Enfrentar o fenômeno social denominado “pessoas em situação de rua” requer uma abordagem multifacetada que combine a compreensão dos desafios sociais enfrentados por essa população, a implementação de políticas públicas capazes de promover o acesso a direitos sociais e o protagonismo dessas pessoas na luta por direitos.
Nossa atuação na Arquidiocese de Vitória, por meio da Pastoral do Povo da Rua, busca na palavra de Deus a inspiração e a fundamentação para a ação, bem como na compreensão sociológica desse fenômeno. Diante da complexidade desse problema social é essencial, como ponto de partida, reconhecer a dignidade inerente de cada pessoa humana, manifestando cuidado, compaixão, solidariedade e empatia. Buscamos praticar cotidianamente a caridade, sem perder de vista a luta pela conquista e a garantia de direitos sociais.
Uma das causas primordiais no enfrentamento desse fenômeno é a falta de moradia. Se as pessoas estão vivendo nas ruas, invariavelmente, é porque não têm casa. A escassez de habitações adequadas e a incapacidade de acesso a moradias seguras e estáveis são fatores-chave que contribuem para as pessoas passarem a viver nas ruas.
Uma experiência de política pública que já existe mundo a fora, que a Pastoral do Povo da Rua está propondo para ser implementada no Brasil é conhecida como “Moradia Primeiro”. Inverter a ordem do acesso às políticas públicas.
Em resumo, a política “Moradia Primeiro” (Housing First) representa uma mudança de paradigma na política pública para o povo da rua. Consiste em priorizar o acesso imediato à moradia como um direito humano fundamental. Ao oferecer moradia estável, sem o comprometimento do acesso às demais políticas, produz uma mudança imediata na vida das pessoas e abre as possibilidades para a superação da condição de estar utilizando as ruas como moradia.
Em relação ao acesso imprescindível às demais políticas públicas, além da moradia, as pessoas em situação de rua, frequentemente, enfrentam problemas de saúde física e mental não tratados. A falta de acesso a cuidados médicos adequados agrava esses problemas, tornando crucial a disponibilidade de serviços de saúde acessíveis e de qualidade para essa população. Equipes multidisciplinares que incluam médicos, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais de saúde podem oferecer um atendimento holístico, abordando tanto as necessidades médicas quanto as questões psicossociais enfrentadas por essas pessoas.
Outro desafio significativo enfrentado pelas pessoas em situação de rua é a violência física e psicológica. Muitas vezes, elas são alvo de crimes e agressões, vivenciando uma sensação constante de insegurança e de medo. Essas violências são praticadas principalmente por agentes de segurança pública e de segurança privada.
O estigma social e a discriminação também contribuem para a marginalização das pessoas em situação de rua. É fundamental promover a conscientização e a educação da sociedade como um todo para compreender e combater o preconceito, a estigmatização associados a essa população, promovendo uma cultura de compaixão, inclusão e respeito pelos direitos humanos de todas as pessoas. Muitas vezes, quem pratica as violências são indivíduos, motivados pelo ódio aos pobres, difundido e naturalizado em nossa sociedade.
Enquanto não são garantidas as possibilidades para a superação da situação de rua, estratégias de segurança devem ser implementadas para proteger essa população, incluindo patrulhas policiais específicas para áreas onde ela se concentra, iluminação adequada e a criação de espaços seguros onde ela possa buscar refúgio do frio e do calor extremos, bem como locais para higienização e hidratação.
Acesso ao emprego e à educação também representam desafios significativos para as pessoas em situação de rua. Muitas delas enfrentam dificuldades para encontrar trabalho devido à falta de qualificação profissional ou ao estigma associado à sua condição. Programas de capacitação profissional e educação podem ajudar a superar essas barreiras, proporcionando o desenvolvimento de habilidades necessárias para ingressar no mercado de trabalho e construir um futuro melhor.
Governos, organizações da sociedade civil e comunidades locais devem trabalhar em conjunto, compartilhando recursos e experiências bem-sucedidas para fornecer um suporte adequado a essa população. Estratégias de colaboração e de parceria podem maximizar o impacto das intervenções, garantindo que as necessidades dessas pessoas sejam atendidas de forma eficaz e sustentável.
Do ponto de vista teológico, a Pastoral do Povo da Rua encontra fundamentação na dignidade intrínseca de cada ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. A compaixão de Jesus pelos marginalizados e excluídos da sociedade serve como modelo para a ação pastoral, inspirando os agentes a demonstrar amor e solidariedade aos mais vulneráveis. Por meio da Parábola do Samaritano (Lc 10, 25-37), Jesus ensina sobre o amor ao próximo, destacando a importância de demonstrar compaixão e cuidado pelos necessitados, independentemente de sua condição social.
A justiça social também é um princípio central da fé cristã. É estar do lado (tomar partido) das pessoas pobres e oprimidas, buscando transformar as estruturas injustas que perpetuam a desigualdade e a exclusão. “Por acaso não é este o jejum que escolhi: que vocês desatem as correntes da injustiça, que desfaçam as cordas do jugo, que ponham em liberdade os oprimidos e acabem com todo tipo de escravidão? Por acaso não é que partilhem sua comida com o faminto, que abriguem os pobres desamparados, que vistam os nus que vocês encontrarem e não se recusem a ajudar o próximo?”. (Is 58, 6-7)
Portanto, enfrentar o fenômeno social “pessoas em situação de rua”, requer uma abordagem ampla. Identificar as causas subjacentes da falta de moradia e oferecer suporte integral a essa população. Ao combinar/articular políticas públicas eficazes de serviços de saúde acessíveis, programas de capacitação profissional e educação, dentre outros. Precisamos trabalhar juntos para criar uma sociedade mais justa, compassiva e inclusiva para todas as pessoas.
Julio Pagotto
Professor de Filosofia Militante da Pastoral do Povo da Rua



