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O que é a cultura do estupro e por que é preciso falar sobre ela

O que é a cultura do estupro e por que é preciso falar sobre ela
O estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro e a divulgação do vídeo do crime em redes sociais colocou em evidência o debate público sobre cultura do estupro, o mecanismo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o estupro com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade.

A cultura do estupro só é possível em um contexto em que haja profunda desigualdade de gênero. Para que ela exista, é preciso que haja uma constante desumanização da mulher e objetificação de seu corpo.

“Há culturas em que isso é coibido. E são culturas em que há uma disparidade menor entre gêneros, em níveis diversos – na representatividade política, na igualdade de salários, na divisão de tarefas dentro de casa. Não é apenas um viés [de igualdade].”

O tema é controverso. O reconhecimento de uma cultura que banaliza o estupro, considerado um ato de extrema violência, é algo negado com frequência. Mas a cultura do estupro é um fenômeno identificado por sociólogos, antropólogos e ativistas e reconhecido pelas mulheres para quem a ameaça aparece como um medo recorrente.

Como categoria sociológica, essa cultura serve para para explicar como é possível que, diante de um crime tão hediondo, a reação mais comum seja duvidar da denúncia ou colocar a culpa na vítima.

Como funciona a cultura do estupro
A cultura do estupro é uma construção que envolve crenças e normas de comportamento, estabelecidas a partir de valores específicos, que acabam banalizando, legitimando e tolerando a violência sexual contra a mulher.

A maioria dessas normas está calcada na noção de que o valor da mulher como ser humano está atrelado a uma lista de condutas que envolvem, frequentemente, uma moralidade relacionada à sexualidade.

O problema está na subjetividade desse conjunto de condutas e na maneira como elas se prestam a controlar o corpo, a liberdade e a sexualidade da mulher. A existência dessas normas já caracteriza uma falta de direito da mulher sobre o próprio corpo e suas vontades.

A partir daí, socialmente aceita-se que ela seja desumanizada e seja vista como um objeto. É por isso que há a ideia de que existem mulheres “com valor” e “sem valor” – só objetos perdem valor.

“A mulher é desumanizada – não é sequer um objeto, é quase como se elas não fossem humanas. E se não forem humanas, são passíveis de estupro, assassinato. Tira-se o direito da mulher sobre o corpo dela e ele se torna da família, do homem, da igreja e da lei, mas nunca dela mesma.”

Outro elemento que aparece quando o valor da mulher é conectado com o controle de sua sexualidade é a ideia de que é necessário preservar sua castidade para ser vista como digna de valor e respeito.

A discussão sobre consentimento passa pelo controle da  sexualidade feminina e, ainda hoje, a ideia de que  “quando mulher fala ‘não’, quer dizer ‘sim’”, que segue corrente no senso comum, ajuda a compor esse quadro.

É esse pano de fundo que, diante da notícia de um estupro, permite comentários que questionam a roupa que a vítima usava, o que ela fazia na rua à noite ou se ela não teria “provocado” o agressor. Nesse contexto, a culpa do estupro muitas vezes é atribuída à  mulher e a responsabilidade de evitá-lo também é sua responsabilidade.

“As microviolências estão conectadas. O assédio [nas ruas] e essa violência física [o estupro], e todos têm a ver com uma visão masculina que tende a ver o corpo da mulher como um objeto de posse. É o que também permite que você fale que ela é gostosa na rua, faça piada depreciativa.”

As experiências de agressão sexual em diferentes escalas sofridas por mulheres no cotidiano – entre elas, o assédio nas ruas e as piadas machistas, por exemplo – compartilham princípios comuns: desigualdade de gênero, desumanização e desqualificação das mulheres. Em outras palavras, ainda que as agressões tenham versões e consequências diferentes, são resultado de um repertório compartilhado e socialmente aceito.

O termo “cultura do estupro” foi usado pela primeira vez nos anos 1970, por ativistas da segunda onda do feminismo, como uma maneira de tentar explicar por que o estupro era um crime tão comum, ao contrário do que se imaginava.

O estuprador como ‘monstro’
A cultura do estupro estimula a crença de que, se a mulher é estuprada, de alguma maneira a culpa foi dela. Se não é possível encontrar razões dentro dessa lista de condutas para culpá-la, então assume-se que o agressor tem algum tipo de patologia – “um monstro”.

No entanto, a noção de que apenas “monstros”, portadores de uma patologia, sejam capazes de cometer um estupro não explica a imensa prevalência deste crime no mundo. No Brasil, de acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, todos os anos 50 mil pessoas são estupradas.

Acredita-se, contudo, que o número seja cerca de dez vezes maior. O estupro é um dos crimes mais subnotificados no mundo todo. O motivo: o mecanismo que culpa a mulher pelo estupro faz com que ela também se sinta culpada pela violência que sofreu.

