia africana que eu gosto muito, de isso não ser espalhado”, acrescentou.
O racismo ocultado
Uma iniciativa pensada para negros, afro-descendentes, na diáspora não podia fugir ao tema do racismo. Mesmo quando a palavra não surge explicitamente clara, a questão está lá, às vezes num incômodo de quem ouve, explica Carla Fernandes.
“Uma das coisas mais interessantes em relação ao Djidiu é que quando fazemos as sessões há pessoas que questionam porque é que estão sempre a falar de racismo. Cada vez que uma pessoa negra fala sobre a sua experiência, não está a falar de racismo, está a falar das experiências. Ou seja, o incômodo que nós causamos ao falar da nossa realidade já reflete que alguma coisa não está bem”, disse.
“Nestes últimos dois anos de repente começou a surgir este à vontade ou esta ânsia de se falar sobre estes temas. Criar grupos que tratem destes temas é um reflexo de que alguma coisa não está bem. E aí é que se vê que existe, sim, racismo e que as pessoas querem fazer as coisas de outra forma. Mesmo que não mencionem racismo, que falem mais do orgulho de ter um cabelo afro, da moda. No caso do Djidiu, literatura africana ou produção de textos que reflitam a experiência africana, é o reflexo de que faltam espaços – queremos ter mais espaço”, continuou.
Para a coordenadora do Djidiu, estas conversas buscam apenas conseguir o respeito devido: “Sabemos que pode ser duro de se ouvir mas também é duro de se viver”.
“A ideia de que o amor não tem cor, é cego e não tem idade não é verdadeira”
E se a experiência do racismo marca gerações de afro-descendentes, quando se é uma mulher negra em sociedades machistas, e que buscam o “embranquecimento”, o resultado pode ser ainda mais grave. Segundo as brasileiras Luzia Gomes e Maíra Zenun, a mulher negra é o tipo que está mais sozinho no espaço das relações prolongadas no Brasil. Por isso, elas escrevem sobre o amor entre amigas, negras, numa comunidade.
A baiana Luzia Gomes é, de acordo com a organização do Djidiu, a participante mais frequente. A fazer um doutoramento em Arte Contemporânea Angolana em Lisboa, conheceu a brasiliense Maíra Zenun, actualmente a fazer um doutoramento em Sociologia na capital portuguesa.
Quase sempre a falar sob o ponto de vista de brasileiras a viver em Portugal, mas muito próximas da comunidade africana, falam ao RA do isolamento da mulher negra, tema da poesia que apresentaram. “O homem branco não se relaciona com a mulher negra, é muito difícil, e o homem negro especificamente também não se relaciona com a mulher negra porque no Brasil a gente tem essa questão do ‘embranquecimento’, de uma exaltação à miscigenação, à mistura, que o negro case com mulheres brancas. Em Brasília há uma enorme população de mulheres negras super bem formadas, instruídas, pós-graduadas, que estão no serviço público, ganham bem e não têm um parceiro, não têm uma relação, porque os homens não querem nos assumir nas suas famílias”, afirma Zenun.
“Num país onde racismo sempre foi visto como uma questão velada, subtil, é muito violento. Um homem ter o atrevimento de ultrapassar essas barreiras e apresentar uma mulher negra para a sua família branca ou para a sua família negra, às vezes, é muito complicado. Então a gente vai sendo relegada nas opções. Nas relações estáveis, formais, de casamento e papel passado, a mulher negra é a que é menos escolhida. Você tem mulheres negras discutindo isso hoje inclusive nas relações homo-afectivas – onde as mulheres negras também não conseguem estabelecer relações prolongadas, estáveis”, explica.
Segundo a socióloga, o “imaginário” da mulher negra como “a boazuda, a gostosa, o corpão, a que é boa de cama mas que não é boa para a formalidade” é um dos culpados dessa exclusão.
“Quando a gente fala no amor na comunidade, no fortalecimento dos laços entre pessoas negras, tem a ver com isso, porque o homem negro também foi preterindo, foi deixando de escolher a mulher negra. Não estou acusando o homem negro de uma postura sacana, também como vítima acabou se submetendo, porque qual é o modelo de beleza?”, questiona.
Luzia Gomes refere que a “dor da solidão” está relacionada com o facto de a mulher negra ser “preterida constantemente”, “é algo que adoece”. “Temos no Brasil pesquisas e mais pesquisas na academia pensando nesse processo de solidão e como isso acaba nos adoecendo. Eu sou baiana, de uma cidade com maioria negra, e muitas vezes não sou tirada para dançar. Eu sei porque não sou tirada para dançar. Não é porque eu não saiba. É porque no quotidiano você está sempre sendo preterida: nas relações afectivas, no mercado de trabalho, no espaço que você se sociabiliza”, argumenta.
“Falo muito no amor que a gente precisa construir entre nós, mulheres, e é óbvio que esse amor não vai substituir o de um parceiro, de uma parceira, mas a gente precisa de outras formas de amor para nos fortalecermos. Até mesmo porque tem um outro lado desse desamor: faz com que aceitemos o mínimo, as migalhas, as relações abusivas, seja com homens negros ou com homens brancos. Quando você consegue compartilhar outras formas de amor com outras mulheres do seu próprio grupo, vai percebendo que há relacionamentos saudáveis, não tem que ser só a mulher da trepada”, que é uma expressão comum para aquela que é procurada só para sexo.
Para Luzia Gomes essa questão precisa ser colocada porque atinge todas as faixas etárias. “A partir de uma determinada idade cada vez mais o seu processo de solidão vai aumentando. Então essa questão precisa ser colocada, o silêncio mata. A gente precisa aprender a falar sobre isso e reflectir com os nossos parceiros, com os nossos amigos. A ideia de que o amor não tem cor, é cego e não tem idade não é verdadeira. Se tudo é um processo de construção, e se o racismo perpassa várias trajectórias da nossa vida, óbvio que ele também perpassa a nossa construção afectiva”.
Em Portugal, as manifestações do racismo são diferente, defendem as duas. “Fiquei surpresa quando cheguei aqui e fui chamada para dançar por homens negros. Não tinha vivido isso no Brasil”, contou Zenun. “Em Lisboa já beijei mais homens negros do que no Brasil”, completa Gomes entre risos. “Não que o racismo aqui não exista, porque existe e é muito parecido com o Brasil nessa forma velada. Mas a forma no tratamento, há a possibilidade de você pensar numa relação”, diz.
Programação
O Djidiu aberto ao público acontece no último domingo de cada mês sempre em locais diferentes e que são anunciados pelo Facebook da Rádio Afrolis. Em Setembro, o tema é a Educação e quem quiser participar pode inscrever-se através dos contatos da associação. As reuniões semanais decorrem todas as quartas-feiras, das 19h30 às 21h, com apoio do Grupo de Teatro do Oprimido.
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Publicado por Rede Angola.