O Descanso como Atividade Pastoral (Mc 6,30-34), o Cuidado como Ato de Compaixão (Lc 10,29-37) e o Amor como a Essência de Deus (1Cor 13)

A comunidade Joanina nos ensina que Deus é amor e não sabe não amar. Deus ama porque Deus é amor. “Quem não ama não descobriu a Deus, porque Deus é amor”. (1Jo 4,8). Não há nada que a humanidade faça que possa mudar o amor de Deus. Paulo de Tarso, o Apóstolo dos gentios, confirma e diz, “Mas Deus é rico em misericórdia; por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, deu-nos a vida com Cristo – é por graça que vós sois salvos -, com ele nos ressuscitou e nos fez sentar nos céus em Jesus Cristo”. (Ef 2,4-6). É Paulo também que, a partir de sua longa e difícil caminhada eclesial e pastoral, diz com autoridade, “Agora, portanto, permanecem estas três coisas, a fé, a esperança e o amor, mas o amor é o maior”. (1Cor 13,13). Sobre o descanso o redator bíblico do Mito da Criação no Livro do Gênesis, fez constar que, “Deus terminou no sétimo dia a obra que havia feito. Ele cessou no sétimo dia toda a obra que fazia. Deus abençoou o sétimo dia e o consagrou, pois tinha cessado, neste dia, toda a obra que ele, Deus havia criado pela sua ação. (Gn2,2). Diferentemente da Tradução Ecumênica da Bíblica – TEB -, as outras traduções, como a Bíblia Nova Pastoral, fazem constar que, “Deus concluiu o trabalho que havia feito, e no sétimo dia, descansou de todo o trabalho que havia feito” (Gn 2,2).

Cabe-nos, neste momento de tantas urgências e exigências para a Ação Pastoral, entendermos o descanso como um momento essencial da atividade pastoral. A ‘tentação’ de não descansar, de querer assumir tudo e de achar que se ‘eu não estiver’ não funciona, traz consigo maldições que fazem definhar, não apenas a atividade pastoral, mas também a profecia e desfigura a ação da Igreja. Traz, portanto, para o nosso tempo a ‘tentação’ de querer ser como Deus, quando não maior do que Deus (Is 12,14; Ez 28,12-17), que descansou no sétimo dia.

Primeiro, descansar, é permitir que outras pessoas também participem; segundo, descansar é um momento de reposição das forças; terceiro, descansar é adquirir imunidade contra o stress como a doença que é a porta de entrada para a depressão, o mal deste século; quarto, descansar é reconhecer-se como mortal, falível, passível de ser substituído e humanamente inconcluso. Esta ‘tentação’ atormenta também parte significativa do clero que, ao recusar-se a ser irmão, comparando-se a Deus, trata todo mundo como filho e filha. Têm até os que ‘vendem’ salvação negando-a como um dom gratuito de Deus. A isto o Papa Francisco chamou acertadamente na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE) – Alegrai-vos e Exultai –  de inimigos da santidade: o gnosticismo[1] e o semipelagianismo[2]. (GE 47-48), ambos tão presentes atualmente.

Fazendo uma reflexão teológica do texto (Mc 6,30-34) a partir de uma hermenêutica pastoral, encontraremos informações importantes e elementos esclarecedores para iluminar a nossa prática pastoral. Especialmente na perspectiva de aprender com a pedagogia e com a prática pedagógica de Jesus de Nazaré. A primeira informação muito importante é que este texto, embora com algumas diferenças, aparece nos quatro evangelhos; a segunda informação, mas importantíssima, é que o centro da mensagem é a compaixão, o amor; a terceira informação nos leva ao coração da mensagem deste texto: ao descanso. Jesus diz para seus discípulos após uma jornada diária vitoriosa de trabalho e ensinamentos e aprendizados: “Vinde vós à parte num lugar deserto e descansai um pouco”. (v.31);  a quarta informação é o encontro entre a compaixão já citada e o ensinamento, como sendo a marca da pedagogia de Jesus de Nazaré. “Ele foi tomado de compaixão por eles, porque eram como ovelhas sem pastor”. (v.34). O que fazer hoje com as ovelhas cujo pastor as oprime, as explora e as rejeita? (cf Ez 34,1-13).