Além disso, há a noção de que existe um valor da mulher atrelado ao seu corpo e à não violação dele. Por isso, mulheres sentem receio de falar sobre o que sofreram por vergonha.

Por fim, o aparato institucional de denúncia e atendimento ainda não está totalmente preparado para lidar com casos dessa natureza.

Nos EUA, o Centro de Controle e Prevenção de doenças estima que uma a cada cinco mulheres serão estupradas em algum momento da vida. E ¾ das vítimas são estupradas por homens que as conhecem, e não por um estranho em um beco escuro.

 
A impunidade do estuprador

A despeito do alto número de estupros no Brasil, especialmente por homens próximos da vítima, é recorrente que uma cultura em torno da prática seja negada. Para a pesquisadora Arielle Sagrillo Scarpati, mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo e doutoranda em Psicologia Forense pela University of Kent, na Inglaterra, isso acontece principalmente por três motivos:

Entre homens, porque reconhecê-la demanda a necessidade de rever pequenos comportamentos e hábitos que foram ensinados como normais e são parte inerente de seus conceitos de masculinidade desde a infância. “Isso pode ser muito doloroso”, diz ela.

Entre mulheres, porque acreditar que há uma lista de condutas que podem protegê-las do estupro gera conforto e segurança. “Afasta a mulher da posição de possível vítima”, explica.
Por que o estupro é visto como um dos piores crimes que existem, também é doloroso assumir que há um mecanismo cultural que faz com que homens que sejam parte do círculo de relações sociais estuprem mulheres – pode ser difícil se livrar da noção de que esses homens próximos sejam “monstros”, por exemplo.

Diante do caso ocorrido no Rio de Janeiro, o argumento mais frequente usado para questionar o machismo como um elemento constitutivo da violência perpetrada contra a adolescente foi o de que o alto número de estupros na sociedade brasileira se deve à impunidade em relação aos crimes cometidos.

A impunidade está,  sim, conectada ao número elevado de estupros no Brasil. No entanto, ela não pode ser lida como sua causa, mas como mais um elemento do ciclo de vitimização. A origem da subnotificação dos crimes, e as dificuldades de investigá-lo, por exemplo, são agravadas quando família e autoridades duvidam do relato da vítima.

As delegacias especializadas em crimes contra a mulher, que geralmente estão melhor preparadas para receber e investigar esse tipo de denúncia, estão sucateadas e são poucas. Menos de 10% dos municípios do país têm delegacias da mulher.

Há também a pressão de grupos políticos e religiosos para limitar os direitos das mulheres em caso de estupros. O projeto de lei 5069/2013, aprovado em outubro de 2015 na Comissão de Constituição e Justiça do Câmara dos Deputados, dificulta a realização de aborto em caso de estupro e penaliza qualquer pessoa que oriente a mulher sobre as possibilidades legais de um aborto.

Além disso, exige que a vítima faça Boletim de Ocorrência e exame de corpo de delito para comprovar o estupro e então ter direito à profilaxia do estupro, que inclui procedimentos como a pílula do dia seguinte, para evitar que a vítima engravide do estuprador, orientações psicológicas e remédios que evitam ou diminuem as chances de contaminação por DSTs.

Mobilização digital pressionou autoridades
A filmagem do estupro coletivo no Rio, publicada como troféu, mostra um grupo de homens que caçoa de uma jovem, nua e desacordada. Enquanto tocam as partes íntimas ensanguentadas da menina, eles fazem piadas, riem e contam como ela tinha sido estuprada por “mais de 30”.

A divulgação do vídeo, feita pela conta de um jovem carioca no Twitter, provocou uma mobilização sem precedentes por parte de mulheres na web. Em poucas horas, a conta do jovem já tinha saído do ar pelo excesso de denúncias.

Grupos feministas compilaram prints do perfil dele e de outros que fizeram piada e divulgaram o vídeo e prepararam um manual que orientava todas as mulheres indignadas com o material a registrar os prints e denunciar os perfis para o Ministério Público. Além disso, os manuais já falavam sobre a importância de não assistir e não divulgar o vídeo, para preservar a vítima.

Já na quinta-feira (26) de manhã, a pressão surgiu efeito. O estupro coletivo filmado em vídeo e divulgado como se fosse piada virou manchete de grandes jornais e assunto de polícia, que afirmou já ter encontrado suspeitos de participar do estupro. A vítima também foi localizada por agentes sociais e grupos de proteção dos direitos humanos. Ela tem apenas 16 anos e foi encaminhada para exames e acompanhamento psicológico.

Do debate, surgiram milhares de textos, matérias na imprensa nacional e internacional e uma convocação, por parte de mulheres, para que homens se posicionassem contra a cultura do estupro e levassem o debate para amigos, além da organização de protestos contra a cultura do estupro.

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