Ousemos fazer uma reflexão do texto (Lc 10,29-37), tendo como método a Leitura Popular da Bíblia – LPB -, ou seja, com os pés pisando no chão da pastoral, onde a cabeça pensa  e o coração ama. O texto inicia-se como continuidade de uma conversa anterior. E sobre a pergunta “E quem é o meu próximo?” (v.29). A nota de roda pé “i” da TEB, diz assim, “Para um judeu daquele tempo, a questão quase não se põe: o próximo é todo membro do seu povo, excluindo os estrangeiros (Ex 20,16-17; 21, 14.18.35; Lv 19,11.13.15-18…)”. Mas, no entanto, trata-se exatamente de um estrangeiro, como protagonista, pois o personagem citado como próximo, ou como aquele que teve compaixão e cuidou dele, era exatamente um samaritano. Ou um não judeu.

Alguns elementos importantes contidos no texto e que nos ajudam a dialogar com ele. Primeiro elemento, de acordo com (Jo 12,5) nota de roda pé “s”, na TEB, “Um denário, era provavelmente o salário de um dia de trabalho. (cf. Jo 6,7,”t”); segundo elemento, devido ao relato do samaritano para o hospedeiro, após pagar duas diárias, “Toma conta dele, e se gastares alguma coisa a mais, sou eu que te pagarei na minha volta (v.35). Tendo em vista que ele pagou duas diárias, supõe-se que voltaria no terceiro dia. Alguns exegetas veem neste fato uma alusão à ressurreição de Jesus e sugerem ser o próprio Jesus fazendo-se passar por um bom samaritano.

Ora, caso aceitemos esta hipótese, ao se fazer representar por um samaritano, Jesus se faz estrangeiro, pagão e impuro. Sobre a relação entre os judeus e os samaritanos, no diálogo-namoro entre Jesus e a samaritana, no Evangelho de João (Jo 4,1-42), encontra-se a seguinte informação: “Os judeus, com efeito, não querem ter nada em comum com os samaritanos”. (v.9). A nota de roda pé “t” da TEB, do mesmo versículo,  diz, “O cisma samaritano, nascido de uma reação contra o rigorismo da reforma judaica do pós-exílio, tinha resultado numa oposição implacável entre os dois Grupos. Um judeu religioso devia evitar todo contato com os impuros e a fortiori abster-se de pedir-lhes alimento”. Façamos memória do testemunho dado pela Pastoral do Migrante que, a exemplo de Jesus de Nazaré, transcende as mais diversas fronteiras e transborda em compaixão.

Nos personagens do Evangelho de Lucas, não raro, acontece que a gente se reconhece  neles por meio de suas posturas e características. Mesmo quando elas apresentam contradições. Assim, desta forma, nós podemos nos reconhecermos hora no sacerdote; hora no levita; outra hora no próprio samaritano; ou no hospedeiro que, aliás, parece ser o segundo chamado deste texto. Além de sermos como o samaritano que viu o desconhecido e não nominado ferido, teve compaixão, devemos ser a Igreja de campana e hospedeira desejada pelo Papa Francisco[3].  Por fim, busco aqui cumprir a missão atribuída pelo Papa Francisco que, parafraseando o Concílio Ecumênico Vaticano II, na Constituição Dogmática Dei Verbum, nº 12 diz, “A tarefa dos exegetas e teólogos facilita o juízo da Igreja”. (EG nº 40).

Curitiba, 02 de novembro de 2025.

João Ferreira Santiago.

Teólogo – Poeta e Militante.

Coordenador Estadual do CEBI-PR

Membro do Conselho Nacional do CEBI.

Doutorando em Teologia pela PUC-PR.

[1] Gnosticismo: trata-se de uma filosofia ou de um conjunto de ideias filosófico religiosas, desenvolvida nos primeiros séculos da era cristã, que limita a salvação a um conhecimento especial – gnose –  de caráter sincrético e exotérico.

[2] Semipelagianismo: vem de Pelágio, um monge e teólogo, asceta que viveu em Roma, viveu entre o século IV e o século V de nossa era cristã. Pelágio negava a graça e o pecado original e dizia que o ser humana poderia alcançar a salvação pelos próprios esforços. A sua doutrina foi considerada como heresia pela Igreja, sendo ele condenado como herege.

[3] Cidade do Vaticano, 03 set 2022 (Ecclesia) – O Papa Francisco reafirmou hoje que a “Igreja é chamada a ser um ‘hospital de campanha’”, “para curar as feridas espirituais e físicas”, numa audiência a membros da Fundação AVSI para o Projeto ‘Hospitais Abertos na Síria’. https://agencia.ecclesia.pt/portal/siria-papa-reafirmou-que-a-igreja-e-chamada-a-ser-um-hospital-de-campanha/

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